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quarta-feira, 26 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25685: Historiografia da presença portuguesa em África (429): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
A partir da circunstância de ter comparecido a uma homenagem dedicada a João Barreto pelo seu neto Aires Barreto e historiador Valentino Viegas, que ocorreu na Casa de Goa, deu-me para procurar conhecer melhor a atividade deste facultativo que veio de Margão para Bolama, e tudo leva a crer que teve um comportamento admirável, de tal sorte que quando partiu para Lisboa foi tratado como cidadão de mérito bolamense. Só encontrei dois trabalhos a que o seu nome está ligado, este relatório sobre a doença do sono, onde a tendência para a investigação histórica já é patente, a ponto, como aqui se faz notar, ele parece um historiador a descrever a guerra do Forreá, e dá razões quase de caráter sociológico para a localização da doença do sono; e outro trabalho que é o primeiro que se escreveu acerca da craniometria dos indígenas da Guiné Portuguesa. Se algum leitor conhecer outra obra de João Barreto, peço-lhe o favor de me informar.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1)

Mário Beja Santos

O primeiro trabalho que se conhece de João Barreto é o seu relatório apresentado em 1927 à Direção dos Serviços de Saúde e Higiene, será publicado pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama, em 1928. Ele é diretor do laboratório de análise do Hospital Civil e Militar de Bolama. Barreto faz parte de uma missão que procedeu a estudos que tinham por fim averiguar se a doença do sono existia, ou não, entre as populações indígenas da colónia; e, ao mesmo tempo, praticar a vacinação antivariólica e proceder a inquéritos sobre outras doenças tais como lepra, filarioses, bilharzioses, etc. Barreto trabalhava com outro facultativo, Fernando Leite Noronha, andaram durante algumas semanas na circunscrição de Buba e concluíram que a moléstia do sono existia entre os indígenas de uma forma endémica. Escreverá mesmo que a extensão da tripanossomíase era enorme. Começa por informar que a referência mais antiga que encontrou da doença do sono na Guiné vinha num relatório enviado em 1885, da autoria de João Pedro Esmael Moniz, descrevendo três moléstias tropicais: a tripanossomíase, a uncinária e a bilharziose. Dirá depois que irão encontrar situações de anasarca, anemia palustre, caquexia palustre, disenteria crónica, doença do sono, febre perniciosa, febre renitente palustre e febre biliosa hematúria. Barreto faz um vasto reportório de informações retidas de diferentes serviços sanitários, à escala internacional.

Deverá ter incomodado os decisores políticos da época ao dizer coisas como estas: “Pode dizer-se que, até aqui, a função dos médicos na Guiné se tem limitado a assistência clínica à população civilizada e pouca aos indígenas. A parte puramente de investigação científica tem sido bastante descurada, há pouco mais do que a higiene e o saneamento da colónia.”

A missão médica começou os trabalhos em meados de maio de 1927, visitaram primeiramente povoações indígenas da ilha de Bolama, uma inspeção superficial a Mancanhas, mas a repartição de saúde deu instruções para marcharem imediatamente para Buba. “No desempenho das nossas funções clínicas tivemos conhecimento de três casos de lepra na ilha de Bolama, casos de elefantíases, admitia-se haver casos de tuberculose e não se encontraram casos de bilharziose.” Visitaram em Buba quase todas as tabancas, procedendo à inspeção médica dos indígenas para a verificação clínica da doença do sono, elefantíase, lepra e qualquer outra doença suspeita; fizeram colheitas de sangue, procedeu-se à vacinação antivariólica e à captura de insetos hematófagos, em especial, glossinas.

João Barreto não deve ter resistido à ideia de que cabia ali lugar apresentar dados de investigação histórica, dado o quadro demográfico da região em análise, a circunscrição de Buba, quis fazer a quem o lia um relato da história recente, vale a pena lê-lo com atenção:
“Entre os diferentes fatores que podem contribuir para a despopulação de um território, cremos que na circunscrição de Buba deveriam ter atuado dois mais importantes: um ligado à política e à administração indígena, e outro, à insalubridade da região. É de data recente a infiltração dos Fulas-Forros entre os Biafadas do Corubal. Tendo-se estabelecido pacificamente como colonos, tributários daqueles, os Fulas foram aguardando uma ocasião oportuna para se libertarem dos seus senhores e essa ocasião foi-lhes proporcionada por um régulo Biafada que solicitou auxílio dos Fulas para castigar a rebeldia da tabanca de Bacar Guidali, construída em 1852 por uma fidalga Biafada. Os Fulas-Forros não só prestaram auxílio na destruição da tabanca referida, mas acabaram por expulsar os Biafadas de uma e de outra margem do Corubal, organizando um regulado independente a que deram o nome de Forreá, isto é, terra de liberdade.
Mas no intuito de satisfazer os principais cabos de guerra, a região foi dividida entre os chefes, Bacar Guidali, Bacar Demba (eleito régulo), Sambel Tombon e Ogô Maná, de que resultou, como era de prever, uma série interminável de lutas e rivalidades.

Alguns comerciantes portugueses estabelecidos de 1874, na margem direita do rio Bolola, lembraram-se então de, para garantia das suas vidas e haveres ameaçados, pedir ao Governo de Bissau uma força armada em 1879, datando desse ano o estabelecimento de presídio militar de Buba.
Não tardou, porém, que as dissidências entre os Fula-Forros, Fulas-Pretos, Futas-Fulas e Biafadas destruíssem esta relativa prosperidade. Desde 1880 a 1890, poucos meses decorreram sem que os comandantes militares de Buba tivessem de registar assaltos às tabancas, raptos de mulheres, roubos de gado, mortos, assassinatos e guerras, entre as diversas tribos capitaneadas por Bacar Guidali, Paté Coiada, Paté Bolola, Daman Iaiá e outros. Essas lutas, pondo a região toda em estado permanente de guerra, acabaram por dizimar uma grande parte da população pela morte, fome e fuga, e só tiveram fim depois da derrota de Paté Coiada por intervenção do Governo português. Pode-se, por isso, dizer que há pouco mais de 20 anos esta região entrou num período de normalidade.
Os factos que acabamos de expor parece-nos terem sido causa principal dos despovoamento e abandono desse território aliás fértil.”


E muda de linha de observação, temos agora o médico tropicalista: “Há nesta região um outro facto que chama desde logo a atenção do observador: é o grande número de crianças portadores de poliadenites e de cicatrizes da extração de gânglios submaxilares. As adenites suboccipitais observadas nessas crianças poder-se-iam em grande parte às dermatoses do couro cabeludo. Quanto à hipertrofia dos gânglios cervicais e submaxilares observada em 80% das crianças examinadas, não nos foi fácil encontrar uma explicação plausível e parece-nos que este assunto tem de ser estudado demoradamente. Os indígenas atribuem-na invariavelmente à doença do sono. Até que ponto é verdadeira esta hipótese?”

Barreto procura uma explicação para esses fenómenos, há um facto merecedor de atenção, como ele pretende analisar:
“Dentro da colónia da Guiné notam-se duas regiões em que o decrescimento da população de acentua progressivamente, não tendo até hoje quaisquer medidas de ordem administrativa conseguido evitar o seu lento abandono e despovoamento.
Estas zonas estão situadas uma ao norte do rio Cacheu, compreendendo quase todas a circunscrição de S. Domingos, e outra, entre as sedes administrativas de Buba e Cacine, abrangendo os territórios banhados pelos rios Bolola, Tombali, Cumbijã e Cacine. Ora, é precisamente nestas duas zonas desabitadas pelos indígenas que a produção e desenvolvimento das glossinas parece ter atingido o máximo da sua intensidade; e essa aparição exagerada da mosca, quer a consideremos como mera coincidência quer como elemento causal do despovoamento não é de molde a favorecer a fixação do indígena nem tão pouco dos seus rebanhos, pela facilidade da transmissão das tripanossomíases animais, podendo ser que este último facto tenha levado os indígenas a procurarem de preferência localidades menos visitadas pelas glossinas.”

Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Mapa étnico da Guiné, seguramente enviado por João Barreto aos seus colegas
Crânios enviados por João Barreto para o trabalho de equipa, tratou-se de um artigo em homenagem ao professor J. Leite Vasconcelos

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 19 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25659: Historiografia da presença portuguesa em África (428): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (7) (Mário Beja Santos)