quarta-feira, 4 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18485: Bibliografia de uma guerra (88): Entender o pan-africanismo para melhor conhecer a guerra em África (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Os historiadores da descolonização portuguesa quando descrevem o pano de fundo em que germinaram os movimentos independentistas das colónias portuguesas privilegiam a formação ideológica desses quadro, designadamente em Lisboa, entre o pós-guerra e o fim da década de 1950, não esmiuçando a atração sentida, por muitos desses líderes, pelo fenómeno do pan-africanismo e as suas especificidades.
Julião Soares Sousa, na sua biografia de Amílcar Cabral, teve a preocupação de contextualizar como pai do fundador do PAIGC encontrou na fórmula da unidade Guiné-Cabo Verde uma resposta aos movimentos federativos que estavam a surgir em plena África Ocidental, em que a Guiné-Conacri e o Senegal se envolveram, embora tenha sido sol de pouca dura.
Vejo como da maior utilidade este olhar em relance sobre a germinação do pan-africanismo para melhor se entenderem que os ventos da história também sopraram de feição para catapultar o independentismo à ação direta. Como aconteceu, e com os resultados conhecidos.

Um abraço do
Mário


Entender o pan-africanismo para melhor conhecer a guerra em África (1)

Beja Santos

Em 1959, a renomada coleção "Que Sais-Je?" publicava um volume sobre o pan-africanismo. Vale a pena relê-lo, de forma sumária, para melhor conhecer o pano de fundo de tudo quanto veio acontecer no continente africano a partir dos anos 1950 e o seu impacto, direto e indireto, na organização dos movimentos independentistas das colónias portuguesas. Mais útil se torna a leitura se se tiver em consideração que a Conferência de Bandung ocorrera escassos anos antes. Esta conferência teve um papel simbólico ao manifestar solidariedade africo-asiática, depois, como se verá, o pan-africanismo seguiu a sua própria via, ocorreram acontecimentos vertiginosos sobretudo quando o Gana se tornou independente em Maio de 1957. Recorde-se que no final da II Guerra Mundial os únicos estados independentes africanos eram o Egito, a Libéria, a União Sul-Africana e a Etiópia. Depois da independência do Gana foi um corrupio de independências, a Líbia, o Sudão, Marrocos, a Tunísia e a Guiné-Conacri e previa-se logo para 1960 o Togo, os Camarões, a Serra Leoa e a Nigéria, bem como a Somália.

Em Julho de 1958, em Cotonou (Benim) o tema do pan-africanismo agitou-se no congresso constitutivo do Partido do Reagrupamento Africano. O pan-africanismo era já tema recorrente noutras conferências, nos motins de Léopoldville, no nascimento da união Gana-Guiné-Conacri, na criação da Federação do Mali… O mínimo que se pode dizer é que este fenómeno político tornara-se numa das forças mais importantes da vida africana.

No entanto, o pan-africanismo não nasceu em África, veio do Sul dos Estados Unidos e das Antilhas Britânicas, o que pareceu gerar confusões de ter havido um pan-africanismo britânico ou até mesmo um pan-africanismo francês. Houve sonhos à volta desta unidade que se previa para toda a África mediante federações de Estados diferentes, falava-se na época mesmo nos Estados Unidos de África. O tempo se encarregou de desfazer ilusões e equívocos, de todas essas tentativas federativas só ficou uma, a Tanzânia.

No início o pan-africanismo não passa de uma pura manifestação de solidariedade entre os negros de origem africana das Antilhas Britânicas e dos Estados Unidos da América. O pioneiro dos pioneiros foi Sylvester Williams, um advogado de Trinidad, que chegou a ser conselheiro dos chefes bantos da África Meridional. Em 1900, aquando da exposição universal de Paris, Williams tomou a iniciativa de convocar para Londres uma conferência para protestar o açambarcamento de terras africanas pelos europeus. Foi nesta reunião que pela primeira vez se soletrou a palavra pan-africanismo. Por esse tempo, desenhava-se nos Estados Unidos um movimento de emancipação de negros, é preciso encontrar a sua origem antes mesmo da guerra de Secessão (1861-1865), no movimento abolicionista. Pouco antes do fim da guerra da Secessão, o Congresso de Washington votou a emenda que permitiu abolir a escravatura em todo o território norte-americano. Os vencidos, os Estados do Sul, tinham um sistema económico inteiramente baseado na plantação e na mão-de-obra escrava. Libertos, sem qualquer formação técnica, nem utensílios, sem ajuda nem apoios de qualquer ordem, os antigos escravos viveram tempos extremamente penosos. Os brancos do Sul discriminaram-nos da vida política, foram os anos de terror em que pontificava o Ku-klux-klan.
É nesta atmosfera que vai emergir W. E. Burghardt du Bois, doutor da universidade alemã de Heidelberg, professor de sociologia na universidade Atlanta, um aristocrata.

 W. E. Burghardt du Bois

Os seus livros destinavam-se a uma elite intelectual negra. O norte-americano Booker Washington, fundador da National Business League era o mentor da ideia de que os negros, desprezados pelos brancos, deviam lançar-se nos negócios, de forma independente, o que mereceu o aplauso dos brancos do Sul, a iniciativa falhou enquanto a popularidade de du Bois crescia, este subordinou o problema do negro americano ao grande ideal do pan-africanismo, o problema era a cor, mas o combate dos negros não era nem nas Antilhas nem em África era nos Estados Unidos. Em 1908, com a ajuda dos brancos liberais, du Bois fundou a National Association for the Advancement of Coloured People, uma sociedade que juntava os elementos brancos hostis à segregação racial e os negros que se opunham ao programa de Booker Washington. A história veio confirmar que du Bois tinha um elevado sentido premonitório, foi um verdadeiro visionário. Ele preconizava coisas como esta, em 1920, acerca da mudança da carta política africana:  
“É evidente que, com vista ao desenvolvimento da África Central, o Egito deve ser livre e independente, na mesma via que leva a uma Índia livre e independente, enquanto Marrocos, a Argélia e a Tunísia e Trípoli devem manterem-se ligadas à Europa e modernizar-se na independência”.
A ligação dos negros americanos com as suas origens africanas é obra de du Bois. De facto, o movimento de repatriamento dos negros para a Libéria foi sobretudo animado pelos brancos e tomou uma dimensão de deportação dos negros que os Estados do Sul desejavam desembaraçar-se.

Outra figura a considerar é Marcus Garvey, um jamaicano demagogo, uma espécie de messias negro que extorquiu dinheiro aos seus seguidores para financiar os seus projetos delirantes. Fundou a Universal Negro Improvement Association com o objetivo de unir todos os negros num só povo, opunha ao racismo branco um verdadeiro racismo negro e fundou a sua própria igreja, a African Orthodox Church em que os anjos eram negros e o diabo branco. Durante um meeting monstro que teve lugar em 1920 no Liberty Hall de Nova Iorque, Garvey lançou a sua famosa “Declaração dos Direitos dos Povos Negros do Mundo”, preconizou o progresso de todos os negros a África, a mãe pátria. Mas tudo acabou mal.

Esse livrinho de que aqui temos vindo a fazer referência enumera os primeiros congressos pan-africanos desde 1919 até ao importante V Congresso Pan-Africano de 1945, que se realizou em Manchester, nele estiveram presentes Kwame Nkrumah, o primeiro dirigente do Gana, e George Padmore, importante conselheiro de Nkrumah, bem como Jomo Kenyatta, que virá a ser o senhor todo-poderoso do Quénia.

 Kwame Nkrumah, o primeiro dirigente do Gana

As resoluções deste congresso denunciavam sobretudo as divisões territoriais de África, a exploração económica colonial destinada a desencorajar a industrialização. Dirigiu-se uma declaração às potências coloniais referindo claramente a Carta do Atlântico e a necessidade de pôr termo ao colonialismo.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18464: Bibliografia de uma guerra (87): Walt, por Fernando Assis Pacheco (1937-1995), jornalista, tradutor, escritor e poeta (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Com a enorme diáspora caboverdeana, espalhada por Angola, São Tomé, Guiné e menos um pouco por Moçambique, perfeitamente adaptados nesta vivência, foi também muito provavelmente uma grande inspiração panafricanista para Amílcar Cabral, e no íntimo para muitos caboverdeanos.

Daí, Amílcar ter colaborado directamente para a formação de movimentos com angolanos, guineenses e caboverdeanos.

Não foi uma nem duas vezes, foi muito mais vezes que ouvi a opinião a guineenses e caboverdeanos que estavam esperançados que a guerra de Angola, Unita/MPLA, acabasse para Angola absorver os muitos engenheiros e técnicos sem trabalho nos seus países.

Verifica-se hoje, que nem entre os PALOP há um bom entrosamento "panafricanista".

Talvez um dia!