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sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24710: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (3): A minha primeira viagem (de comboio) (Carlos Vinhal)

Estação Ferroviária da Senhora da Hora - Matosinhos - Autor desconhecido


A minha primeira viagem (de comboio)

Teria pouco mais que 8 meses de gestação, estando ainda no quentinho da barriguinha da minha mãe, quando fiz a minha primeira viagem.

Em Dezembro de 1945, o meu pai, ainda solteiro, havia “emigrado” de Azurara, freguesia do concelho de Vila do Conde, para Matosinhos em busca de uma vida melhor.
Um familiar da minha mãe tinha-lhe arranjado um modestíssimo emprego como funcionário público na “Junta”, assim era conhecida na época a Administração dos Portos do Douro e Leixões, mas muito bom para quem não tinha nenhum meio de subsistência. A minha mãe, ainda sua namorada, ficou em Azurara, na casa de seus pais, à espera de melhores dias para se poderem casar.

Mais tarde, em 1947, os meus pais finalmente casaram e ficaram a viver num quarto, em Matosinhos, que o meu já ocupava em solteiro, propriedade de um senhor que eu ainda conheci, o senhor Alexandre, também funcionário da APDL. Vida difícil, a do casal, como a de quase toda a gente naquele tempo, estávamos (estavam eles) no pós guerra. Havia imensa falta de emprego, de dinheiro e de géneros alimentícios, as pessoas, em virtude das privações impostas, eram doentes e não tinham meios económicos suficientes para se tratarem. O meu pai ganhava pouco e a minha mãe não tinha emprego, como a esmagadora maioria das mulheres naquele tempo, destinadas à exclusiva função de donas de casa e mães. Imagine-se as dificuldades por que passavam, ainda por cima longe da família que lhes desse uma mão em caso de necessidade extrema.

Com mais ou menos "fartura", fui-me desenvolvendo uterinamente de acordo com as leis da natureza, até que se aproximou a data prevista para eu tomar conhecimento da crueza do mundo exterior.
Como naquele tempo não havia maternidades, as crianças nasciam quase todas em casa das avós, preferencialmente, que pela prática tinham adquirido conhecimentos quase empíricos que as habilitava a assistir aos partos das mulheres mais novas, filhas, noras ou simplesmente vizinhas. A ideia era eu nascer na casa da minha avó materna, aonde se deslocaria a minha avó paterna, já que eram eram vizinhas, a quem caberia a função de parteira. Experiência não lhe faltava pois era mãe de 11 filhos.

Matosinhos e Azurara distam entre si cerca de 25 quilómetros, distância que hoje se faz com facilidade, mas naquele tempo era preciso apanhar um pachorrento comboio em Matosinhos, ir até à Senhora da Hora e aqui fazer transbordo para outro, um pouco menos lento, que vindo da Estação da Trindade, do Porto, ia até à Póvoa de Varzim. A estação de Azurara ficava duas paragens antes do fim da linha. Da estação de Azurara até casa dos meus avós maternos ainda era um bom bocado a pé, pelo que imagino a dificuldade que a minha mãe terá sentido para percorrer aquela distância, uma vez que estava “no fim do tempo”.

Completadas todas as luas, lá nasci no último sábado de Março de 1948, mas como não aparentava grande saúde, pelo sim, pelo não, fui baptizado logo na semana seguinte, na Igreja Matriz de Azurara, não fosse eu morrer e não me serem franqueadas as Portas do Paraíso.

E nesse dia 4 de Abril, após a cerimónia de baptismo, regressámos a Matosinhos, já os três, qual Sagrada Família, não de burro mas novamente de comboio, naquela que seria a minha primeira viagem à janela, aconchegadinho ao peito da minha mãe.

Durante dezenas de anos repeti essa viagem nessas duas linhas férreas em comboios que entretanto foram evoluindo, mas pouco.
Actualmente pode-se fazer o mesmíssimo percurso no Metro de superfície, bem mais rápido, cómodo e limpo.

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)


Viana do Castelo > Afife > A soga > Postal iliustrado, s/d, c. 1940. (Diz-se "levar os bois à soga"; a soga é uma tira de couro cujas extremidades se prendem às pontas do boi, e pela qual ele é puxado ou guiado.)

Fonte: Arquivo Municipal de Viana do Castelo (com a devida vénia...)


1. O Joaquim Costa (*) e agora o Valdemar Queroz já pagaram a "obada" ou "côngrua" ao "prior desta freguesia", escrevendo e publicando a uma historieta do tempo de antigamente... (Aqui não se paga em espécie, mas em géneros...).

O primeiro escreveu sobre a feira, em Vila Nova de Famalicão, onde ia, mais a mãe, comprar chancas (não se podia ir descalço para a "escolinha"...). O Valdemar, esse,  lembrou-se da sua primeira viagem de comboio (em tudo na vida, há sempre uma primeira vez)... Uma história não menos deliciosa de um menino que gostava era de andar descalço e comer "coubes", lá na casa da avó, em Afife, em "Biana" do Castelo...

Afife fica a 10 km a norte de Viana do Castelo, sede do concelho. Hoje a distância ao Porto (70/80 km) faz-se em menos de uma hora de carro ou de comboio. Mas em 1955 devia ser uma eternidade, a avaliar pelo "martírio" quer sofreu o nosso "djubi", como ele conta aqui com verve e com graça...

Minhoto de nascimento, alfacinha por criação, avô de netos neerlandeses, e para mais vivendo sozinho trancado em casa na Rua de Colaride, Agualva-Cacém, é uma figura muito querida da Tabanca Grande. 

Que os bons irãs lhe deem vida e qualidade de vida (que  a saúde, essa, anda muito remendada, por mor de um raio de uma DPOC)...


Valdemar Queiroz, minhoto por criação, lisboeta por eleição, 
ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, 
Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; 
aqui, na foto, em Contuboel, 1969.


O martírio de viagem ao Porto

por Valdemar Queiroz

Com dez anos fiz a primeira viagem de comboio (#), foi no correio de Afife ao Porto.
Foi à casa de uma tia nas férias grandes de Verão.

O martírio começou em casa da minha avó, continuou estrada abaixo até à Estação e só melhorou quando o comboio partiu e eu descalcei umas botas novas que me apertavam os pés.

Eu ia sozinho e com medo de me roubarem as botas atei-as à cintura,  até parecia um "cowboy" com duas pistolas,  e fiz toda a viagem descalço, que nada me custou por estar habituado.

O martírio das botas passou, mas outro tão complicado apareceu, passada a Ponte de Viana: 

− Nunca saias do teu lugar!  − dissera-me a minha avó à frente do chefe da Estação que parecia um polícia.

O tempo ia passando e eu, com uma grande vontade de correr dentro do comboio, para ver o que se passava nas outras carruagens. E assim foi,  até chegar à carruagem de 1.ª classe com os bancos de couro avermelhado.

Não passou muito tempo de admiração para levar com um 'estás a levar um puxão d'orelhas, vai já pro teu lugar', disse-me o "polícia'" da carruagem.

Lá me sentei no meu lugar do banco de pau da 3.ª classe (?) e adormeci até chegar ao Porto.

No Porto foi um martírio calçar as botas, andar com elas a olhar para todos os lados que nunca tinha visto.

Passado pouco tempo de andar de boca aberta na grande cidade, comecei a chorar e a pedir para voltar à minha terra pra casa da minha avó.

Foram quinze dias de martírio, aflito dos pés e ser obrigado a comer bife com esparguete.
Ah! que saudades quando regressei a Afife, poder andar descalço e a comer couves com batatas, toucinho e chouriço.

Manias de criança mimada.

Valdemar Queiroz

Nota do autor: (#) no ano seguinte voltei a viajar de comboio pra Viana, para  ir fazer o exame da 4.ª classe (Instrução Primária)

27 de setembro de 2023 às 15:29 (*)

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Nota do editor:

(*) - Ultimo poste da série > de 4 setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22070: Os nossos seres, saberes e lazeres (445): A minha primeira viagem (de comboio) para além do Ave, Minho... Uma aventura, até Ermidas do Sado, Santiago do Cacém, Alentejo ! (Joaquim Costa)


Linha do Corgo > Comboio a vapor. Fomte:cortesia de Vivadouro


1. Mensg
em do Joaquim Costa [, natural de V. N. Famalicão, vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros: é engenheiro técnico reformado; foi Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)]

Date: domingo, 4/04/2021 à(s) 01:28
Subject: Os nossos  Seres, Saberes e Lazeres

Meu caro Luís

O post do colega Joaquim Ascensão sobre a sua atribulada viagem de comboio desde a sua terrinha (Leandro), muito próximo da minha (Calendário – V.N. de Famalicão), até ao "odiado" CISMI em Tavira (*), fez-me suar aos ouvidos o distante e saudoso som dos nossos comboios a vapor.

Dando seguimento às minhas memórias de Paz, que podes enquadrar nos nossos seres, saberes e lazeres, envio-te a "crónica" da minha primeira viagem de comboio para alem do Ave, deixando ao teu critério a oportunidade e interesse da sua publicação.

A minha memória está gasta mas continuam intactos, os "frames", que guardam as minhas viagens de comboio:

Fazer a viagem de Famalicão à Póvoa do Varzim, para ir à praia, no comboio a vapor em linha estreita (infelizmente encerrada em 1995 dando lugar a uma ciclovia), onde partíamos de camisa branca e chegavamos de camisa preta;

A viagem do Porto a Chaves, nas magníficas linhas do Douro e Corgo (esta, infelizmente desativada em 2'10, dando lugar, em partes do seu percurso, a uma ciclovia), aqui já contada (P21893), em que a maioria dos passageiros eram cabras;

As viagens diárias para o Porto (quando freqientava ISEP. Instituto Superior e Engenharia do Porto) utilizando a linha do Norte e muitas vezes a linha estreia até à estação da Trindade (infelizmente já desativada);

A viagem para a tropa (Caldas da Rainha – aqui também já contada - P21844), na linda linha do oeste, com o meu saco carregado com 4 "granadas" de Alvarinho;

As viagens de Famalicão até Tavira, Estremoz e Portalegre, com os comboios cheios de tropa que mais parecia o prelúdio da 2ª Guerra Mundial;

A maravilhosa e ternurenta viagem, na companhia do meu saudoso Pai, de Barrimau – V.N. de Famalicão, até Ermidas Sado, em visita ao meu irmão Manuel, ele também um ex-combatente da Guiné.

Como já referi na minha apresentação ao blogue (P21827), o meu irmão Manuel (infelizmente já falecido), fez parte dum contingente que foi mobilizado "rápido e em força" para a Guiné logo a seguir aos ataques do PAIGC, em 1963, a Tite, Buba e Fulacunda, ou mesmo antes com os ataques da FLING a Susana e Varela em 1962.

 A sua guerra acabou por ser outra numa luta entre a vida e a morte com uma pneumonia que o apanhou logo à sua chegada e o atirou para uma cama do hospital de Bissau. Passado pouco tempo regressou a casa, ainda em convalescença, com passagem à reserva por invalidez

Infelizmente não tenho dados sobre o seu batalhão, mas seria muito reconfortante encontrar algum camarada, que acompanhe o blogue, do mesmo contingente. Apenas sei que o seu batalhão todos os anos fazia a sua reunião anual, na modalidade de piquenique, na região de Viana do Castelo e/ou Braga.

Todos nós, por muito que o neguemos, já olhamos mais para o retrovisor do que para a frente de estrada das nossas vidas. Pelo que é com muita nostalgia e tristeza que vejo grande parte da nossa rede de linha férrea e ser substituída por ciclovias, assim como míticos cafés das nossas cidades, que eram muito mais que a nossa segunda casa, nos tempos de estudante, terem dado lugar a bancos nos anos 80 e a lojas dos chineses nos dias de hoje.

Conto esta história da minha primeira viagem de comboio, para além do Ave, como singela homenagem ao meu saudoso pai e irmão.

Um abraço amigo e grato pela casa que construíste há dezassete anos e que abriga toda esta família do Blogue.

Joaquim Costa

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A minha primeira viagem (de comboio) para além do Ave

por Joaquim Costa

No ano da Graça de 1964, após uma mobilização atribulada para a Guiné (onde chegou com uma grande pneumonia, tendo quase de seguida regressado a Portugal, com passagem à reserva, sem nunca ter visto Bissau) o meu irmão Manuel empregou-se na CP e foi colocado em Ermidas Sado, Santiago do Cacém,  no Alentejo. 

Era uma altura em que os funcionários públicos tinham um ordenado de miséria mas algumas regalias. No caso o próprio viajava de comboio para qualquer ponto do país gratuitamente e os familiares tinham direito a 3 viagens por ano.

Para além de duas viagens gastas na ida à praia na Póvoa do Varzim, depois de muitas reuniões familiares, lá se chegou a consenso sobre o destino a dar à terceira viagem. Tendo em conta todos os afazeres, tais como: manter aberta a mercearia/taberna, a guarda dos cães, dos gatos, dos coelhos, das galinhas, do porco, etc, desta vez aproveitava a viagem, de longo curso, o pai Zé e o puto mais novo, a casa do Manel no Alentejo.

Como seria de esperar os preparativos da viagem estavam ao nível dos preparativos da viagem de Vasco da Gama à Índia.

É impossível descrever a alegria e ansiedade pela chegada do momento: dizia a carta do Manel que,  além de comboio,  tínhamos de andar de barco... Era muito à frente !

Composta a cesta à moda do Minho com o arroz de frango, bolinhos de bacalhau, presunto, salpicão etc, etc, e, o mais importante: dois garrafões de vinho verde tinto de palhinha. Um de 5 litros para o Manel e um pequeno de 2 litros para a viagem.

E aqui vamos nós. Apanhar o comboio das 6 da manhã no apeadeiro da aldeia (Barrimau), mudar em Campanhã com destino a Lisboa. Nenhum incidente, tudo como o programado e o puto maravilhado com o desfrutar de um mundo novo que desconhecia.

Chegados a Santa Apolónia,  começamos a aperceber-mo-nos de que entravamos num mundo novo, e muito diferente da nossa querida aldeia.

Lá continuamos o nosso caminho, o pai Zé com o seu fato e gravata, eu de fato e gravata, completamente desconfortável e já com bolhas nos pés devido aos sapatos (fato e sapatos só os tinha utilizado, uma vez, no casamento do Manel), o meu pai com a cesta a cheirar a bolinhos de bacalhau numa mão e na outra o garrafão de 5 litros, eu com uma pequena mala com roupa numa mão e o garrafão de 2 litros na outra. Toda a gente a olhar para nós e muitos lançando “bocas” trocistas: "Deve ser boa a pinga! Que cheirinho sai dessa cesta!"

O meu pai pergunta como chegar ao Terreiro do Paço. Um taxista oferece os seus serviços. O meu pai negoceia, pergunta que tempo demorava e quanto custava a viagem: 

 Está decidido... vamos a pé.

Aqui vamos nós, a transpirar por todos os poros, com todo aquele aparato de cesta minhota e dois garrafões de vinho, caminhando a pé de Santa Apolónia ao Terreiro do Paço. Não estava nos nossos planos esta receção do povo de Lisboa, todos os carros que passavam apitavam e mandavam todo tipo de piropos.

Chegamos ao Terreiro do Paço,  exaustos, mas felizes por aquela receção. Aqui todos queriam ajudar-nos, levar o cesta, os garrafões … contudo o meu pai nunca largou o dele , nem eu o meu. Foi uma das advertências que o Manel nos fez: Nunca largar nada e sempre com a carteira bem guardada.

Entrado no barca senti aquela sensação de entrar num mundo encantado onde por magia sou possuído de poderes sobrenaturais, voando como uma pássaro sobre as águas. Estava com medo de acordar receando que, afinal, tudo não passasse de um sonho. Via-se ao longe, nas duas margens do rio, os estaleiros para a construção da ponta 25 de abril, com centenas de trabalhadores parecendo formigas em grande azafama.

Chegados ao Barreiro, e,  ao tomarmos conhecimento que só tínhamos o comboio ao fim da tarde, o meu pai arriscou o almoço num restaurante, guardando o produto da cesta para o Manel e para os donos da casa onde habitava, um excelente casal de alentejanos.

Entramos, creio que os dois pela primeira vez, num restaurante. Sentia-se um restaurante frequentado por trabalhadores das empresas locais, contudo, não foi uma entrada discreta, à nossa frente entrou um casal a quem ninguém ligou mas a nossa entrada, com toda a nossa trouxa, fomos logo fulminados com os olhares de todos os presentes com um sorriso irónicO visível nas suas caras.

Abeirou-se de nós o dono do restaurante, com um sorriso trocista, mas muito amigável, metendo conversa: 

 vocês entram-me assim no restaurante com estas duas bombas! 

Logo nas primeiras palavras denunciamos o nosso falar cantado à moda do Minho ao que logo fomos bombardeados com a viagem do homem a Braga e ao Gerês,  criando-se assim um ambiente mais solto para nós que nos sentíamos intimidados com todos aqueles olhares. 

Da conversa sobre o Minho e o vinho verde fomos na sugestão do prato do dia, e único: bacalhau cozido com grão, embora com algum receio de estarmos perante uma brincadeira do homem (acontece que na altura, na aldeia e em toda a região do Minho, o grão não fazia parte dos produtos utilizados na cozinha, quanto muito, por vezes, juntava-se sim, esta iguaria à (b)vianda para os porcos), mas contudo arriscamos.

Convém lembrar, também, que lá em casa, às refeições não havia rações individuais, a panela vinha para a mesa e cada um tirava uma pequena parte e só retirava a segunda vez depois de todos já se terem servido (a velha máxima de que antes de se começar a comer há sempre lugar para mais um - podia-se ficar com fome mas chegava sempre algo a todos), e quando eram batatas cozidas com bacalhau a norma era todos colocarem um pouco de azeite com alho no prato, tirava-se uma batata de cada vez, envolvia-se no azeite, comia-se, a aguardava-se que todos tirassem a sua para, se ainda houvesse, repetir o gesto. 

Como nunca tínhamos comido tal coisa, nem nos passava pela cabeça que fosse comestível, aplicamos a regra de casa: colocar o azeite no prato, tirar um grão de cada vez, tirar-lhe a pele, envolvÊ-lo no azeite e tentar colocá-lo no garfo para o levar à boca. Tarefa nada fácil. Durante toda esta atribulada batalha com o grão, reparamos a galhofa geral na sala. 

Só queríamos fugir dali, já que pensávamos que estamos mesmo a comer (tentar comer) comida para porcos. Só à saída, com grande alívio meu, verifiquei que afinal todo o pessoal comia grão, mas colocado em grande quantidade no prato e, com a ajuda preciosa de uma faca, levavam à boca (com a pele) grandes garfadas de grão. Foi a primeira vez que que constatamos que a faca tinha outras funções para além de cortar presunto e chouriço...

Chegou a hora da partida do comboio para o Alentejo. Entramos, mas já o mesmo estava cheio de trabalhadores e soldados. Tivemos que ficar na plataforma, de pé. Todos os presentes, com um ar irónico mas amável, nos procuravam ajudar na arrumação dos haveres. 

Entretanto, um homem, já para lá da meia idade (de lencinho ao pescoço e chapéu alentejanos), olhando persistentemente para o garrafão que estava à minha guarda, meteu conversa:

 − Então, compadres,  vêm do norte? 

Denunciámos as nossas origens com a pronuncia do norte adocicada com o falar cantado do Minho: 

  ... E o vinho desses garrafões é verde? É branco ou tinto? 

   É tinto  − respomdei o meu pai, − Lá na aldeia costuma-se dizer que vinho branco, pão de trigo e caldos de galinha é para os doentes. 

− Ah ! branco já bebi mas tinto nunca provei. 

Fez-se silêncio, mas o homem, com os olhos vidrados, não deixava de olhar para o meu garrafão, e volta à carga:

  − Então, para onde vão? 

− Para Ermidas d Sado para casa do meu filho que trabalha lá nos comboios: se nos fizesse o favor de avisar quando estivéssemos a chegar ficava lhe muito agradecido  − disse o meu pai. 

− Claro que sim,  compadre, podem ficar descansados que eu avisarei −  disse o homem muito solicito. 

  Agradecido − disse o meu pai. 

Passado uns minutos, o meu pai sentiu uma secura na garganta, fruto do bacalhau do almoço que estava um pouco salgado,  e levou o meu garrafão aos lábios. Ao ver o olhar embebecido do companheiro de viagem ofereceu-lhe um pouco. O mesmo não se fez rogado e lançou com sofreguidão o garrafão aos queixos. O meu pai ficou preocupado porque o homem ficou com os lábios colados ao gargalo. Passado uns segundos, largou, arrotou, e exclamou: 

 −  Mas que grande pomada!


De paragem em paragem o homem aproveitava para meter conversa: 

− Ainda falta, não se preocupem que eu aviso quando estivermos a chegar, ainda há tempo para mais uma prova, Sr. José. 

E zumba, mais uma golada, e assim foi em todas as paragens até à ultima gota do garrafão.


A viagem continuou em silêncio, já que o nosso companheiro de viagem sentou-se num banquinho, rebatível, que vagou, e adormeceu.


Passado mais umas paragens, um outro homem, que acompanhou divertido ao esvaziar do garrafão, com um sorriso nos lábios bateu no ombro do meu pai e disse: 

  Estamos em Ermidas Sado. 

 Apanhamos a cesta, os garrafões (o meu muito mais leve) e abalamos rápido para fora do comboio. O Homem que era suposto avisar-nos quando chegássemos ao nosso destino continuou num sono profundo. Provavelmente até ao fim da linha…

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22063: Os nossos seres, saberes e lazeres (444): Quando vi nascer a Avenida de Roma (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 30 de março de 2021

Guiné 63/74 – P22052: Estórias avulsas (104): O melhor brunch da minha vida, numa longa viagem de 21 horas de comboio, entre Leandro e Tavira, já lá vão 50 anos (Joaquim Ascenção, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 27 de Março de 2021, trazendo uma estória que bem caracteriza as dificuldades que sentíamos quando tínhamos de atravessar Portugal de lés-a-lés nas deslocações entre quartéis.


O melhor brunch

No início de Janeiro de 1971 (já lá vão 50 anos),  fiz a minha primeira grande viagem.

Fui colocado para a segunda fase da minha formação militar no CISMI em Tavira. Munido das respectivas guias de marcha iniciei a viagem no apeadeiro de Leandro na linha do Minho cerca das 22 horas e cheguei a Tavira cerca das 19 horas do dia seguinte.

As etapas foram:

Leandro - Campanhã (comboio)
Campanhã - Santa Apolónia (comboio)
Santa Apolónia - Terreiro do Paço, a pé
Terreiro do Paço - Barreiro (de barco)
Barreiro - Tavira (comboio)

A ração de combate (caseira) resumia-se a 2 pães e 1 ou 2 ovos cozidos e um pouco de chouriça.

Ao fim da manhã já não tinha nada para comer nem onde comprar, o comboio a que a guia dava acesso eram comboios que paravam em todas as estações e apeadeiros e não dispunham dessas mordomias.

Ao início da tarde a fome apertava, entretanto uma senhora que viajava no mesmo compartimento que tinha entrado,  já eu tinha para aí uma hora de viagem, abriu um baú e um pequeno garrafão de vinho e começou a comer pão e presunto, acompanhado  com um copinho de vinho... e eu a ver e a salivar... 

A té que a senhora olha para mim e pergunta:
 - Oh menino, tens fome? Serve-te, come e bebe que chega para os dois.

Eu assim fiz, comi e bebi e matei a fome. No fim agradeci.

Recordo este gesto para toda a minha vida. Que Deus tenha reservado um lugar no céu para ela.

Mais tarde, já em África, passei por momentos semelhantes mas sem ter quem me socorresse.

A tantos sacrifícios fomos submetidos, tanto desgaste físico e psicológico ao longo de tantos meses, e para quê?

Uma pergunta que fica e ficará sempre sem resposta.

Cumprimentos
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de março de 2021 > Guiné 63/74 – P21987: Estórias avulsas (103): Enfermeiro por uma noite (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18294: Brunhoso há 50 anos (13): Viagens de comboio ao Porto (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Estação de Mogadouro
Com a devida vénia a Caminhos de Ferro Vale da Fumaça


1. Em mensagem do dia 31 de Janeiro de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um texto sobre Brunhoso, desta vez lembrando as viagens de comboio até ao Porto nos anos 60 e 70.


Brunhoso há 50 anos

13 - Viagens de comboio ao Porto

Vamo-nos entretendo com histórias, como os meninos que já fomos há muitos anos, e gostamos delas com muitos feitios gostos e temperos: suaves, doces, avinagradas, românticas, de viagens, eróticas, guerreiras, dramáticas, trágicas, apimentadas ou humorísticas.

Esta é uma estória que pretende falar das grandes viagens de comboio que eu e os meus conterrâneos fazíamos desde Brunhoso, essa aldeia perdida entre as dobras da paisagem transmontana do nordeste, até ao Porto, seguindo o percurso dos rios Sabor e Douro, sobretudo nas décadas de 60 e 70, quando para além dos emigrantes as pessoas se começavam a deslocar mais para estudar nos seminários ou colégios distantes, para cumprir o serviço militar, outros por alguma diversão, outros por negócios, outros porque tinham conseguido trabalho na cidade grande.

Da aldeia à estação de caminhos de ferro de Mogadouro que ficava num descampado, eram catorze quilómetros, que tinham que ser feitos num carro de praça. Lá apanhávamos um comboio pequeno e antigo, puxado por uma locomotiva a vapor, com carruagens em madeira, incluindo os assentos, lento nas curvas, nas descidas e nas subidas. Mais tarde automotoras um pouco mais rápidas, mais cómodas, mas mais pequenas, substituíram o velho comboio. Da estação de Mogadouro até ao Pocinho a viagem na linha do Sabor fazia-se por encostas e montes a alguma distância do rio e longe da sua vista. O rio só se tornava visível já depois de Moncorvo, na foz, quando alargava o leito ao encontrar-se com as águas do Douro e o comboio ia estabilizando a sua marcha ao atravessar a ponte perto da estação do Pocinho. Depois a confusão e a pressa habitual para mudar as malas de cartão, os sacos de batatas e de hortaliças, as galinhas, os presuntos, salpicões, linguiças, os garrafões de vinho e outros bens que muitos levavam para si próprios ou para os filhos e parentes, para o comboio maior da linha do Douro que nos levaria até à estação de S. Bento no centro do Porto.

O comboio da linha do Douro somente era maior porque a falta de comodidade era a mesma, do comboio da linha do Sabor, quente ou frio conforme as estações do ano, muito frio no Inverno, muito quente no Verão. Nas estações da CP seguintes, entrariam mais passageiros igualmente carregados de bagagens e sobretudo no tempo das festas do Natal, da Páscoa, no principio e fim das férias, esses comboios ficavam a abarrotar, sendo muitos deles obrigados a fazer toda a viagem de pé.

Linha do Sabor
Com a devida vénia a Os Caminhos de Ferro

O comboio segue pelo vale do Douro, bem próximo do percurso do rio, no meio dessa paisagem sublime, que para nós habituados a viver no meio da natureza eram caminhos da vida, bem difíceis de andar e trabalhar como os dos nossos montes e vales, que percorríamos sem lhes exaltar a beleza. Somente ao entrar em terrenos do distrito do Porto, no concelho de Marco de Canaveses, o comboio abandona as margens do rio.

Linha do Douro
Com a devida vénia a Viajar Entre Viagens

No Tua recebia muitos passageiras da linha com o mesmo nome e na Régua recebia também muitos passageiros da linha do Corgo.

Linha do Tua
Com a devida vénia a Pensar Ansiães

A Régua era a maior cidade da linha do Douro e tinha a maior estação de comboios de Trás-Os-Montes, terra com muito movimento, capital do Vinho Fino, como os velhos lavradores do Douro designavam o vinho que produziam nos socalcos das suas encostas e que os comerciantes do Porto e os ingleses baptizaram impropriamente de Vinho do Porto. Entre a Régua e o Porto existiam ainda algumas estações de caminhos de ferro com bastante movimento e o grande nó ferroviário de Ermesinde, onde as linhas do Douro e do Minho confluem para seguir a mesma rota até ao Porto que se aproxima. A Estação de S. Bento no terminus da viagem onde os viajantes depois de saírem dos comboios são recebidos com fidalguia no grande salão nobre da cidade, imponente com o seu tecto alto e trabalhado, as janelas grandes e artísticas e as paredes enormes decoradas com azulejos, que reproduzem belos quadros históricos da Cidade e da Nação. A Estação de S. Bento ergue-se em beleza e grandiosidade como símbolo da hospitalidade, dos comerciantes, dos artistas e dos burgueses da cidade do Porto, a todos os viajantes nacionais ou estrangeiros.

Estação da Régua

Todos os transmontanos das terras grandes e mais pequenas sentiam uma grande atracção pela cidade do Porto, onde gostavam vir pela sua grandeza, pela sua beleza, pelos seus limites fluviais e marítimos, pelo contacto com outras gentes, pela variedade de produtos comerciais disponíveis para a lavoura e outros actividades. Também pelo prazer de se sentirem a viver e a fazer parte duma grande comunidade de homens e mulheres e experimentarem essa envolvência, no meio da azáfama e do movimento que se sentia nas suas praças, ruas e avenidas, como algo novo e raro.

Estação de S. Bento
Com a devida vénia a Ruralea

Próximo da estação de S. Bento, situada bem no centro da cidade, para comer havia bons restaurantes que alguns entre eles frequentavam: a Regaleira, a Abadia, o Onix, a Flor dos Congregados, o Girassol, o Leal, o Palmeira, a Viúva, o Romão e outros. Para conviver e beber um copo com os amigos havia os cafés Imperial, O Guarany, o Embaixador e a cervejaria Sá Reis.

Para outro tipo de vivências que alguns gostavam de experimentar havia outros cafés, bares, casas de "passe" nas ruas Cimo de Vila, Banharia, dos Caldeireiros, Escura, Bonjardim, etc.

Na Rua do Almada havia a boite e casa de fados Candeia muito frequentada por soldados, marinheiros, rufias, estudantes, doutores, comerciantes e burgueses. Ao tempo era a casa de diversão nocturna mais importante da cidade.

O comércio, tal como hoje, espalhava-se por estas ruas já referidas e outras tais como Rua de Santa Catarina, Sá da Bandeira, Santo António, Rua do Bonjardim, Rua de Cedofeita e muitas outras.

Nesses anos era frequente encontrar na Sá Reis ou no Imperial, o Dr. António, um advogado bom bebedor de cerveja, simpático e conversador, grande proprietário de Mogadouro, com casas também no Porto, que gostava de esperar a chegada dos comboios de Mogadouro, para falar com os conterrâneos.

Nos anos próximos do 25 de Abril, antes e depois, recordo-me que havia muitos estudantes e alguns, poucos funcionários bancários e públicos, de Brunhoso no Porto, que se juntavam inicialmente no café Bissau, na rua de Cedofeita, mais tarde no café Encontro na rua do Rosário.

No bar do Hotel Paris, na rua da Fábrica, sobretudo à noite e também por vezes à tarde, nos fins de semana, juntavam-se muitos transmontanos, alguns de passagem e lá hospedados e muitos outros a viver na cidade, Eram transmontanos sobretudo do Nordeste: Bragança, Miranda, Mogadouro, Moncorvo, Vila Flor. Havia alguns, poucos, beirões, minhotos e galegos. O Hotel era propriedade de três galegos. O Constante o mais novo e mais simpático, por vezes atendia no bar, sendo o homem do bar mais habitual o Mota, um minhoto sempre bem disposto de Cabeceiras de Basto, que também tinha uma pequena quota na sociedade. Tomava-se café, bebiam-se algumas cervejas, discutiam-se as últimas novidades politicas e futebolísticas, jogava-se a sueca e por vezes comiam-se alguns petiscos que o Mota cozinhava.

Recordo-me das viagens de regresso a casa como sendo mais agradáveis, comboios mais livres com menos gente e menos confusão de bagagens. Mas feitas geralmente mais tarde no dia, no Verão o vale do Douro era um inferno e pelas janelas abertas entravam golfadas de ar quente.

Na estação de Valongo havia mulheres a vender regueifa, na estação da Pala vendiam pequenas bilhas de barro com água duma fonte fresca e na estação da Régua vendiam os rebuçados da Régua. Essas mulheres com os seus pregões e os seus produtos davam mais colorido e animação à viagem.

Praça da Liberdade - Porto - Homenagem a D. Pedro IV e aos Mártires da Liberdade, entre os quais o ilustre matosinhense António Bernardo de Brito e Cunha (1782-1829), condenados à forca pelo regime Miguelista e enforcados nesta mesma Praça em 7 de Maio de 1829 (CV)
Com a devida vénia a selvagemtexas

Nos dias e meses após a Revolução de Abril de 1974, os moradores do Porto tinham por hábito juntarem-se em grupos na Praça da Liberdade, de volta da estátua de D. Pedro IV a falarem, uns talvez a tentar compreender a politica e os acontecimentos políticos que corriam a muita velocidade, outros a procurar doutrinar os menos informados. Eu que não tenho muito gosto nem jeito para falar em público, um dia resolvi entrar numa discussão com outro cidadão e logo alguns fizeram uma roda como era habitual. A discussão mais ou menos política já decorria há algum tempo quando ao deitar um olhar pela assistência vejo o meu pai e o meu tio Aragão, que teriam desembarcado há pouco na Estação de S. Bento, muito atentos e interessados. Quando acabei, e os fui cumprimentar, embora ciente que as minhas ideias politicas eram diferentes das deles, não me fizeram criticas desfavoráveis. Pela atenção deles fiquei convencido que o principal motivo que os tinha trazido ao Porto tinha sido tentar compreender a situação política. Ao encontrarem logo o filho e sobrinho a arengar na praça pública, terão pensado que tinham ali um politico e futuro deputado para os defender no futuro. Para possível desilusão deles, esta minha intervenção pública terá sido talvez a última, e a minha carreira política acabou aí.

Brunhoso era afinal ali ao lado, tão perto do Porto, somente a seis ou sete horas de comboio, que os homens, apesar da pouca comodidade, faziam com mais prazer do que ir à azeitona ou fazer a sementeira

A linha do Sabor já foi abandonada há mais de trinta anos. A linha do Douro acaba no Pocinho, tendo sido abandonado o troço até Barca de Alva na fronteira com Espanha. Políticas, ao tempo indiscutíveis, segundo os governantes que tomaram essas medidas.

Sem o som do comboio a subir a serra e do apito que o anunciava, o Nordeste Transmontano foi ficando mais abandonado e silencioso. Faz-me lembrar a beleza triste do olhar duma pauliteira jovem que ficou tal como uma moura encantada (que também lá as houve) por terras de Mogadouro e Miranda.

Comboios do Sabor e do Douro que ainda me transportam ao passado, e trazem tantas recordações!
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17097: Brunhoso há 50 anos (12): As casas e as gentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13624: Estórias avulsas (79): A melhor coisa que me poderia acontecer, uma viagem sem pressa que até parecia que estava no país das maravilhas (José Maria Claro)

1. Mensagem do nosso camarada José Maria Claro, DFA, (ex-Soldado Radiotelegrafista de Engenharia da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, Biambe, 1969), com data de 15 de Setembro de 2014:

Caro camarada
Segue em anexo mais uma pequena memória bem como mais algumas fotos.

Cumprimentos
José Claro


Depois de ter sido capa de jornal do Diário Popular do dia 6 de Maio (Segunda-feira) na entrada da porta de armas do Campo de Tiro da Serra da Carregueira, foi constituído o pelotão dos tipógrafos e fotógrafos que tinham por destino o RT1 no Porto (foto que apresento nas aulas de morse).
Daí, feito o curso, ida para BC10 (Chaves), que foi uma das melhores e mais bonitas viagens que fiz em toda a minha vida (até aí).

 Nas aulas de Morse

Estive recentemente na Régua e andei a bisbilhotar se via a linha estreita que ia para Chaves(*) (não a encontrei, para me recordar), pois foi a melhor coisa que me poderia acontecer, uma viagem sem pressa que até parecia que estava no país das maravilhas.

Rio Corgo - 1978 (Rui Morais)

Uma paisagem de sonhos numa linha que fazia que tudo abanasse, com o andamento lento das carruagens, uma linha cheia de curvas, altos e baixos curvas e contracurvas, vales profundos e serras enormes. As pessoas que já a conheciam saltavam das carruagens em andamento e daí a um bocado o comboio passava junto à via no outro lado e apanhavam outra vez o comboio, foi uma viagem de sonhos, com maravilhosas e lindas paisagens.

Sem outro assunto aqui envio mais umas fotos, como me pediste, mas vê se têm interesse, se vires que não têm não vale a pena repetir.

Mais não digo.
Do amigo Claro

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Nota do editor:
(*) A Linha de comboio a que o camarada Claro se refere é a Linha do Corgo que ligava a Régua a Vila Real.
Aceder a Movimento Cívico pelo Linha do Corgo - MCLC
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12967: Estórias avulsas (78): O meu amigo cigano Zé Beiroto (Francisco Baptista)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13015: 10º aniversário do nosso blogue (15): Manuscrito(s) (Luís Graça): O país que via passar os comboios (Ilustração de Joana Graça)

O país que via passar os comboios

por Luís Graça


14:13h. Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B, de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP 

urbanas, suburbanas e rurais.
Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo 

são deprimentes.
Abro talvez uma exceção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros da CP,
quando havia o cavador, 

o burro, 
o boi, 
a charrua,
o camponês, 

o zé povinho, camponês e burro,
besta de carga, carrejão.
A horta, a saída direta para os campos.
As hortas.
Ah!, e os azulejos azuis e amarelos Viúva Lamego
nas quatro estações do ano!
O termo apeadeiro enternece-me,
faz-me lembrar os tempos em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios:
Benfica, Porcalhota, Pontinha, Sintra, Caneças, Colares ...
Faziam piqueniques,
cantavam o fado da desgraçadinha

e no fundo eram felizes.
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.
Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão 

que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.
E aos operários que as construíram.
Ao zé povinho da cidade e dos campos.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.
Ao Pereira.
Ao Melo.
Ao fontismo.
Ao positivismo.
Ao génio organizativo.
Mesmo que a minha professora
de Sociologia Histórica das Classes Laboriosas,
discípula do E.P. Thompson,
só gostasse dos corticeiros.
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses e dos burros e dos bois.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, 

não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.
Colhiam-se papoilas vermelhas no meio do trigo.
Não havia tempo para se ter stresse.
Morria-se cedo.
Ou nascia-se tarde,
sem tempo de ver crescer filhos e netos.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.
Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel,
da Nokia, da Samsung ou da Siemens, tanto faz,
que as novas tecnologias quando nascem 

(não) são para todos!
Ou talvez houvesse stresse
mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, essa coisa é tão velha como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.
A esperança média de vida é um artefacto estatístico.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
os ferroviários também punham bombas.
Nas linhas de caminhos de ferro.
Matavam os seus postos de trabalho
em nome da liberdade.
Punham bombas para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem. 

Resistência ao ocupante nazi.
Hoje seriam caçados como terroristas internacionais.
Não sou ferroviário 

nem resistente 
nem terrorista.
Nem sequer anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.
Este país, bom aluno da Europa, 

devia merecer uma letra A.
Nem que fosse Coimbra A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos. 

Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.
É algures no meu país profundo.
Assim como Freixo de Espada à Cinta 
que ninguém conhece.
Não, vim de boleia.
Muito obrigado.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.

── Lisboa, Santa Apolónia ?
── Não, Lisboa, Sociedade Anónima! 
──
corrijo o portuga por detrás do guiché.
── Não, não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
── Lisboa, SA!
Pergunta o portuga, caixa de óculos,
por detrás do bunker envidraçado,
que fala em nome da CP de todos nós.
── Conforto ou turística ? ──
olhando para mim, 
como se quisesse me tirar as medidas.
Ou adivinhar a minha secreta conta bancária.
── 2ª classe, se faz favor!
── Turística.... 2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe.
Gente de 2ª classe.
País de 2ª classe no desconcerto das nações.
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
e a tua, nossa, gente de 3ª classe
nos porões nauseabundos dos cargueiros
que rumavam às Américas da Liberdade!).
Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há conforto e turística,
no Alfa Pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
minha querida professora.
Mas, mais seguro, é no cofre forte da Suiça 
ou num off shore qualquer.
É o que se chama mobilidade social total.
Fugir à condição de besta de carga.
── Vê-se mesmo que o senhor 
é um utente acidental da CP,
já não há 2ª classe.
── Sou um mau utilizador do comboio, 
peço desculpa ──
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.

Apeteceu-me dizer-lhe:
── O senhor, desculpe, 
mas eu sou fã dos comboios.
Tenho uma dívida histórica 
para com os comboios,
que unificaram o meu país.
Pode não ser seu, mas é meu.
Tenho orgulho nele, o meu país.
E tinha que lhe dizer isto.
Vou para Lisboa, SA, 

capital do reino que já foi império,
desço na Gare do Oriente...

Tenho tempo.
Ou penso que tenho tempo.
Nada como esperar um comboio
numa estação de tipo B, Coimbra B
para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.
Uma hora de avanço.
Nada de stresse.
Não penses na morte.
Que o stresse mata, 
como uma bala de Kalash.
Peço uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo,
que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque
como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
que está afixada numa das paredes da estação de Coimbra B.
Alguém ali mandou afixar,
creio que em bronze (sou mau em metais),
o seguinte:
"Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
no dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
o Papa João Paulo II".

O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B ?,
O que diria a corte papal! 
Os grandes deste mundo!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores!
E os vindouros!

Que mais vale um ano de tarimba
do que dez de Cloimbra ?!
Nem pensar.
Por isso lá fica a tabuleta. 
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu.
Ou se calhar para ninguém.
Só para a História.
Afinal, quem lê neste país placas de bronze
afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país, 
perguntaria a minha querida professora ?
Histórias aos quadradinhos
mas não a História com H grande.
Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
desaparafusa a placa 

e leva-a para casa,
para o museu 

ou para a loja de antiguidades.
Não, nada acontece em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II. 
Um dia, em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia,
mas esta é a minha leitura.
Que me desculpem os escribas mais doutos do que eu.
Que me desculpem os lentes de Coimbra.
Chega o Alfa, just in time, à tabela,
como na linha de montagem automóvel pós-taylorista 

da Auto Europa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
na ponta mais acidental da Europa ocidental.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o sr. Taylor
nem os seus principles of scientific management.
Nem a ética protestante nem o alemã Max Weber.
Provinciana e ronceira, a tua terra,
lá diriam o Eça e a minha professora,
que é queirosiana e estrangeirada.
Acelera o Alfa

E bate o meu coração.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros,
IVA incluído à taxa de 5%.
Isto faz bem à minha autoestima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
que engoli, de pé, 

ao balcão do bar manhoso
da estação deprimente de Coimbra B.
── Quanto vai dar ?
── Chega aos 200 ou mais! ──
diz-me um puto de brinco na orelha...
Não apostei. 
Nem gosto de apostas mútuas.
Deixei de ser solidário, 
que me desculpe a Santa Casa da Misericórdia.
── Umas cartas para passar o tempo ?
── Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.
Tenho livros para ler. 
──
Abranda o Alfa,
lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória coletiva.
O caminho de Santiago. 
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
── Chega à tabela. 
Dezassete e seis na Estação do Oriente ──
diz-me o pica, orgulhoso.
── Até que enfim que os comboios partem 
e chegam à tabela,
na nossa terra.
Fico sempre com inveja 
quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
── Já não te calha na rifa, ó Ramalho!,
agora são vinte e cinco cães a um osso, 
ó Ortigão!
── Vai desejar tomar alguma coisa ? ──
pergunta no futuro próximo o homem-do-chá-café-laranjada...
── Um Prozac, por favor.
── Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
── Sim ?
── Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último. Estação de Atocha.

── Atocha ?
── Sim, Atocha, Madrid...Não lê os jornais ?
── Não, acabo de chegar doutro planeta.
── En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes 
de largo recorrido y de cercanías...
── Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos. 
Estou de costas viradas para a Europa.
── Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
se dirigen luego a Chamartín
y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación,
llamada Puerta de Atocha
desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
que va a Andalucía.
..
── Muchas gracias! Vejo que é um homem lido e viajado.
── Só faço a península ibérica.
── Ah!, a jangada de pedra...
── Perdão ?!... 

Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela..
.
── E não tem medo do futuro dos comboios ?
── Não... Sabe, com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida. 
De qualquer jeito.
── Deixe, a vida continua... 
As bombas explodem...
As guerras passam.
Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.

Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto.
Ou penso em bombas nas casas de banho
das carruagens dos comboios.
Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado. 
Empatia. 
Compaixão.
Que é coisa rara, tomar o comboio.
E pensar em bombas.
E ter empatia.
E beber compal.
Houve um tempo em que pensava em minas.
Anticarro. 
Antipessoais.
Minas. 
Bailarinas. 
O ballet da morte.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
É português, é nosso.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café.
Para te tirar o sono.
Antes de partires às 3 da manhã,
para a Ponta do Inglês.
── Ponta do Inglês ?!... 

Já sei, saíste cedo da casa de teus pais,
Ainda menino e moço!
── É a voz do sangue,
o meu lado de marinheiro que nunca fui.
Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.
As picadas. 
Os trilhos.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas,
uma feixe de linhas,
cheiro a óleo, a mijo e a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais. 
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa. 
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.
Mercadoria=carne para canhão,
alguém escreveu, a spray,
um grafito na última carruagem.
na primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.
── Política, meu estúpido!,
a primavera política do Marcelo Caetano.

── Sim, eras jovem.
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris. 
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor,
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
os grandes de Espanha que estão no Prado...
── Paris, es doido, ou quê ?! 
Com a pide à perna,
mais os carabineiros da guardia civil!



Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo. 
O país que mexe, dizem-te.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
quando estou no hotel.
Duas estrelas, o hotel. 
Novo, a cheirar a tinta.
Bom serviço. 
Comida caseira. 
Faces rosadas.
E duas mamocas que cabem na palma da mão.
Mas faz frio à noite.
── Voyeurismo! ── pensa ela,
a rapariguinha do bar. 
Oito páginas,
Entre notícias locais 
e os pequenos anúncios desclassificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatchinha dengosa"...

Linguagem de código.
A semiótica da solidão. 
Do sexo triste e solitário.
── Meu bem, ligue para o meu telemóvel,
que a crise bate a todas as portas,
sem distinção de género, 

etnia, 
cor, 
condição 
ou religião.
── A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
── Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
── Não sei se cresceu bem... 
Não sou de cá.
O Politécnico. 
O túnel de Viriato.
Os colóquios. 
Os debates.
As ideias. 
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O génio do Grão Vasco.
O comércio. 
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Kavaquistão.
O que é feito do RI 14 ?
Não sei, a guerra acabou.
Foi bom para cidade,
A tropa, a guerra, o regimento.
── Ruas, estás de granito! ── 
diz o grafito.
(Ruas é o chefe da tribo, presumo.
Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco).
── Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
── Só falta a Universidade,
que mais de 10 mil estudantes do politécnico já cá temos.
── Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
os sacanas da Covilhã.
──
(Outro lóbi beirão, o da Covilhã).
Registo o orgulho dos miúdos e miúdas
da Associação de Estudantes
da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
que realizam anualmente as suas jornadas.
O país mexe. 
Viseu mexe.
O país profundo mexe. 
O Kavaquistão.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
vestidos de preto,

como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. 
Passei o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.
Revisitei outros infernos.
── O Alfa vai a 140, ó puto.
──
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
leio no tableau de bord.
── Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.
── Porquê ?
Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras. 
Modernização da linha.
Tenho um pensamento piedoso e nobre
para com os trabalhadores anónimos
que constroem as novas linhas 
dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? 
Africanos ?
Guineenses ? 
Ex-camaradas teus ?
Imigras ? 
Clandestinos ?
── Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
── Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria,
O inferno na terra. 
Mas aí são magrebinos.
── O novo proletariado do Século XXI...
── Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.
── Dá o Benfica na esporte tê vê.
── 
E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.
E os flamingos. 
E as ostras,
Les petites portugaises,
acompanhadas com Champagne.
Em Paris.
Comment ils sont toujours gais, les portugais!
O branqueamento de dinheiro
que vai por essa nova Lisboa 
do Próximo Oriente.
A luxuriante estação do Oriente,
desenhada pelo Calatrava.
A ostentação dos ricos.
Just in time
17:06h. 
Cheguei.
Balanço do cliente:
── Pensei que já fosse o TGV. 
O TGV é que é.
── Não é o TGV, 
mas por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular. 
Turística, claro.
Que é como quem diz, 2ª classe.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal &Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.
── Ah!,o  país que via passar os comboios!...
E o puto tinha razão:
── Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo os 210.

Um dia ainda vou ter orgulho na CP.
E na terra onde nasci, ao pé do mar.
E onde nunca vi sequer passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
onde só há moinhos de vento
com búzios do mar
que falam de mouras encantadas.
Nem os comboios chegam a Viseu.
Um abraço aos Viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem,
de Expresso, por esses ipês acima.

Com regresso de comboio,
se não sabotarem o comboio 
que pára em Coimbra B.
E prometo ao barman 
que não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha,
quando voltar a Coimbra B,
outra vez.
Não esquecerei as bombas de Atocha,
nem as minas e armadilhas 
da Ponta do Inglês.

Coimbra-Lisboa, Alfa Pendular, 25/3/2004. 
Revisto, Alfragide, 21 de abril de 2014

© Luís Graça  (2004). Todos os direitos reservados



Joana Graça (2014) - S/ título. Técnica mista 100 cm X 80 cm

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13014: 10º aniversário do nosso blogue (14): Manhã de Páscoa, ao som da Sonata Moonligth, de Beethoven (J. L. Mendes Gomes)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11599: Manuscrito(s) (Luís Graça) (3): O país que via passar os comboios



Lisboa > Museu da Electricidade > 2006

Foto: © Luís Graça (2006). Todos os direitos reservados.


O país que via passar os comboios

14:13h.
Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.
Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes.
Abro talvez uma excepção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros da CP,
Quando havia o cavador, o burro, o boi, a charrua,
O camponês, o zé povinho, camponês e burro,

Besta de carga.
A horta, a saída direta para os campos.
As hortas.

Os azulejos azuis  e amarelos Viúva Lamego 
Nas quatro estações do ano.
O termo apeadeiro eternece-me,

Faz-me lembrar os tempos
Em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios.
Benfica, Porcalhota, Pontinha, 
Sintra, Caneças, Colares ...
Faziam piqueniques, cantavam o fado.
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.
Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
Que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.

E aos operários que as construíram.
Ao zé povinho da cidade e dos campos.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.

Ao Pereira.
Ao Melo.
Ao fontismo.

Ao positivismo.
Ao génio organizativo.
Mesmo que a minha professora 
De Sociologia Histórica das Classes Laboriosas,
Discípula do E.P. Thompson,
Só gostasse dos corticeiros
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses e dos burros e dos bois.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.

Colhiam-se papoilas vermelhas no meio do trigo.
Não havia tempo para se ter stresse.
Morria-se cedo. 
Ou nascia-se tarde.
Sem tempo de ver crescer filhos e netos.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.

Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel,
Da Nokia, da Samsung ou da Siemens, tanto faz.
Que as novas tecnologias quando nascem 
(não) são para todos.
Ou talvez houvesse stresse
Mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, essa coisa é tão velha como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.

A esperança média de vida é um artefacto estatístico.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
Os ferroviários também punham bombas. 

Nas linhas de caminhos de ferro.
Matavam os seus postos de trabalho em nome da liberdade.
Punham bombas para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem.
Resistência ao ocupante nazi.
Hoje seriam caçados como terroristas internacionais.
Não sou ferroviário nem resistente nem terrorista.
Nem anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.

Este país, bom aluno da Europa,
Devia merecer uma letra A.
Nem que fosse Coimbra A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos.
Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.

É algures no país profundo.
Assim como Freixo de Espada à Cinta
Que ninguém conhece.
Não, vim de boleia.

Muito obrigado.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.

── Lisboa, Santa Apolónia ?
── Não, Lisboa, Sociedade Anónima!
 Corrijo o portuga por detrás do guiché.
── Não, não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!

── Lisboa, SA!

Pergunta o portuga, 
Caixa de óculos, por detrás do bunker, 
Que fala em nome da CP.
── Conforto ou turística ?
Olha para mim, como se quisesse me tirar as medidas.
Ou adivinhar a minha secreta conta bancária.
──  2ª classe, se faz favor!
──  Turística...
... 2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe. 

Gente de 2ª classe.
País de 2ª classe no desconcerto das nações.
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
E a tua gente de 3ª classe
Nos porões nauseabundos dos cargueiros
Que rumavam às Américas!).

Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há conforto e turística.
No alfa pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
Minha querida professora.

Mas, mais seguro, é na Suiça ou num off shore qualquer.
É o que se chama mobilidade social.
Fugir à condição de besta de carga.
── Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP,
Já não há 2ª classe.

── Sou um mau utilizador do comboio, peço desculpa ──.
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
── O senhor, desculpe, mas eu sou fã dos comboios.
Tenho uma dívida histórica para com os comboios,
Que unificaram o meu país.
Pode não ser seu, mas é meu.
Tenho orgulho nele.
E tinha que lhe dizer isto.
Vou para Lisboa, SA,

Capital do reino,
Desço na Gare do Oriente...





Lisboa > Museu da Água > Aqueduto das Águas Livres  > 18 de abril de 2013

Foto: © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.

Tenho tempo.

Ou penso que tenho tempo.
Nada como esperar um comboio 

Numa estação de tipo B, Coimbra B
Para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.

Uma hora de avanço.
Nada de stresse.
Não penses na morte.
Que o stresse mata
Como uma bala de Kalash.
Peço uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo.
Que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque 

Como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
Que está afixada na parede da estação de Coimbra B.
Alguém mandou afixar.
Creio que em bronze (sou mau em metais):

"Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
No dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
O Papa João Paulo II"
.
O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B ?, 

O que diria a corte papal!
Os grandes deste mundo!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores!
E os vindouros!
Mas lá fica a tabuleta.
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu.

Ou se calhar para ninguém.
Só para a História.
Afinal, quem lê neste país placas de bronze 
Afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país, perguntaria a minha professora ?

Histórias aos quadradinhos 
Mas não a História com H grande.
Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
Desaparafusa a placa e leva-a para casa,
Para o museu ou para a loja de antiguidades.
Não, nada acontece em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II.

Um dia,  em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
Na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia.
Mas esta é a minha leitura.
Peço desculpa aos poetas mais doutos  do que eu.
Peço desculpa aos lentes de Coimbra.

Chega o Alfa.
Just in time,
Como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
Na ponta mais ocidental da Europa acidental.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência
Das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor,

Nem os seus principles of scientific management.
Nem a ética protestante nem o Max Weber.
Provinciana e ronceira, a tua terra,

Lá diriam o Eça e a minha professora, 
Que é queirosiana e estrangeirada.
Acelera o Alfa.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros,

IVA incluído à taxa de 5%.
Isto faz bem à minha autoestima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
Que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso
Da estação deprimente de Coimbra B.

── Quanto vai dar ?
──  Chega aos 200 ou mais!, ──
Diz-me um puto de brinco na orelha...
Não apostei.
Nem gosto de apostas.
Deixei de ser solidário, que me desculpe a Santa Casa

Da Misericórdia.
── Umas cartas para passar o tempo ?
── Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo. 
Tenho livros para ler. 
Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória coletiva.
O caminho de Santiago.
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.

── Chega à tabela.
Dezassete e seis na Estação do Oriente,
Diz-me o pica, orgulhoso.

── Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela,
Na nossa terra.
Fico sempre com inveja
Quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.

── Já não te calha na rifa, ó Ramalho!,
Agora são vinte e cinco cães a um osso, ó Ortigão!

── Vai desejar tomar alguma coisa ?,
Pergunta no futuro próximo o homem-do-chá-café-laranjada...

── Um Prozac, por favor.
── Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
── Sim ?
── Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último.
Estação de Atocha.
Madrid.

── Atocha ?
── Sim, Atocha...Não lê os jornais ? 
── Não, acabo de chegar doutro planeta.
── En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías
...

── Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos.

Estou de costas para a Europa.
── Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
Muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
Que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
Se dirigen luego a Chamartín
Y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha
Desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
Que va a Andalucía
...

── Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.
── Só faço a península ibérica.
── Ah!, a jangada de pedra...
── Perdão ?!... Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela...

── E não tem medo do futuro dos comboios ?
── Não... Com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida.
De qualquer jeito.

── Deixe, a vida continua... As guerras passam.
Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.
Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto. 

Ou penso em bombas nas casas de banho
Das carruagens dos comboios.
Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado.

Empatia.
Compaixão.
Que é coisa rara, tomar o comboio.

E pensar em bombas.
Houve um tempo em que pensava em minas.
Anticarro. Antipessoais.
Minas. Bailarinas. O ballet da morte.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
Que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café 
Para te tirar o sono.
Antes de partires às 3 da manhã,
Para a Ponta do Inglês.
── Ponta do Inglês ?!...
Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, 
Ainda menino e moço!
── É a voz do sangue, 
O meu lado de marinheiro que nunca fui.
Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.

As picadas. Os trilhos.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas, 
Uma feixe de linhas e cheiro a óleo e a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais.
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa.
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.

Mercadoria=carne para canhão,
Alguém escreveu, a spray,  
Um grafito na última carruagem.
Na primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.

── Política, meu estúpido!,
A primavera política do Marcelo Caetano.
Eras jovem
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris.
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor.
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
Para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
Os grandes de Espanha que estão no Prado...

── És doido, ou quê ?!
Com a pide à perna,
Mais os carabineiros da guardia civil!



Portugal > Alto Douro Vinhateiro, Património Mundial da Humanidade > Vila de Foz Coa > Pocinho > 3/9/2010 > Estação terminal da linha de caminho de ferro do Douro (Porto-Pocinho) > Pormenor dos azulejos da estação, da Fábrica Sant'Anna (fundada em 1741): a vindima...

Foto: © Luís Graça (201o). Todos os direitos reservados.


Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo.
O país que mexe, dizem-te.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
Quando estou no hotel.
Duas estrelas, o hotel. Novo, a cheirar a tinta.
Bom serviço. Comida caseira. Faces rosadas.
Mas faz frio à noite.

── Voyeurismo!  ── pensa ela.
A rapariguinha do bar.
Oito páginas,
Entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatchinha dengosa"...

Linguagem de código.
A semiótica da solidão.
Do sexo triste e solitário.

── Mue bem, ligue para o meu telemóvel,
Que a crise bate a todas as portas,
Sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.

── A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
── Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
── Não sei se cresceu bem...
Não sou de cá.
O Politécnico. 
O túnel de Viriato.
Os colóquios. 
Os debates. 
As ideias.
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O comércio.
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Kavaquistão.

O que é feito do RI 14 ?
Não sei, a guerra acabou. 
Foi bom para cidade,
A tropa,
O regimento.
── Ruas, estás de granito!,
Diz o grafito.
(Ruas é o chefe da tribo, presumo).
Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:

── Apreciem o lado empreendedor dos beirões. 
── Só falta a Universidade,
Que mais de 10 mil estudantes do politécnico  já cá temos.

── Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
Os gajos da Covilhã.
Outro lóbi beirão, o da Covilhã.
Registo o orgulho dos  miúdos e miúdas
Da Associação de Estudantes 
Da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
Que realizam anualmente as suas jornadas.

O país mexe.
Viseu mexe.
O país profundo mexe.

O Kavaquistão.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
Vestidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. Passei o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.

Revisitei outros infernos.
── O Alfa vai a 140, ó puto.
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
Leio no tabelau de bord.

── Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.

── Porquê ?
Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras.
Modernização da linha.
Tenho um pensamento piedoso e nobre 

Para com os trabalhadores anónimos
Que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? Africanos ? 
Guineenses ? Ex-camaradas teus ? 
Imigras ? Clandestinos ?
── Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
── Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, 
O inferno na terra.
Mas aí são magrebinos.

── O novo proletariado do Século XXI.
── Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.

── Dá o Benfica na esporte tê vê.
E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.

E os flamingos. E as ostras,
Les petites portugaises.
O branqueamento de dinheiro
Que vai por essa nova Lisboa do Póximo Oriente.
A luxuriante estação do Oriente.

A ostentação dos ricos.
Just in time.
17:06h.
Cheguei.
Balanço do cliente:

── Pensei que já fosse o TGV.
O TGV é que é.

── Não é o TGV,
Mas por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular.
Turística, claro.

Que é como quem diz, 2ª classe.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal &Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.

── O país que via passar os comboios...
E o puto tinha razão:

── Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo
Os 210.
Um dia ainda vou ter orgulho na CP.
E na terra onde nasci
E onde nunca vi sequer passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
Nem chegam a Viseu.
Um abraço aos Viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem,
De Expresso, por esses ipês acima.
Com regresso de comboio.

Se não sabotarem o comboio que pára em Coimbra B.
E prometo ao barman

Que não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha.
Quando voltar a Coimbra B.

Outra vez.
Não esquecerei as bombas de Atocha.
Nem as minas e armadilhas da Ponta do Inglês.

25/3/2004. Revisto nesta data.


_______________

Nota do editor:


Último poste da série > 14 de maio de 2013 >Guiné 63/74 - P11566: Manuscrito(s) (Luís Graça) (2): Humor com humor se (a)paga: RIP... Requiescat In Pace... Lápides funerárias da minha coleção!