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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26487: Notas de leitura: "Um preto muito português", da luso-angolana e antiga "rapper" Telma Tvon (Lisboa, Quetzal, 2024)... Quem somos nós, "pretugueses" ? - Parte I (Luís Graça)



Telma Tvon (aliás, Telma Marlise Escórcio da Silva
(cortesia da Quetzal Editores)


(i)  nasceu em Luanda em 1980 (portanto, em plena guerra civil angolana, que vai de 1975 a 2002);

(ii) imigrou para Lisboa, em 1993 (com a irmã, sendo acolhida pela avó); 

(iii) frequentou o ensino secundário ao mesmo que tempo se integrava, desde os 16 anos,  na cultura rap, do soul e do hip hop;

(iii) pertenceu aos grupos Backwordz, Hardcore Click e Lweji, sendo os três grupos compostos por MC  femininas;

(iv) mais recentemente colaborou com o brasileiro  Luca Argel no projeto Samba de Guerrilha;

(v) licenciou-se em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(v)  fez  mestrado em Serviço Social pelo ISCTE-IUL.


Capa do livro de Telma  Tvon, "Um Preto Muito Português". 
Lisboa: Quetzal, 2024, 184 pp. (Série "Lígua Comum") (c. 15 €)



Sinopse > Um Preto Muito Português

João, aliás, Bidjura, como é conhecido, é filho de cabo-verdianos que vivem há muito em Portugal e neto de cabo-verdianos que nunca conheceram Portugal. Também é bisneto de holandeses que mal conheceram Portugal e de africanos que muito ouviram falar de Portugal. Vive em Lisboa, mas não é considerado alfacinha. Terminou a licenciatura na faculdade e vai trabalhar num call center, com outros negros e brancos, pobres e ricos. 

Budjurra faz parte de uma minoria que, lentamente, vai sendo cada vez menos minoria. É um preto português, muito português, que, ao longo do livro e das aventuras que relata, levanta questões relativamente a temas como racismo, discriminação, estereótipos, igualdade e humanidade, mas também música, rap, identidade - numa Lisboa morena e colorida que é necessário conhecer: 

«Posso dizer, sem qualquer orgulho, que sou um homem estranho. Tão estranho como a minha alma. […] E assim como os anos e meses  que4 passam em redor, continuo apenas mais um preto muito português.» 

Com a sua rara humanidade, Budjurra mostra-nos como se vive por dentro da invisibilidade da comunidade africana, como se lida com as narrativas falsas que a envolvem, como se sobrevive aos preconceitos e ao esquecimento. (Fonte: contracapa)


1.  Não sei se vamos ter um nova grande escritora da língua portuguesa. Esta é a sua primeira incursão no romance.  Nem sei se é um romance. É uma espécie de "diário de bordo" de um "pretuguês" que na sua viagem pelo seu quotidiano  da Grande Lisboa se interroga sobre a sua identidade, a sua relação com os outros, a começar pela sua família, os amigos, os colegas de trabalho, as mulheres e os homens com quem se cruza na vida, e que tem de lidar com o rascismo, o preconceito, a ignorância, a estupidez, o estereótipo, a discriminação, na escola, na rua, na esquadra de polícia, na agência de emprego,  no local de trabalho, na cama, na comunicação social, na política...

Longe de ser panfletário, é um livro que dá voz a muitos portugueses que tem raízes em África. Uma minoria até agora silenciosa, para além de alguns cantores e "rappers" de sucesso como o Gutto (nascido em Luanda em 1972,  "retornado" em Portugal, com  2 anos)... 

O mérito do livro, para já,  é dar voz a uma juventude que nem sempre está bem na sua pele, com a sua pele, e no país  onde nasceu, de pais em geral "imigrantes".

(...) " Telma Tvon trouxe a voz da juventude negra portuguesa para o romance. Amante de literatura, não encontrava obra que reflectisse a sua realidade. E assim nasceu Um Preto Muito Português, retratos da juventude negra dos subúrbios de Lisboa e de quem passa a vida a ser questionado: “De onde és?” (...) (Joana Gorjão Henriques, Públioc. 5 de Junho de 2018, 9:50

O protoganista não é sequer  a autora, bem podia ser uma espécie de "alter ego".  Mas teve "pudor" em escrever a sua própria história. Não, ela escreveu um livro na primeira pessoa, em discurso direto, dando voz a um homem, ao João, aliás, Badjurra, português nascido em Lisboa, filho de pais cabo-verdianos que emigraram em tempos "à procura de uma vida melhor": ele, de Santiago, ela de Santo Antão... 

E que até nem vivem na... Cova da Moura, ou naqueles "bairros problemáticos", ou nos chamados "bairros sociais"...Ele, João Moreira Tavares, o irmão Carlos e a irmã Sandra, nasceram ainda no "gueto", mas já não vivem no "gueto", desde cedo foram "viver nos prédios" (sic) com uma tia da mãe, já melhor integrada socialmente... 

Na cabeça de quem "imigra", também há a imagem do famoso "ascensor social" que leva os pobres das "subcaves" até pelo menos ao "1º andar", onde já se pode respirar fundo e ver a luz do sol...

No livro não dá perceber onde e quando, exatamente onde e quando, mas é na periferia de Lisboa, na "linha de Sintra", na primeira década do século XXI... 

Apesar de até nem ser muito "escuro", o  João, aliás Budjurra,  é preto mas "muito português"... E até licenciado, com estudos superiores:  licencidado em gestão ambiental, a trabalhar num "call-centre", e num segundo emprego, como muitos outros jovens...

2. Conhecia-a, à Telma Tvon,  na Lourinhã, nos "Livros a Oeste", em 15/5/2024. E fiquei encantado com a sua simplicidade, graça, espontaneidade, frontalidade,  inteligência emocional, capacidade de comunicação... 

Afinal, ela nasceu e viveu em Angola, até aos 13 anos  e tem a desenvoltura e a desinição dos/das MC ou "rappers", e sobretudo da malta nada e criada em Luanda.  De resto, a dedicatória que consta do seu livro, diz muito: "Para os meus de sangue e coração. Para os meus de rua e coração". 

Mas vamos  continuar a falar deste seu primeiro livro, onde ela resto usa (e abusa...) do "calão" falado por estes jovens portugueses: contei até agora umas boas 6 dezenas de vocábulos e expressões idiomáticas, tais como pretugueses, xaxar, bazar, estigar, bazeza, metal, metaleiro, wannabe, canucas, castanhas, latons (mulatos), brownskin,  curtir bué, madie, nha kamba, sista, boelo, pula, ganda filme, beber uma jola,  bater mal, desconseguir, deswligar a ficha,  playa,  baggy, etc. 

Mekié, mana ?...

Romance, diz o editor. Diário, dário de bordo de um "pretuguês", acrescento eu.  Para já citemos algumas das 49 entradas ou pequenos capítulos do livro que lá li e reli (entre parènteses, o níumero da página):

(...) Quem sou eu (9) | O Budjurra até é bacano (16) | Nem és muito escuro (18) | Tu agora chamas-te Arrastão, Budjurra (29) | No call-center, licenciado (42) | Querias tu ser cabo-verdiano, Budjurra (50) | Desmistificar o Black Power (56) | O teu amigo morreu, Budjurra (81) | Achas que sabes dançar, Budjurra ? (89) |  Senhor sénior Budjurra (103) | O teu Escuro tem tanta Luz, Budjurra (127) | As tuas pequenas coisas, Mwafrika (135) | Tu não tens humor negro, Budjurra (142) | Os suspeitos do costume (145) | Voltar para onde nunca estiveste, Budjurra (160) | "Ser negro" - Gutto (172) | De Cabral a Budjurra (175). (...)

(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26481: Notas de leitura (1771): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5) (Mário Beja Santos)