segunda-feira, 2 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18477: Notas de leitura (1054): Colóquio Internacional "Bolama Caminho Longe" (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Na década de 1990, no âmbito de uma iniciativa destinada a revitalizar a cidade de Bolama, realizou-se um colóquio internacional onde houve intervenções de muitíssima boa qualidade, tem todo o cabimento dar-lhes aqui guarida.
Neste texto refere-se concretamente a folha "Fraternidade", um caso admirável de solidariedade com as vítimas cabo-verdianas a sofrerem uma longa e penosa estiagem; e também a importância dos Gans, porventura o caso mais bem-sucedido de mestiçagem cultural que ocorreu na Guiné entre os séculos XIX e XX.

Um abraço do
Mário


Um importante evento cultural: 
Colóquio Internacional Bolama Caminho Longe

Beja Santos

Aqui funcionou o tribunal de Bolama, capital da Guiné

A publicação sobre o Colóquio Internacional "Bolama Caminho Longe", subintitulado "Bolama entre a generosidade da natureza e a cobiça dos homens" foi dada à estampa pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Guiné-Bissau, em 1996, tendo como coordenador o investigador Carlos Cardoso. É um documento extenso, com grane riqueza e pluralidade de opiniões. Vamo-nos cingir a duas intervenções da segunda parte, intitulada “Bolama e a sua contribuição na formação de uma consciência nacional”.

A primeira intervenção foi assinada por Benjamim Pinto Bull, trata-se de uma releitura da folha “A Fraternidade”, publicada em Bolama em 1883, iniciativa do cónego Marcelino Marques de Barros e Alfredo da Silva, que aparecem como signatários de uma peça dedicada ao eminente linguista português Adolfo Coelho. O que levou a esta publicação?

Havia fome em Cabo Verde e o Cónego tomou a iniciativa de sensibilizar toda a população da Guiné pedindo auxílio para as vítimas, assim apareceu em 31 de Outubro de 1883 esta folha A Fraternidade, Guiné a Cabo Verde. Folha destinada a socorrer as vítimas da estiagem. Tratava-se de uma folha de 4 páginas e a sua tiragem era um verdadeiro recorde para a Guiné, 10 mil exemplares, atenda-se igualmente ao número reduzidíssimo dos funcionários da Imprensa Nacional em Bolama, em 1883. A mensagem principal era a de partilhar a dor do outro.

Tratou-se de um empreendimento a todos os títulos inéditos, nele participaram portugueses e franceses, guineenses e cabo-verdianos, coisa nunca vista seis mulheres escreviam na folha, foi um ajuntamento e tanto: cónego, governador, chefes de serviços e pequenos funcionários, oficiais de alta patente ao lado de sargentos, um agente consular, gerentes de casas comerciais e pequenos comerciantes. E também coisa nunca vista, até não se atendeu muito à hierarquia, o Administrador do Concelho de Buba, Capitão António José Machado, não hesitou em reconhecer no seu depoimento a incapacidade do governo do reino para resolver o conflito entre Fulas e Mandingas.

O impacto material, os socorros financeiros, os agradecimentos são largamente documentados. Uma citação do que veio do Governo-geral da Província de Cabo Verde: “As estreitas relações e laços de amizade que outrora ligavam o distrito da Guiné a Cabo Verde não minguaram nem enfraqueceram com a sua separação. Disso dá uma prova frisante o ato humanitário e generoso dos habitantes da Senegâmbia portuguesa”.

Já demoradamente se falou no nosso blogue de uma das figuras mais prestigiantes da cultura guineense do século XIX, Marcelino Marques de Barros (1844-1929) a quem a Guiné e Portugal não tratam com o devido carinho, dada a monumentalidade da sua obra na evangelização e nas ciências sociais e humanas. Fez parte de comissões importantíssimas, foi o primeiro ensaísta da entidade guineense, poliglota em termos de línguas africanas faladas na Guiné, autor do primeiro dicionário português-crioulo, com 5420 palavras. João Dias Vicente escreveu um trabalho muito apurado subordinado ao título “Subsídios para a bibliografia do sacerdote guineense Marcelino Marques de Barros”.

Investigação igualmente importante é a de Filomena Miranda e intitulada “Grandes famílias luso-africanas guineenses ou Gans do século XIX: o seu papel na integração urbana de autóctones – subsídios para o seu estudo”. Gam é um termo usado no crioulo da Guiné-Bissau para designar a casa de uma determinada família. No século XIX e ainda no início do século XX o termo era usado para se referir às casas das grandes famílias luso africanas das praças na Guiné. Assim, até muito recentemente (anos 1950/1960) ouvia-se dizer Gam Pinto, Gam Martins, Gam Carvalho para se referir às casas de família de Pinto, Martins ou Carvalho (abro parêntesis para dizer que no regulado do Cuor havia e há Gam Gémeos, na orla do Geba Estreito, servia-me do ancoradouro para utilizar o Sintex na época das chuvas). Gam é portanto o termo usado para designar local, sítio onde vive determinada família.

Filomena Miranda analisa as grandes famílias das praças de Cacheu, Bissau e Bolama. Nas praças podiam-se encontrar dois tipos de famílias. Um, que ainda estava em termos culturais e económicos muito ligado às etnias de origem, caso das famílias dos “grumetes”, que viviam um processo de assimilação (o grumete, segundo alguns autores é o meio termo entre o cristão e o gentio). O outro, a grande família luso-africana que vivia no centro das praças, na sua grande maioria mestiços de autóctones com portugueses, cabo-verdianos e outros, apresentavam um acentuado grau de assimilação de valores europeus. A língua utilizada pelos membros da família era o crioulo.

O Gam terá as suas origens nos empreendimentos comerciais que se deram na Costa da Guiné a partir do século XV. Recorde-se a figura dos lançados ou tangomaus. Teixeira da Mota refere-se aos tangomaus como portugueses que viviam na Guiné à margem das leis, coabitando e cruzando-se com os nativos, e que deram origem aos chamados filhos da terra e que se deslocava com grande liberdade entre as populações africanas. As mulheres dos portugueses eram conhecidas por nharas, auxiliavam os seus parceiros nas transações, colaborando como intérpretes de línguas e culturas. O mesmo papel tiveram os seus filhos, chamados “filhos da terra”, os grumetes e os cristãos.

No século XIX, ao longo do Rio Grande de Buba desenvolveram-se feitorias que assentavam a sua economia na produção e exploração da mancarra. Os seus proprietários eram luso-africanos, portugueses e franceses que utilizavam trabalhadores de várias etnias, principalmente os mancanhas. É à luz deste panorama económico que os Gans se organizaram dando resposta ao sistema de exploração. O Gam integrava o páter-famílias, a mulher, os filhos, os “mininos di criaçon” e os empregados. Daí, como sublinha a autora, o importante papel social do Gam. Neste lugar funcionava a escola a que tinham acesso os autóctones na Guiné, convém recordar que as escolas públicas eram escassas e que as primeiras escolas femininas apareceram em 1881. Os Gans foram locais de educação e preparação de crianças guineenses que aos poucos iam fazendo a sua integração no meio urbano. Também deste modo se fermentou a mestiçagem cultural.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18469: Notas de leitura (1053): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (28) (Mário Beja Santos)

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