1. Em mensagem do dia 2 de Abril de 2018, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos este seu artigo de opinião:
Danças e contradanças da “clara certidão da verdade”
Beja Santos
Importa previamente esclarecer que nunca deixei de tecer louvor ao levantamento laborioso que Armando Tavares da Silva (ATS) procedeu com a sua obra “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926”[1], é um dos mais bem-sucedidos trabalhos de tratamento documental para um período que não atinge meio século. Expus as minhas críticas desde a primeira hora quanto a duas considerações de fundo que ele elabora, a meu ver sem nenhum fundamento: a contenda entre funcionários e comerciantes, podendo agrupar-se à primeira falange os militares; e a procura de analogias entre três graves tumultos que ocorreram na península de Bissau em 1891, 1894 e 1915 com os acontecimentos posteriores da subversão e luta armada, fenómeno, que a meu ver, nada tem a ver com a natureza das rebeliões que ATS refere.
Creio que já disse o suficiente para contestar qualquer validade à contenda entre militares e funcionários versus comerciantes e talvez proprietários agrícolas. Nunca houve compartimento estanque entre estes grupos sociais e parece-me desajustado trazer para a exemplificação o comportamento da Liga Guineense, que já foi estudada por historiadores como Leopoldo Amado, Peter Karibe Mendy e Philip Havik, entre outros. Esta Liga surgiu em 25 de dezembro de 1910, numa assembleia de “nativos da Guiné”, apresentava-se como uma associação escolar e instrutiva, impulsionou a criação de um Centro Escolar Republicano, uma iniciativa que coube a Bernardino Machado, e que teve um papel relevante na propaganda republicana, designadamente nos meios populares lisboetas. A Liga propunha-se trabalhar para o progresso e desenvolvimento da Guiné, era constituída por funcionários e comerciantes. O propósito de criar o Centro Escolar Republicano era o de fazer aparecer escolas para os filhos dos sócios e indigentes. A Liga só admitia nativos integrados num conjunto de categorias sociais: marítimos, artífices, grumetes, empregados de comércio e da indústria; o Centro integrava nativos da Guiné, cabo-verdianos e portugueses. A Liga irá ter um papel altamente polémico ao denunciar os desmandos praticados na península de Bissau, acusando formalmente Teixeira Pinto de ser o principal responsável por mortes e perseguições. Resta perguntar, com tal composição, como é que a Liga era movida por interesses obscuros ou até xenófobos. No seu artigo “Mundasson i Kambansa: espaço social e movimentos políticos na Guiné Bissau (1910-1994)”, publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999, Philip Havik dá a sua interpretação da Liga:
“O primeiro movimento que teve algum significado político no território da Guiné foi a Liga Guineense cuja criação seguiu a Proclamação da República em Portugal. A Liga Guineense cujos membros assumiram um papel de mediadores em conflitos no princípio do século XX era uma associação com fins marcadamente económicos e sociais, criada no seio do pequeno e restrito meio administrativo e mercantil de Bissau e Bolama” e o autor refere a sua ligação a deportados políticos, a cristãos ou grumetes, a figuras conotadas com oposição à política colonial seguida por governadores no decorrer da chamada pacificação. Eram movidos por interesses económicos e não o escondiam: reivindicavam uma redução de impostos e tarifas aduaneiras, chamavam a atenção para casos de corrupção no aparelho administrativo e para excessos no plano militar. Ficamos por aqui, dizendo sem ambiguidades que não se encontra um só fundamento para falar na existência de dois grupos distintos e em permanente contenda, como ATS insinua.
Questão mais graúda são as revoltas em Bissau e a sua analogia com a luta armada. Vamos pegar no que o autor escreve.
A páginas 223, descreve os acontecimentos em Bissau em 1891, os Papéis andam em polvorosa com os grumetes, os Balantas também se envolvem, o comandante militar da Guiné procura pôr ordem, a península de Bissau está em completo tumulto, sucedem-se as insubordinações, as negociações dos revoltosos não têm sucesso, só mais tarde é que se chega a uma modesta conciliação e precária, os revoltosos pedem perdão e as autoridades concedem.
A páginas 327, temos uma nova operação na ilha de Bissau (1894), o governador pede meios terrestres e navais, entra-se pelo território adentro, ataca-se Antula, novo pedido de perdão, novamente concedido, o governador estava a braços com outros problemas na Província.
Estamos agora com as operações de Teixeira Pinto que ATS descreve a partir da página 644, em 28 de abril de 1915 anunciam-se as operações em Bissau, descrição minuciosa. É nessa atmosfera que é dissolvida a Liga Guineense.
Para não cansar mais o leitor, e já que se reproduzem abaixo as duas últimas páginas do epílogo da obra de ATS, resta só perguntar a que propósito é que se encontram, demonstradamente, similitudes entre o que se passou na península de Bissau em 1891, em 1895 e em 1915, um quadro histórico bem definido, com os acontecimentos que se desenvolveram nomeadamente a partir de 1960 em toda a Guiné com a subversão que desencadeou a partir do segundo semestre de 1962 a sublevação da região Sul, alastrando para o Corubal e avançando para as matas do Morés, num quadro histórico totalmente distinto?
Julgo são estas as duas questões essenciais sobre as quais querelei, e sobre as mesmas não pretendo emitir mais opinião.
____________
Notas do editor
[1] - Vd. postes de:
30 de junho de 2017 > Guiné
61/74 - P17526: Notas de leitura (973): “a Presença Portuguesa na
Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016
(1) (Mário Beja Santos)
3 de julho de 2017 > Guiné
61/74 - P17536: Notas de leitura (974): “a Presença Portuguesa na
Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016
(2) (Mário Beja Santos)
7 de Julho de 2017 > Guiné
61/74 - P17554: Notas de leitura (975): “a Presença Portuguesa na
Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016
(3) (Mário Beja Santos)
10 de julho de 2017 > Guiné
61/74 - P17563: Notas de leitura (976): “a Presença Portuguesa na
Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016
(4) (Mário Beja Santos)
14 de Julho de 2017 > Guiné
61/74 - P17582: Notas de leitura (977): “a Presença Portuguesa na
Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016
(5) (Mário Beja Santos)
17 de julho de 2017 > Guiné
61/74 - P17591: Notas de leitura (978): “a Presença Portuguesa na
Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016
(6) (Mário Beja Santos)
e
21 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17610: Notas de leitura (979): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (7) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 29 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18465: (Ex)citações (332): Comentário do historiador Armando Tavares da Silva ao Poste 18460: Notas de leitura (1052) de Mário Beja Santos
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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