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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934. São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje ignorados ou mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

Contos com mural ao fundo: 
nada como ter um bom pai

por Luís Graça

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (à compita), no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!... E era  competitivo!

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso velho mestre-escola, ou o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa. Como o Jorge,o Nando e todos os demais da sua geração...

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o historiador da terra, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o senhor Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado... uma amante! 

− Vinte e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho − confidenciou o Jorge.

− Era assim que os "industriais" faziam... para salvar as aparências... Mas… exilado, o Ulisses, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

  À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como se costuma dizer em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do 'Pandita' Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube isso muito mais tarde... Também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do senhor Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e promissores, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

− Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadamizada.− relembrou o Jorge.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a crescente abertura da economia, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. 

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamentos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era um fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros...).

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, as más línguas do costume, que era "maçon" (coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era).  

− O senhor Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. Claro, nunca o viram comungar, diziam as "cuscas" das betas.

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até por ter uma bomba da Shell).

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo. Nem nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958 o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Em boa verdade, a razão não era essa: ele já movimentava mais dinheiro que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo talento para os negócios, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... 

Comprou e restaurou o melhor palacete da vila, para inveja de muitos. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verosimil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar") e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... 

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos detestavam,  preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores que os roubavam "à grande e à francesa"... 

Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, "antes que fossem ocupadas". 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. 

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam... além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico". 

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). 

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi  uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. Ficou na lista de espera, tendo de voltar à inspeção militar no ano seguinte.  A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1965 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o paizinho, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas − adiantou o Nando.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, conservadora,   beata e amiga dos pobres. 

E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes. 

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o senhor Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Dez contos de réis era muito dinheiro...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá. Nunca fomos à bola um com o outro.

− Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem um nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Fernando. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho − concluiu o  Fernando.

© Luís Graça (2023). Última revisão:  7 de agosto de 2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22644: Os nossos regressos (41): O tempo até aos meus 25 anos e a minha vida de adulto (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do dia 18 de Outubro de 2021, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), continua a falar-nos dos tempos próximos vividos após o seu regresso da Guiné.


O REGRESSO (3)

Os dias longos que vivi até aos 25 anos, idade do meu regresso, têm uma dimensão maior na minha memória do que os dias posteriores da minha vida de adulto, quando o tempo começou a fugir (tempus fugit). Os dias anteriores, da infância, adolescência, juventude foram dias de crescimento, de conhecimento, de reflexão, de rebeldia, à espera da independência, da liberdade e da mudança.

A vida militar pelo tempo excessivo que me ocupou e por me ter enviado dois anos para uma zona de guerra noutro continente,  partiu-me a vida em duas partes, que tive dificuldade em ligar quando regressei.

O passado volta do fundo da memória e ganha uma dimensão muito grande, longos dias os da infância, da adolescência, longos dias os da juventude passados em Portugal ou na Guiné.

Decidido a ter noites mais bem dormidas, saí da Pensão Mirandesa e fui para uma hospedaria na parte superior da rua Santa Catarina, bastante perto do trabalho, que era gerida por uma senhora "balzaquiana" solteira ou divorciada, já não sei, expedita e organizada. Fiquei num quarto individual com bom aspecto e condições, como no geral toda a casa.

Nesse tempo muitos solitários enchiam essas pensões e hospedarias legais ou ilegais, iam convivendo uns com os outros e por vezes fazendo boas amizades. Hoje não será muito diferente apesar das redes sociais.

Ao jantar, sempre bem servido, sentados à mesa, na hospedaria da D. Fernanda, estavam os seguintes comensais:
- Uma jovem atraente pela sua beleza e pela forma cuidada como se vestia e cuidava do cabelo, do rosto e da pele, que se dizia esteticista. Bem educada, procurava cultivar boas relações com todos.
- Um cabeleireiro de senhoras, divorciado, regressado há algum tempo de Angola, com cerca de 40 anos, que trabalhava na parte baixa da rua, um cavalheiro muito educado e sempre com boa apresentação.
- Um enfermeiro, divorciado, alto e forte, com cerca de cinquenta anos, regressado da África do Sul, que vivia num quarto com uma moça roliça e com pouca graça, sentada ao seu lado. Este senhor era um pouco abrutalhado, para uma profissão tão delicada, e grosseiro na sua relação com a namorada, já que por vezes, em frente de todos a descompunha por ela não arranjar trabalho. A "gata borralheira" teria o antigo quinto ano liceal mas somente tinha conseguido "esse emprego", de viver com o enfermeiro, que tirando-a de trabalhos, não lhe dava grande tranquilidade. Tinha apesar de tudo a atenção compassiva das senhoras da casa, enfim a solidariedade feminina existe.
- Um mecânico de automóveis, sociável e falador, que trabalhava numa oficina próxima.
- Dois provincianos, um do oeste, outro do leste de Trás-os-Montes, já com a tropa feita, a trabalhar nas Caixas de Previdência.
- De mim nada direi, já todos me conhecem um pouco.

Do meu colega, que trabalhava noutra instituição, e só o conheci lá, direi que era um coscuvilheiro maldizente que tendo andado a investigar a tal jovem esteticista, seguindo-lhe os passos, terá descoberto, segundo me disse, que ela não era esteticista mas sim manicure numa barbearia da rua da Constituição e que muitas vezes vinha um senhor de alguma idade buscá-la de Mercedes, perto da hospedaria.

Ele, penso que estaria frustrado por não ter as atenções da Cinderela mas na verdade ele não merecia mais do que uma bruxa má.

Por vezes em tardes de domingo que não saía fui convidado por essa jovem para estar com ela no quarto, que era grande, bem mobilado, com um toque feminino que o tornava mais acolhedor, para conversar e ouvir música, com as portas abertas, não fosse o diabo intrometer-se na nossa relação.

Tinha um bom relacionamento com ela e com o cabeleireiro, embora me parecesse que entre eles dois o relacionamento era mais próximo, o que seria natural dado que as suas profissões eram afins. Com os outros ia convivendo sem atritos.

Gostava de estar na hospedaria da D. Fernanda. O alojamento era bom, a comida também, o ambiente não era mau e estava a poucos minutos a pé, do trabalho.

Porém um dia, com muita pena para mim, fiz as malas e fui para uma casa de hóspedes mais barata, pois dei-me conta que não me sobravam muitos trocos para outros extras depois de pagar a mensalidade.

Esta ficava num quarto andar, de um prédio antigo, sem elevador da rua Formosa. Era uma casa modesta, gerida por um casal natural da cidade, ambos magros e de aspecto humilde. Fui alojado num quarto com outro hóspede um jovem de Pampilhosa da Serra que trabalhava e estava a acabar o curso de contabilidade. Gostei da companhia dele, era inteligente e trabalhador, e admirei a sua grande força de vontade já que ele, segundo contava, tinha por vezes dores de cabeça terríveis à noite devido a ter tido menigite, mas continuava a lutar pela vida, em duas frentes.

A casa entre os hóspedes era conhecida pela pensão da morte lenta. Já não sei se servia jantares, pois recordo-me de ir muitas vezes fazer essa refeição com outro hóspede, um bom camarada que tinha um trabalho técnico, natural de Fafe, a um restaurante próximo e barato.

Por vezes ia com ele ter com uns seus amigos e conterrâneos, dois rapazes próximos das nossas idades que viviam juntamente com uma irmã numa casa próxima. Trabalhavam na EDP, a irmã já não sei se trabalhava ou estudava, os três eram altos, muito agradáveis no convívio, muito parecidos, física e psicologicamente, até na forma de sorrir me pareciam iguais. A irmã um pouco mais discreta, por ser mulher, não deixava de inspirar uma abertura e franqueza idêntica aos irmãos. Havia uma grande harmonia entre eles talvez também por serem próximos na idade. Com eles e com o outro amigo sentia-me em família.

As nossas conversas versavam sobre o dia a dia, as nossas origens, as raparigas, o trabalho e pouco mais. Já todos tínhamos feito a tropa e experimentado as guerras de África mas evitávamos falar disso, porque eram memórias recentes que magoavam.

As minhas andanças por diferentes casas e ruas da cidade, irão acabar brevemente para me fixar durante alguns anos numa casa.

Até breve.
Francisco Baptista

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22600: Os nossos regressos (40): Os nossos irmãos são sempre cópias desiguais de nós próprios, os amigos podem preencher um espaço de compreensão e entendimento que nem sempre encontramos em família (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22600: Os nossos regressos (40): Os nossos irmãos são sempre cópias desiguais de nós próprios, os amigos podem preencher um espaço de compreensão e entendimento que nem sempre encontramos em família (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem de 4 de Outubro de 2021, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), continua a falar-nos dos tempos vividos após o seu regresso da Guiné.


O REGRESSO (2)

Os nossos irmãos são sempre cópias desiguais de nós próprios, tanto na forma como no feitio, pois na sua génese, foram buscar características que formam a sua personalidade a antepassados diferentes pelo que estão determinados a ter outras peculiaridades comportamentais que muitas vezes se chocam com as que nós recebemos. Sem sermos inimigos, o sangue comum procura impedi-lo, pela vida fora, vamos estabelecendo pontes de entendimento mas nunca nos completamos e temos tendência a desentender-nos.
Os amigos podem preencher um espaço de compreensão e entendimento que nem sempre encontramos em família.

Nesse tempo tinha amigos que a necessidade de convívio criava, amigos de café, de farras ou de ocasião. Havia ainda os amigos da terra para matar saudades de expressões idiomáticas comuns e de vivências passadas na aldeia. Faltavam-me amigos que se interessassem por assuntos, fora da rotina dos dias, que dessem outra dimensão à vida, políticos, artísticos, intelectuais.


O Barcelos Monteiro veio preencher um pouco esse vazio. Nesses anos pós 25 de Abril, em que a democracia se ia consolidando aos solavancos, ele será uma referência pessoal com quem vou interagindo, em acordo ou desacordo. Sendo muito loquaz , apesar da ideologia política que defendia tenazmente, releva as diferenças políticas, para falar com quem não queira fugir ao diálogo. Como amigo, procura também pôr-me em contacto com personalidades que vai conhecendo e que me possam interessar.

Nítida no ângulo das esquinas –
ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.


As Mãos e os Frutos
Eugénio de Andrade


Li este poema e todos os outros desse livro, na adolescência, com a sofreguidão e o entusiasmo de uma grande descoberta. Sendo um bom leitor tive desde cedo uma grande admiração por escritores e poetas, génios, cheios de talento que nunca encontrava ou porque já tinham morrido ou porque moravam longe de mim .

Eu não sabia, até que um dia o Barcelos Monteiro me disse que o Eugénio de Andrade, sem dúvida, um dos maiores poetas portugueses do século XX, também trabalhava nos nossos Serviços, onde era conhecido por José Fontinhas, o seu nome de baptismo. Era inspector dos serviços pelo que não era visto muitas vezes, na sede da instituição, por causa do seu trabalho e do seu feitio reservado. Um dia cruzámo-nos com ele e o meu amigo com o entusiasmo, que lhe era próprio, apresentou-mo, cumprimentámo-nos, ele com indiferença ou até frieza. Enfim, não conheci o Eugénio de Andrade, conheci somente o José Fontinhas, Inspector dos Serviços-Médico Sociais, insensível e exigente, segundo ouvi dizer. Senti-me bastante frustrado e consolei-me com a ideia que ele estaria ocupado a construir mais um belo poema.

Vivia dentro de si mesmo e não precisava de sair para conviver, pois sendo um artista, teria uma vida interior muito rica.

Momentos agradáveis e relaxantes tínhamos por vezes, quando um chefe de divisão nos convidava para o seu gabinete, para uma conversa amena, sem política como tema. Era um homem conservador, culto, muito educado, distinto no trajar e na fala, com tiques de ascendência nobre, real ou fictícia, casado com uma médica, o que nesse tempo dava sempre outra distinção.

Quando fui para o Porto fiquei hospedado na Pensão Mirandesa, que já conhecia, situada na Avenida Rodrigues de Freitas, numa casa antiga de dois pisos e cave. Fiquei num quarto onde dormiam mais dois hóspedes diários, que como eu trabalhavam na cidade.
Os hóspedes da Pensão Mirandesa. na sua maioria originários do Planalto de Miranda (do planalto de Miranda. fazem parte os concelhos de Miranda, Vimioso e Mogadouro), sentiam-se em casa, pois ela era tal qual uma casa transmontana. no trato. nos afectos, na cordialidade, no ambiente familiar, na alimentação, na lareira sempre acesa no tempo frio.


Alguns vinham de carro, a maioria de comboio, traziam notícias, das gentes, das sementeiras, das colheitas, da construção das Barragens no Douro Internacional. Alguns traziam couves, batatas, castanhas, garrafões de vinho, galinhas, presunto, linguiças, alheiras, etc.

Os donos da pensão eram um casal, com cerca de 40 anos, natural de uma freguesia do concelho de Miranda. Ela era uma matriarca simpática que impunha respeito, que por ser paraplégica, tinha ficado assim com o parto da filha, andava sempre numa cadeira de rodas e dava as ordens necessárias para o bom funcionamento da casa.

Ele com um passado de contrabandista, de passador de emigrantes clandestinos e de políticos, alguns comunistas, para a França, conservava ainda essa agilidade de andarilho de todo o terreno. Amigo de muita gente estava sempre na disposição de desenrascar os clientes e amigos, no que fosse necessário.

Na sede da Pide, que ficava no Largo Soares dos Reis, à vista da pensão, já tinha sido maltratado e passado alguns dias preso, por causa da sua actividade como passador. No entanto, o Ilídio, assim se chamava, era um homem sem medo, de tal forma, que nesse ano de 1973, era na cave da sua casa que os dirigentes dos sindicatos dos bancários, dos metalúrgicos do norte e mais um ou outro, se reuniam para formar a Intersindical.

Os meus colegas de quarto, um deles trabalhava na mesma rua, no Grémio dos Comerciantes como administrativo, teria mais dez anos do que eu, tinha trabalhado em Angola e estava separado ou divorciado, o outro mais novo do que eu, cerca de cinco anos estava numa escola de condução a aprender a ser instrutor.

Durante alguns meses houve um bom convívio entre os três que se foi deteriorando para mim, porque o mais velho, não sei se perturbado por problemas com a namorada, passou a deitar-se mais tarde e arrastava o mais novo para lhe fazer companhia, o que me deixava menos horas livres de descanso pois eles deitavam se a desoras
Dada a situação resolvi procurar outro alojamento, o que me custou bastante e ao Ilídio e à mulher também, já que havia uma boa relação pessoal e familiar entre nós, há anos que davam hospedagem ao meu pai que vinha com frequência ao Porto, por negócios e ao meu irmão Tomás que era camionista.

O meu irmão quando tinha lugar estacionava o camião, que era grande para transporte de cortiça, do outro lado da rua, entre duas árvores, ficando encaixado numa distância de um palmo atrás e à frente, entre elas. Era um bom condutor de carros e camiões.

Estes dois companheiros de quarto e outros dois mirandeses ainda novos que entretanto se hospedaram na pensão, e talvez outros "soldados" que contrataram, depois do 25 de Abril, querendo tirar proveito da confusão gerada pela revolução, fizeram uma operação rocambolesca para assaltar o Banco de Portugal do Porto. Eu que conhecia bem pelo menos estes quatro penso que o plano terá sido gizado pelo Laurindo (chamemos-lhe assim, o mais velho) que não tendo qualquer ideologia tinha ideias estapafúrdias e terá pensado que iria conseguir com essa acção, alguma folga financeira.

Pintaram duas ou três carrinhas de verde tropa, arranjaram umas fardas verdes do exército, umas pistolas de alarme e uns varapaus pintados a fingir espingardas e dirigiram-se para o objectivo, na Praça da Liberdade, próximo da cervejaria Sá Reis. Terão entrado no banco, a notícia do assalto veio no dia seguinte na primeira página de alguns jornais em letras gordas. Confesso que este meu relato é um pouco fantasiado pois já não recordo os pormenores. Sei que rapidamente, o falso capitão e os falsos soldados, foram todos apanhados à mão.

E assim acabou ingloriamente esta arrojada aventura, que somente por chalaça se pode comparar ao assalto ao comboio-correio do Reino Unido.

Continua...

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22566: Os nossos regressos (39): Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

domingo, 4 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17430: Blogpoesia (513): No Dia dos Amigos (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas do BCAÇ 3872)



1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 3 de Junho de 2017:

Alguém criou um dia para os amigos como se fosse preciso um dia para comemorar a amizade.
Este dia é todos os dias e mal vamos, quando passarmos as amizades para um dia no calendário. Mesmo assim foi pretexto para escrever umas linhas e dar um abraço a todos membros deste blogue.

Um abraço
Juvenal Amado


AMIZADE

Saio de dentro de mim
Pairo sobre o meu corpo
Volteio no éter
Inspiro à minha volta
Explodem!
Novas e velhas recordações
Tantos rostos, nenhum ódio
Os sentimentos tocam-me
Recordo a dor sem a sentir
Sinto os gritos sem os ouvir
Bebo sem engolir
Vejo o que percorri
Caminho mas não sinto o impacto
Um rio corre lá em baixo
Mergulho a pique
Sinto a água mas estou seco
Revisito-me e misturo as imagens
Algumas são só sombras
Adivinho-lhes o perfil
Modelo-lhe as formas
Quase lhes sinto o cheiro
Confuso abro as cortinas
Deixo entrar essa luz
Que clarifica e é continuidade
Que mantém o meu rumo
Que eterniza o sentimento
Estendo as mãos e toco-lhes
Porque a amizade
Essa vai continuar presente.

Para os meus amigos no dia da amizade
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Junho de 2016 > Guiné 61/74 - P17428: Blogpoesia (512): "Hora da sorte"; "Convénio de gansos" e "Renegado...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16912: Inquérito 'on line' (96): "O meu inimigo de ontem nunca poderá ser meu amigo"... Resposta até ao dia 9, segunda-feira, às 18h36...



Guiné > Região de Gabu < Paunca > CCAÇ 11 (1969/74) > c. junho / julho / agosto de 1974 > A paz, depois da guerra, ou a guerra e a paz, como duas faces da mesma moeda... > O fur mil op esp J. Casimiro Carvalho, "herói de Gadamael", no meio dos inimigos de ontem... Fotos do seu álbum fotográfico, sem legendas... (*)

Agradecemos-lhe a coragem e a frontalidade com que, dezenas de anos depois, ele nos deixou ver, digitalizar e publicar essas fotos de inegável interesse documental. Este nosso camarada que vemos aqui a abraçar os inimigos de ontem, foi o mesmo que tinha escrito à mãe, em 6 de junho de 1974 a seguinte missiva:

"(...) Ficou, nesse encontro, determinado que amanhã o inimigo vinha a um quartel nosso visitar-nos, conhecer-nos, nós que nos matavámos [uns aos outros] sem nos vermos. Enfim, agora como está previsto, conhecer-nos-emos, se não houver imprevistos, e eu, que tanto os odiei, com o ódio que ganhei com a guerra, devido ao sangue que vi derramar, irei... talvez - quem sabe ? - ABRAÇÁ-LOS. Sim, porque eles lutaram para defenderem o que por direito lhes pertencia, um chão deles, bravos soldados como nós." (...).

É o mesmo J. Casimiro Carvalho que na batalha de Gadamael pôs a vida em risco para salvar outros camaradas (e nomeadamente o seu capitão) e que chegou a ser ferido.

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



I. INQUÉRITO DE OPINIÃO:

"O MEU INIMIGO DE ONTEM
NUNCA PODERÁ VIR A SER MEU AMIGO"


1. Não, nunca poderá vir a ser meu amigo


2. Sim, poderá vir a ser meu amigo


3. Talvez, depende das circunstâncias


4. Não sei responder


Este é o primeiro inquérito de opinião do ano de 2017... Vá lá, façam, o favor de responder... no canto superior esquerdo do blogue... 

Precisamos de 100 respostas, que é um número redondo... Até ao dia 9, próxima segunda-feira. O encerramento das "urnas" é às 18h36...(**)

O tema foi suscitado pelos postes do José Teixeira (P16905) (***) e do Carlos Vinhal (P16908) (****).


II. Comentário de Carlos Vinhal (****):
(...) E agora chegamos ao que aqui me traz, o inimigo de ontem, amigo de hoje.
Os movimentos de libertação foram criados e dirigidos por africanos portugueses que adquiriram formação académica universitária na capital do império, onde nas barbas do poder se organizaram. Apoiados por potências com ambições estratégicas em África, e acompanhando os ventos e marés que se faziam sentir, não foi difícil começarem a guerra que iria desgastar uns e outros quase até à exaustão. Portugal mobilizou metropolitanos e locais, e os grupos de libertação tentaram localmente arranjar simpatizantes para a sua causa. Os seus quadros tiveram formação de luta de guerrilha principalmente nos países do leste da Europa, acabando por terem no terreno a colaboração activa de especialistas cubanos e o apoio material desses mesmos países e outros.

Dizia Cabral que não lutava contra os portugueses mas contra o colonialismo, logo os quase 9000 mortos do nosso lado foram vítimas dos chamados efeitos colaterais. Alguns dos guineenses, amigos de portugueses e de Portugal, ao passarem-se legitimamente para o lado do PAIGC, movimento pelo qual lutaram, tornaram-se naturalmente nossos inimigos. Pergunto eu: e agora, acabada a guerra, voltaram a ser nossos amigos? Maneira muito romântica de ver a coisa.
Aquele guerrilheiro, que no calor da luta não me matou por caso, é agora meu amigo, também por acaso, digo eu. Se me tivesse acertado, lá se tinha ido a nossa amizade do pós-guerra. (...)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9826: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (9): Cartas de Paunca, SPM 5668, Parte II (J. Casimiro Carvalho, Fur Mil Op Esp., CCAÇ 11, mai-ago 1974)

(**) Último poste da série > 6 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16805: Inquérito 'on line' (95): Texto e contexto: batota, balda, ronha, cobardia, indisciplina, traição?... Ou às vezes, também bom senso, experiência, velhice, sensatez ? (Hélder Sousa, ex-fur mil trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72)

(***) Vd. poste de 1 de janeiro de  2017 > Guiné 61/74 - P16905: Fotos à procura de... uma legenda (80): Inimigos de ontem, amigos de hoje... (José Teixeira)
(...) O que estarão estes dois combatentes a planear?

Um, português, alferes miliciano, comandante em exercício da Companhia algures na Guiné. Outro, combatente do PAIGC. Reencontraram-se em 2013. Localizaram pontos comuns de convivência em barricadas opostas e toca a desenhar no terreno as suas posições estratégicas no passado ano de 1970 em que se enfrentaram em Jumbembem... Conversa amena que solidificou feridas e terminou num abraço.

Infelizmente o africano, funcionário da AD em Iemberém, já faleceu. Quem reconhece o nosso camarada, membro da nossa Tabanca Grande ? (...)


(****) Vd. poste de 2 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16908: (In)citações (104): Inimigos de ontem, amigos de hoje? (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil da CART 2732)

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14882: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (4): Os amigos e amigas que nos ligaram ao nosso mundo (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 12 de Julho de 2015, onde nos fala dos amigos que,  de alguma maneira, foram o suporte moral de muitos de nós, combatentes, enquanto em campanha.

Caríssimos
Não foram apenas a família e as namoradas que nos ligaram ao mundo do lado de cá da guerra, como podem ver nos anexos.

Abraços
Zé Teixeira


OS AMIGOS E AMIGAS QUE NOS LIGARAM AO NOSSO MUNDO

Alguma coisa se tem escrito sobre as noivas e namoradas que viram os seus “amores” partirem para Guerra Colonial. Seguiam-se normalmente cerca de dois anos de separação em que o amor e os afectos eram alimentados pelas cartas e “bate-estradas”,  vulgo aerogramas. Tempo de sofrimento. Tempo que nunca mais passava.

Um camarada meu recebia um montão de cartas sempre que a avioneta chegava com notícias frescas. A sua namorada assumiu o compromisso de lhe escrever todos os dias e ...ele correspondia de igual modo. Teve azar o Miguel. Uma mina traiçoeira roubou-lhe uma perna. Os seus gritos de dor eram entremeados com gritos de desespero porque pensava que ela, a sua querida, não ia querer um manco como marido. Felizmente o drama acabou bem. Hoje são um casal feliz.

E, quantas vezes, o tempo que teimava em não passar, fazia arrefecer o calor desse amor jurado e selado com beijos de saudade. Namoradas que, cansadas de esperar, por quem nunca mais chegava, mandaram o parceiro dar uma volta ao bilhar grande, para desgosto e sofrimento deste. O contrário, creio bem, que também aconteceu.

Os que conseguiram vencer esta difícil etapa tiveram com certeza uma recompensa proveitosa.
As madrinhas de guerra e o seu excelente papel no apoio aos seus afilhados. Algumas, deixaram-se apanhar pelo “cupido” e transformaram-se com o andar dos tempos em namoradas e até esposas. Outras, assumiam o papel de madrinhas de guerra como uma missão humana quando não patriótica. Elas eram raparigas novas cheias de vida, quantas vezes com compromissos de namoro assumidos com outro, eram mulheres casadas e até velhinhas.

Recordo o caso da madrinha de guerra de proveta idade, já avó e viúva que decidiu entrar nesta roda. Deu o seu nome a uma revista fofoqueira da época e lá lhe apareceu um candidato. Ao fim de algum tempo o “atrevidote” pediu-lhe uma fotografia, que teimava em não chegar. Depois foi mais longe e pediu em namoro. Claro que recebeu uma carta da senhora a dizer que aceitava o seu pedido de namoro.

Aproveitou para lhe enviar uma fotografia pessoal e informou-o do seu estado civil. Calculem o estado de espírito com que ficou o nosso camarada.

Havia ainda os amigos e amigas, sem qualquer rótulo, que nos acompanharam com a sua palavra escrita, naquele tempo de sangue, suor e lágrimas.

Há dias em conversa com uma amiga e esposa de um camarada combatente na Guiné, ao tempo, estudante na ESBAP – Escola Superior de Belas Artes do Porto, hoje uma conceituada pintora da nossa praça, disse-me ela que, em determinado ano escolar, os rapazes da sua turma desapareceram. Apenas ficou um porque era deficiente motor. Os outros “voaram” todos para a Guerra Colonial. A turma ficou vazia. A colega e amiga, tomou a iniciativa de manter uma ligação de carinho e amizade com os desventurados estudantes que desde há vários anos eram os seus amigos do dia-a-dia, assumindo o compromisso de lhes escrever a contar as novidades da escola e da terra. A linguagem que utilizou foi a que eles como estudantes de Belas artes melhor entendiam. O desenho com arte e imaginação, como se pode ver nas imagens.

Um dos colegas com quem ela se correspondeu, muitos anos depois, recordou esta forma de estar e devolveu-lhe com carinho alguns dos belos desenhos que recebera na selva africana, que aqui se reproduzem.

Eu fui dos que tive a sorte de ter alguém que de vez em quando me presenteavam com notícias frescas do meu País. Muito lhes devo pela sua presença fraterna e amiga que de vez em quando, dava sinais de vida, a lembrar-me que eu não estava só. A sua forma de escrita era diferente. Liberta de sentimentos amorosos e preocupações, enviavam notícias, comentários, contos e ditos, enfim!
Transportavam-me de novo ao meu mundo.

Acabada a guerra. Regressado ao ninho de afectos. Abraços distribuídos. Algumas cenas do outro mundo, contada. E a vida recomeçou. Cada um de nós seguiu o seu caminho. A amizade e a gratidão, essas ficaram cá dentro de nós, estejam eles ou elas onde estiverem.

Nunca mais pensei nesses amigos e amigas como os tais que se preocuparam com o meu bem-estar durante a guerra. Apenas a amizade ficou mais solidificada.

José Teixeira





(Cortesia de uma amiga que, ao tempo da guerra colonial, era estudante de belas artes. JT)
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Nota do editor

Primeiros postes da série:

26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14799: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (1): Carta aberta aos camaradas da Tabanca Grande: o que fiz (e não fiz) como cofundador e dirigente da associação APOIAR (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

sábado, 8 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 4 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (33)

O Grupo do Cifra

Perdoem lá, mas este texto é um pouco mais longo, pois o Cifra quer apresentar-vos as personagens que o acompanharam durante dois anos neste conflito, em que esteve envolvido, sem nunca ter dado um tiro, e para ele uma granada, era um bloco de ferro que o Curvas, alto e refilão às vezes carregava no bolso.

O Cifra tem fotografias de alguns, mas como devem compreender, não as pode publicar, pois não sabe se estão vivos, o seu estado de saúde, ou o seu estado social, portanto não quer de maneira alguma ferir a sua muito digna personalidade, oxalá estejam vivos, leiam estes textos e se retratem nestas personagens, pois foram os seus companheiros, os seus “heróis”, dos quais guarda as suas imagens, no fundo do seu coração, e o acompanharam em momentos de angústia, amargura, também com muitos sorrisos e às vezes até chorando, durante o tempo em que esteve neste conflito. Esta é a homenagem que lhe presta. Portanto cá vai, com a vossa também muito digna compreensão.

O Setúbal, para o Cifra, era mais do que o companheiro, o militar, o guerreiro ou o amigo, era qualquer coisa como aquele “garoto”, que todos nós tivemos na infância, que vivia na porta ao lado da nossa casa, na mesma rua ou na mesma aldeia, com quem brincávamos, jogávamos à berlinda, à bola, roubávamos fruta do quintal do vizinho, às vezes zangávamo-nos e andávamos à porrada, mas sempre amigos. Sim, era isso tudo, mas adultos e confidentes, pois o Setúbal, contava coisas ao Cifra da sua vida privada com aquela que iria ser a sua esposa amada, e que às vezes o Cifra não queria ouvir e lhe dizia:
- Essas coisas não se devem contar, são coisas tuas e da tua noiva, pensa nelas, nesses momentos que são única e simplesmente vossos, e que ao pensar neles, mais faz fortificar o desejo de a tornar a ver, e deste modo, não a vais esquecer nunca, e o amor entre vocês, cada vez vai ser maior.

Ele ao ouvir isto, começava a chorar, mas ao fim de algum tempo, voltava ao normal, e com a chegada até eles do Curvas, alto e refilão, que vocês já conhecem a sua desafortunada história, de relatos anteriores, que foi abandonado pela sua mãe, que andava “na vida”, ainda criança, e viveu “ao Deus dará”, como é costume dizer-se, sem nunca ter um carinho ou alguém que lhe limpasse o ranho do nariz, e sem nunca ter conhecido a palavra “mãe” ou a palavra “família”, passando quase a sua adolescência em escaramuças, negócios ilícitos e em esquadras e cadeias da capital, a perguntar:
- O que é que passa com este agora? Eu não disse, que depois que veio de férias e viu a noiva, veio um pouco “amaricado?

Mas adiante, o Cifra, o Setúbal e o Curvas, alto e refilão, eram amigos e faziam um grupo unido, era uma espécie de “Trempe”, era um “Triângulo”, a quem outros companheiros, às vezes queriam modificar, como por exemplo, o Mister Hóstia, a todo o momento, nunca perdendo nenhuma oportunidade de tentar convertê-los em bons cristãos, dizendo-lhes:
- Toda a vossa força unida tem que estar ao serviço de Deus, rezem e ajoelhem-se perante Jesus, que é o vosso Salvador, no lugar de andarem sempre a fumar e a beber, só pensarem no mal e nas “bajudas”, que vão ser a vossa perdição.

Como isto não chegasse, o Pastilhas, sempre que via qualquer um deste grupo aproximar-se da enfermaria, logo ia esconder o frasco do álcool, e dizia:
- Bêbados, vão morrer queimados por dentro e eu tenho muito prazer em ir ao vosso funeral.

Claro que o Curvas, alto e refilão, logo lhe respondia, naquela linguagem porca e agressiva:
- Oh pastilhas, deixa-te merdas, pois nós sabemos que às vezes ao fim da tarde, essas faces rosadas na cara, não são só do sol e o teu nariz às vezes também vermelho não engana, o que tu queres é o álcool só para ti.

O Furriel Miliciano, era tratado por este nome, porque era o seu posto militar, mas no tratamento, era simples, amigo, parecendo mais um companheiro, soldado combatente e sofredor. Do seu grupo de combate fazia parte entre outros o Trinta e Seis, o Marafado, o Setúbal, o Mister Hóstia e o Curvas, alto e refilão, e diziam que esse sim, era o líder. Quando saíam em patrulha, ele gostava do grupo, convivia, pois via neles uns “gajos fixes”, que fumavam cigarros feitos à mão, e sempre prontos para uma farra.

O Arroz com Pão tinha as suas queixas, mas passageiras, e no fundo, tirando o roubo do pão e de algum vinho, até gostava deles, pois às vezes ajudavam a descascar batatas, mas só em última necessidade, mesmo quando não houvesse mais ninguém, pois estragavam mais batatas do que o normal e queriam sempre a caneca do café cheia de vinho, às vezes dizendo:
- Fora daqui, vai-te lucro que me dás perca!

O Trinta e Seis, um soldado telegrafista, era um homem adulto no seu proceder, até responsável de mais para a sua idade, tinha algum poder de influência sobre o Curvas, alto e refilão, que o ouvia e só a ele obedecia, sem refilices. Diziam que quando saíam em patrulha, o Trinta e Seis ia sempre junto do Curvas, alto e refilão, e além de se protegerem um ao outro, o Trinta e Seis, controlava-o nas suas, por vezes, descontroláveis acções.

O Marafado, no princípio era alegre, gostava de vinho, e até cantava uns fados desafinados, mas depois que presenciou uma cena de uns prisioneiros mortos, onde os seus corpos foram queimados e enterrados numa vala, nunca mais foi o mesmo homem, para o final era um homem calado e marcado pela guerra, raras vezes se juntava, passava o tempo ouvindo música, o relato do seu Benfica e notícias no seu rádio portátil.

O sargento da messe compreendia o grupo, facilitava o acesso ao bar dos sargentos, talvez porque precisasse da ajuda do Cifra nas contas, pois era este que lhas acertava todos os meses, pois tinham sempre que terminar em zero, sem lucros nem perdas, e ele não era lá muito bom com algarismos, até diziam que era “burro”, passe o termo, pois era uma excelente pessoa, pelo menos para o Cifra.

O Comandante não queria que lhe fizessem a saudação, talvez para não saberem que era comandante e que dava ordens que matavam pessoas, dizia que estavam todos no mesmo barco mas com diferentes responsabilidades, o Cifra mais tarde veio a saber que era um apaixonado pela arte de fotografar, queria respeito, às vezes quando as coisas não corriam bem ficava com cara de Comandante, e quase todos o evitavam.

Também havia as filhas do Libanês que eram importantes para os militares estacionados em Mansoa, havia até quem dissesse que elas eram as causadoras de os militares tomarem banho mais frequentes vezes, vestirem roupa lavada e fazerem algumas vezes a barba, e pentearem o seu cabelo, portanto tinham mais poder e influência nos militares do que os seus superiores, que podiam dizer mil vezes para terem mais higiene pessoal, que a esses mesmos militares não lhes importava qualquer ordem nesse sentido, e que acima de tudo enchiam a igreja de perfume exótico, também se dizia que se não fossem elas a igreja talvez, em alguns dias, ficasse vazia. Talvez não fosse verdade.

Havia o “Life Boy”, de quem ainda não falei, mas irei falar lá mais para a frente, que veio para o aquartelamento algum tempo depois, que parecia um chinês, já sei que vão dizer que só faltava o “chinês”, e tinha uma costela de “Libanês”, pois passado pouco tempo de ter chegado ao aquartelamento, já se andava a fazer a uma das filhas do Libanês, era um pequeno comerciante dentro do aquartelamento.

A menina Teresa era quem escrevia as cartas que a mãe Joana mandava ao Cifra, tinha alguma influência nas decisões da família do Cifra e as referidas cartas tinham sempre o seu aval final, portanto quando o Cifra lia uma carta da mãe Joana, mais de metade eram opiniões dela, que vai ser protagonista de uma história um pouco bizarra.

Só havia o tal Major das Operações Especiais, o tal que deu uma bofetada, que mais parecia um murro, na cara de um guerrilheiro fardado, com as mãos amarradas, e que caiu no chão desamparado, por lhe ter dito que queria ser tratado como prisioneiro de guerra. O apelido do Major era Sardinha, portanto o Major Sardinha logo foi rebaptizado de Major “Petinga”. Queria a saudação sempre que com ele nos cruzávamos, o Cifra pensava que devia de ter sido promovido há pouco tempo, pois andava sempre vestido de camuflado, com um cinto, onde trazia uma pistola, os galões novos e reluzentes nos ombros, as botas sempre engraxadas, e como no comando a que o Cifra pertencia, tirando militares condutores auto, era tudo pessoal de gabinetes, que não deviam de saber acertar com um tiro duas vezes no mesmo sítio, alguns nunca tinham pegado numa G-3 nem nunca tinham tirado uma cavilha a uma granada, aquele Major vestido assim e com aquelas atitudes, fazia rir o pessoal, portanto, com tanto exagero, tornava-se ridículo.

A apresentação das personagens vai já terminar à frente. Um dia, este grupo do Cifra, do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, mais o Trinta e Seis, regressando da sede do Clube de Futebol, juntos, passa pelo tal Major, que logo diz, com uma cara séria, mostrando autoridade:
- Vocês não podem andar assim em grupos, portanto a partir de agora separem-se, só podem andar dois militares juntos.

Nesse momento, o tal Major estava na companhia de mais dois ou três militares graduados, e o Curvas, alto e refilão, como era seu costume, pois não recebia ordens, logo lhe respondeu, colocando-se na posição de sentido, com a sua medalha Cruz de Guerra ao peito, fazendo o tal Major “Petinga”, também colocar-se na mesma posição, dizendo com a maior das calmas:
- Essa lei é só para nós ou para todas as patentes militares?














O Major “Petinga”, que era muito mais baixo na estatura, virou os olhos para o chão e respondeu:
- Vão lá embora, por esta passam.

Pouco depois, o Curvas, alto e refilão, quando junto do seu grupo, disse:
- Gostava de apanhar este filho da p..., lá no mato, debaixo de uma emboscada dos guerrilheiros, pois deixava-o lá sozinho.

Passado uns dias, quando o Cifra foi entregar uma mensagem decifrada no comando, o major “Petinga”, pergunta ao Cifra:
- Ouve lá, sabes se aquele soldado, a que chamam Curvas, alto e refilão, já matou alguém? Ele olhou-me com uma cara!

Pronto, já ficaram a conhecer esta “cambada”, que se forem simpáticos, pacientes e se também tiverem um pouco de heróis combatentes, mas mesmo muito pacientes, ao ponto de terem pachorra e resistência para estarem tanto tempo sentados e ler até ao fim estes textos, que às vezes a brincar, conta a verdade das situações de dor, sofrimento, angústia e também de algumas ocasiões menos más, não muitas, que todos nós vivemos nessa maldita guerra, na então província da Guiné.

Oh meu Deus, só agora é que vi, o texto é mesmo longo, desculpem lá!

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Dezembro de 2012 &amp;gt; Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)