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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P25999: Facebok...ando (63): "A Última Ceia", por Manuel Serôdio, desenho (ou pintura ?) deixado na messe de sargentos em Empada, ao tempo da CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (1967/69)








 Guiné > CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (1967/69) > Empada > Messe de sargentos > "A Última Ceia", desenho (ou pintura na parede ?) do Manuel Serôdio, o ex-fur mil at inf, com a especialidade de minas e armadilhas.

Foto: © Manuel Serôdio (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Hoje...

1.  Postagem  de 30 de setembro de 2024, 14:26, inserida peloManuel Seródio (natural de Oliveira de Azeméis,  a viver em Rennes, França), na página do Facebook da Tabanca Grande:

E já agora, ninguém é melhor servido que por si mesmo... Este desenho foi feito cá pelo rapaz, para a inauguração da messe dos Sargentos e Furriéis em Empada. E o nome do autor (a minha humilde pessoa), está no canto inferior direito.....

Quando fomos para Buba em 1969 ficou lá, mas depois... 
Ontem...


2. A CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 foi mobilizada pelo RI 15, partiu para o TO da Guiné em 18/10/1967 e regressou a 21/8/1969. 

Passou sucessivamente por Bula, Bissau, Empada, Buba, Bissau, Quinhamel. Comandante: Cap Inf Marcelo Heitor Moreira. O BCAÇ 1932 esteve sediado em Bissau, Farim e Bigene (Comandante: ten cor inf Narsélio Fernandes Matias).


________________

Nota do editor:

Último poste da série > 25 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25878: Facebook...ando (62): "Soldado Português", poema de Delfim Silvestre (2)

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21407: Histórias... com abracelos do Carlos Arnaut (ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72) (1): Rissóis de marisco com arroz de tomate, na messe de oficiais do GACA2, Torres Novas


Guiné > Região de Binar > Bibar > Pel Art >  Obus 14 > O Carlos Arnaut a introduzir os elementos de pontaria, comn alguns serventes, do recrutamento local, a apreciar.

Foto (e legenda): © Carlos Arnaut (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Carlos Arnaut, Lisboa


1. Mensagem,  com data de 23/09/2020 à(s) 21:50, de Carlos Arnaut, o novo membro da Tabanca Grande, nº 817, ex-alf mil art, cmdt do 16º Pel Art (Binar, Cabuca, Dara, 1970/72) (*):


Caro Luís,

Quero em primeiro lugar agradecer a gentileza dos votos pelo meu aniversário. (*ª)

No tocante à tua pergunta sobre o pelotão de artilharia de Binar, parece incrível mas não me recordo do número já que fiquei por ali pouco tempo.

Consegui descobrir uma foto (que junto em anexo) onde estou a introduzir os elementos de pontaria num Obus 14 com alguns serventes a apreciar.

Esta amnésia é provável que faça parte de um mecanismo de auto-protecção mental, bloqueando nomes, datas e outros detalhes, pois em Binar protagonizei uma acção que poderia ter tido um desfecho trágico, fruto sobretudo da minha "periquitice".

É provável que venha a dar conta do que se passou numa próxima ocasião.

Como tenho vindo a constatar, as histórias relatadas pela rapaziada cobrem os acontecimentos mais diversos, desde experiências traumáticas a farras de todo o género.

Assim sendo, vou começar por vos contar um episódio que se passou comigo, ainda Aspirante em Torres Novas, pouco antes de ser mobilizado.


Boa noite, Luís, outras histórias se seguirão se para tanto não me faltar inspiração e a vocês paciência para as lerem.

Abraçelo (Abraço com cotovelo)


2. Histórias... com abracelos > Rissóis de Marisco 

por Carlos Arnault

Finda a especialidade (PCT) e após o tirocínio em Vendas Novas, já Aspirante, fui colocado em Torres Novas no GACA 2.

Após a apresentação da praxe ao Comandante, foi-me atribuída a missão de zelar pelo parque das baterias de 4 cm, o que desde logo me levou a concluir que o meu destino estava traçado.

Aquele material para mim eram fisgas quando comparadas com os obuses de Vendas Novas, pelo que fiz um acordo com a secção ali destacada:

 − Cabo, equipamentos e instalações sempre limpas, eu nunca estou ausente, ando por aí, e podem ir levantar todas as tardes à cantina uma garrafa de Lagosta (...lembram-se ?!) para o lanche.

Assim foi, fazia as contas semanalmente na cantina, era a felicidade suprema, com namorada já arregimentada nos convívios dos cafés chiques de Vendas Novas, até que, não há bem que sempre dure, tocou-me a gerência da messe de oficiais.

Após um período inicial, de estudo aturado da gestão hoteleira castrense, entendi ser criativo e fugir aos carapaus fritos, à massa guisada e às diversas iguarias com base no frango.

Convoquei o cozinheiro e seus ajudantes, começando por lhe perguntar se sabia fazer croquetes. O alarve respondeu-me que não percebia nada de estrangeiro, ainda hoje estou para saber se o sacana estava a gozar, e decidi-me então avançar para rissóis de marisco, sendo que o marisco se limitava ao berbigão.

Foram comprados de manhã na praça, antes do almoço, tendo eu tido o cuidado de estudar no livro de culinária que existia na cozinha quais os ingredientes necessários, e em que quantidades. As receitas eram para 10 pessoas, uma simples conta de multiplicar por 4 definiu quantidades, pelo que passei o receituário ao cozinheiro com as devidas instruções:

 − Isto, mais isto, mais aquilo, bem misturado, dá uma massa. Isto,  mais isto,  mais aquilo, dá um creme, a que juntas o berbigão. Estendes a massa com o rolo...

 − Não temos rolo,  meu Aspirante.
 
−  Usa uma garrafa, porra !, deitas uma colher cheia do recheio, dobras e cortas em meia lua.

 − Então,  corto como ? 

 − Usa um copo,  minha aventesma. Depois passas o pastel por ovo batido, a seguir pelo pão ralado e toca a fritar. Entendeste ???

 − Sim,  meu Aspirante, vá descansado que não há problema.

Montei a operação com todo o cuidado, até porque a Unidade entrou de prevenção e toda a oficialagem estaria presente, Comandante incluído, pelo que esperava brilhar com aquela ementa diferente de tudo o que era habitual.

A pressão era grande, a criatividade por vezes tem custos, pelo que a meio da tarde fui à cozinha para me certificar do andamento da receita. A massa já estava pronta, com bom aspecto, o recheio na fase terminal, tudo parecia rolar sobre esferas.

 − Vejam  lá,  não me lixem, está cá toda a gente, isto tem que correr às mil maravilhas.

Voltei costas, mesmo assim não completamente descansado, sem garantias que o meu atrevimento culinário fosse bem interpretado por malta que nem sabia (?) o que era um croquete.

Cerca das 19h30 voltei à cozinha para fiscalizar a última fase da operação "rissóis com arroz de tomate", a frigideira XXL fervilhava e eu ia tendo um colapso.

 − Então,  mas o que é isto,  seus sacanas ? Como diabo é que,  em vez dos pastéis que eu vos ensinei a fazer, passo a passo, vocês conseguiram parir estas bolas de ténis ?

De facto, ao olhar para o produto final, o que tínhamos era uma bola onde aqui e ali despontava uma ponta de berbigão, sabor não testado.

A explicação que se seguiu foi de que não tinham arranjado uma garrafa, como se tal fosse possível num quartel, e vai daí misturaram tudo, massa, recheio, ovos batidos, pão ralado, e toca a fritar.

Saí porta fora brindando-os com ameaças num vernáculo que não me atrevo a reproduzir, garantindo-lhes que aquilo que me viesse a acontecer reverteria para eles multiplicado por 10.

Fui jantar fora, fugi, incapaz de enfrentar a turba decerto esfomeada que estaria a pedir a minha cabeça.

Como dormia fora, em casa de umas velhotas que me tratavam com todo o carinho, só na manhã seguinte voltei ao quartel, qual Egas Moniz de baraço ao pescoço, quando,  para minha grande surpresa,  percebi que nem sequer se tinha levantado qualquer celeuma.

A ordem de prevenção tinha sido levantada, toda a gente se tinha pirado para o fim de semana, tendo ficado na unidade apenas aqueles que com famílias muito distantes se viam obrigados a ficar confinados ao quartel, pelo que o jantar só foi servido a meia dúzia de gatos, um dos quais ainda por cima elogiou a ementa, dizendo nunca ter visto tal petisco mas que era bem bom.

A sorte protege os audazes.

Carlos Arnaut
_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de setembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21351: Tabanca Grande (502): Carlos Arnaut, ex-alf mil art, 16º Pel Art (Binar, Cabuca, Dara, 1970/72): senta-se, no lugar nº 817, à sombra do nosso poilão 

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18195: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 19 e 20: "Podemos casar à vontade e em cinco anos temos dinheiro para comprar uma casa"


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >   O Dino, no rio  Fulacunda, junto ao "porto fluvial"...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >   Montando segurança próxima do "porto fluvial": o morteiro 81, na margem direita do rio Fulacunda...

Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12.º ano de escolaridade. 

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande .
Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) Faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi)  Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que  aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda...



2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 18: Os substitutos

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]



19.º Capítulo > AS DIFERENÇAS RIDÍCULAS

Dois. Apenas os dois sargentos tinham experiência de guerra. Era com eles que eu mais convivia, devido às minhas tarefas que, afinal, não eram tão simples, como inicialmente me pareciam. Mas para já falemos de outras coisas.

Todos os oficiais eram milicianos, incluindo o capitão, comandante da unidade. Os alferes e furriéis idem. A princípio, não me apercebi do que isso significava, mas depressa compreendi que os conhecimentos de guerra de guerrilha, que era o que se passava nas oficialmente designadas Províncias Ultramarinas, eram praticamente nulos, por parte de quem nos comandava. Creio que sabiam tanto da guerra como eu de escrever à máquina e de contabilidade. Paciência! Iríamos aprender tudo juntos.

Havia, porém, uma coisa que relatei por escrito mais tarde. Todos eles tinham nome. Sr. Alferes tal…, Sargento tal…, Furriel tal… logo, eram muito mais importantes. Acresce que a separação hierárquica, que eu aprendera na recruta, se acentuou no palco de batalha.

Ora, o Cabo de Reabastecimento… EU, tive de conviver com uma situação no mínimo estranha, atendendo ao local onde estávamos.

A messe de oficiais podia requisitar, por meu intermédio, um determinado número de produtos. A messe de sargentos podia fazer o mesmo, ou não, dependendo dos gostos. Para a cantina não podia requisitar, digamos, certos produtos, pois não éramos todos iguais. Mas o pior era que não podia confidenciar aos meus camaradas que determinados produtos só eram destinados aos chefes. Que se lixe! Nós também não gostávamos de bebidas finas, nem de, por exemplo, anchovas.

Em resumo, neste aspecto, acreditem ou não, pensei que essa situação podia dar azo a uma certa indisciplina, por não haver igualdade de direitos num campo onde importava que houvesse um grande espírito de corpo. Felizmente, para todos, nunca ocorreu qualquer ato de insubordinação.

A desculpa que eu dei foi que furriéis e oficiais queriam ter coisas diferentes para nos mimar e um Whisky velho, um Gin Beefeater ou um licor Drambuie ou Tia Maria, eram o ideal. De vez em quando, precisávamos de ser animados. Quando isso acontecia, pensava que era um privilégio que estava reservado aos chefes, o de dar-nos um mimo… e não estranhava!

Que raio! Até eu me armei em dono da loja! E era um merdas dum cabo.

Vamos lá preparar-nos para ir buscar os mantimentos que o barco vem amanhã e é a primeira vez que a responsabilidade de receber os artigos encomendados é minha.

Confesso que gostei de ir ao rio no primeiro reabastecimento da nossa responsabilidade. Tínhamos aprendido a picar a picada e a fazer a segurança ao longo da margem, como documento na foto.

O rio era de maré e a água salgada. Foi a primeira vez que vi tal. Por isso, tínhamos de ser rápidos a descarregar o barco, antes que a maré baixasse. Além de que podíamos ser atacados a qualquer momento. Nunca tive medo nem o vi nas caras dos meus camaradas, nessas operações. Inclusive, aproveitava para dar uns mergulhos.

“Vou mandar-te fotos do rio de Fulacunda. Eu e o Zé Leal parecemos cachopos a brincar na praia um dia ainda te vou trazer aqui”.

Mesmo nas situações em que as Berliets ficaram atoladas dava para rir. Afinal, desatascar viaturas tinha sido uma das minhas competências na instrução. Até sabia lidar com o bloqueio ao diferencial.

Tinha-se alterado a rotina. A guerra haveria de chegar mais tarde e nós, no dia seguinte, íamos receber o pré. Seria a primeira vez, como combatentes em África.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Capa do jornal de caserna, mensal, "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto.

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
20.º Capítulo > UM DESEJO A LONGO PRAZO

Felizmente, eu já percebia de contabilidade e embora me repita por citar o que escrevia naqueles dias, o aerograma que escrevi no dia 5/9/1972, para a minha namorada, devia ter sido uma lição para toda a vida e eu, estupidamente, estou a relê-lo apenas hoje, 13/9/2017, 45 anos e 8 dias depois:

“Vamos ver se consigo juntar 300$00 por mês. Se fizer isso, em 20 meses são 6.000$00. Mando 700$00 para a minha avó. Ela deve poupar para mim, cerca de 400$00 que são 8.000$00. O total são 14.000$00. Como penso que quando regressar devo ganhar 140$00 por dia. Em 12 meses a 26 dias por mês, dá 43.680$00. Se gastarmos 2.000$00 por mês são 24.000$00. Poupamos 19.680$00 por ano. Podemos casar à vontade e em 5 anos temos dinheiro para comprar uma casa. Mesmo que tenhamos filhos eles serão fortes e robustos não nos darão muitas despesas.” (**)

Caríssimos leitores, não era necessário saber contabilidade para fazer estas contas. Como digo, não voltei a ler este texto até hoje. Lamento imenso não o ter feito. De facto, casei com a minha namorada. Temos dois filhos fortes e robustos, fiz uma casa e até tenho uma neta mas não segui o conselho que dava a mim mesmo. Talvez o adulto sexagenário tenha cometido o erro de não respeitar os compromissos de um jovem de vinte e poucos.

Faltavam ainda, pelo menos, 22 meses de comissão. Planeava o futuro e muitos dos meus camaradas faziam o mesmo. Creio que era inconscientemente uma maneira de sentir que tínhamos esse futuro.

No dia seguinte, fui convidado pelo alferes [Jorge] Pinto para participar na criação do jornal da companhia. ["O Serrote"] (***)
- Com poesia ou outras coisas - disse-me ele.

Agora sim, ia enfrentar algo muito perigoso. Ao escrever, corri muitos mais riscos do que estar numa guerra. Contudo, até comecei com um fervoroso orgulho patriótico. Que, creio, não foi publicado.

Exército imenso
Incontrolável numeroso
O das mães da terra portuguesa
Que embalam no regaço
Com doce singeleza
Futuros defensores
Dum nome glorioso


Mulheres que chorais
O pranto dá tristeza
Dá dor sem ter fim
Dá saudade sem igual
Os soldados não morrem
Podeis ter a certeza
Quando caem heróicos
Pelo nosso Portugal
A sua alma ressoa em nós
Como nos reza
E o seu nome
Soa em timbres de crista


(Continua)
_________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 1 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18164: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 18: Os substitutos dos 'Capicuas' [CART 2772]

(**) Em 1972, estes valores, em escudos, representariam hoje o seguinte (em euros);

300$00 = 69,74 € (mas em 1974, já com forte inflação, valeriam apenas 48,89 €)

6.000$00 = 1394,77€  (977,74€, em 1974)

24.000$00 = 5.579,07€ (3.910,97€, em 1974)

Fonte: Pordata > Portugal > Conversor

(***) Vd. poste de 18 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12467: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte VII): Como é que a malta pssava os 'tempos livres'...

domingo, 7 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17325: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXI Parte: Cap XII - Op Tesoura, Cadique, dezembro de 1965: "Meu furriel, eu sou um criminoso, um assassino! Numa das casas, quando lancei a granada, estava um bebé a chorar lá dentro!" (1º cabo Cigarra)


Guiné > Região de Tombali >  Cufar >  CCAÇ 763 (1965/67) > "Tomada de assalto a tabanca [, Cadique,] que se encontrava deserta, obviamente procede-se à sua destruição. Os Vagabundos, comandados por Mamadu, terão essa tarefa como determinado. Simples: porta aberta, granada incendiária descavilhada para dentro, porta fechada e fugir para se abrigar. Em segundos o que era uma morança, é uma cópia do inferno de Dante."

Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.


Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]

Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVIII Parte > Cap  XII - Guerra 3 (pp. 70-76)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965,  tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças  são depois destruídas com granadas incendiárias.


Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXI Parte: Cap XII:  Guerra 3 (pp. 70-76)



XII Guerra 3


Dezembro de 1965. Quinze horas do vigésimo primeiro dia. O bulício na messe de sargentos era grande, pois tinha havi­do correio e toda a gente comentava as notícias. As mais ínti­mas guardavam-se para a décima vez de leitura, mesmo depois de decoradas, por terem um sabor especial. De repente tudo se alterou. Bastaram estas simples palavras do Amadeu, cabo da secretaria:
- O nosso capitão chama ao comando os nossos sar­gentos e furriéis.

Torcásio teve uma cólica de tal maneira que correu ime­diatamente direito à latrina. Alguns dar-lhes-ia, mais tarde, a revolta aos intestinos, enquanto outros, pensando para onde seria, iam sentindo o estômago apertando-se… apertando-se, de forma que só nele caberia um trago de whisky, já que ajudava um pouco a controlar o nervoso miudinho que sempre aparecia nes­tas ocasiões. Interessante a reacção dos homens a estas situa­ções. A ansiedade, a incerteza do momento de contacto, princi­palmente quando se progredia na mata, punha os nervos em franja. Era medo? Sim! Mas esse controlava-se. A dúvida de onde, como e quando o IN se manifestava, é que tornava a guer­ra difícil e asfixiante. Após o contacto se efectuar, parecia to­mar-se um tónico,  aí, então, a cabeça raciocinava logicamente e a máquina de guerra começava a funcionar. 


Mamadu, apesar de menino dos Rangers de Lamego, teve bastantes dificuldades de adaptação nos primeiros tempos de Guiné pois, quando começava o tiroteio, não conseguia deitar-se. O seu corpo saltava impelido por um "mola", uma  estranha força a uma altura de meio metro. Tinha de estar de pé para tudo observar. Teve sorte porque se tornava num alvo facílimo. Com o tempo foi-se adaptando, e pôde por fim utilizar as teorias e práticas de contra-guerrilha insufladas nas serras do Marão, Meadas e rios Douro e Balsemão.

Verificando as presenças, Paolo informou Carlos de estarem todos os (des)interessados na excursão.

Carlos, com a sua fluidez e síntese, explanou então aos alferes e sargentos, a excursão a efectuar. Coisa simples, ir ao outro lado do Cumbijã onde, como já sabíamos, punha e dispunha o nosso amigo João Bernardo Vieira, ('Nino'). Objectivo: varrer a região de Cadique e destruir as instalações dos nossos amigos na região. Esta simpática visita seria intitulada operação Tesoura e teria a colaboração de mais uma companhia do batalhão, bem como a habitual ajuda de duas secções, do João Bacar Jaló, comandadas pelo Quêba. O embarque seria no cais de Impungueda e a LDM desembarcar-nos-ia no tarrafo junto à bolanha, próximo de Cadique Iála.

Vinte horas do mesmo dia. Os três grupos de combate estão formados em frente ao comando. Cinco minutos depois, é dada ordem de progressão até ao local de embarque. Em coluna, "fila de pirilau" pela ordem determinada, segue à cabeça, uma secção da milícia comandada por Gibi, seguida pela secção dos Vagabundos do furriel Mamadu; depois as secções de Chico Zé e Tambinha do 2°. grupo de combate; seguidamente viria o comando com uma secção de milícia e o 3°. grupo; fe­chando a coluna o 1°. grupo de combate.

O embarque efectua-se pelas 02h30 no máximo silêncio. O desembarque no local determinado também sem problemas, a lancha regres­sa e a companhia começa a progressão para o objectivo. Pelas 3hOO somos flagelados pelo IN. Nada de resposta, nada de denunciar posições, mas em certa parte o alerta estava dado. Tinha-se perdido a surpresa.

4hOO, aguarda-se um pouco mais o clarear do dia para se começar o assalto e a destruição das instalações inimigas. Próximo das 5hOO, tomam-se as posições de assalto. Quêba e seus homens, que passam a noite a mascar cola, formam a primeira linha; o 2° grupo de combate faz a cobertura; o 3° e o 1 ° . grupos fazem o envolvimento lateral.

5h10. Carlos dá ordem de assalto. Por momentos, vivemos um verdadeiro holocausto. Mamadu ordena:
- Olindo, já!

Sai a primeira dose da bazuca, depois grita para o homem da MG42:
- Ferreira, varre os poilões à direita.

O matraquear das G3 é ensurdecedor, a penumbra e neblina matinal não definem correctamente ainda a forma das coisas. Com o fumegar e saída dos projécteis das espingardas, parece que a terra se abriu para dar saída a um enxame de pirilampos.

Parecem cobras deslizan­do por entre o capim, Mamadu, já na operação Saturno, tinha tido oportunidade de acompanhar estas máquinas de guerra: cor­rida em zigue-zague, quinze a vinte metros, paragem imediata, joelho em terra, olhos de águia rompendo a frente, três segundos para perscrutar o horizonte, rajada varrendo a frente, nova corrida e assim sucessivamente, até se consumar o assalto.

Sabe-se que a guerra é um meio de destruição do próprio homem, mas quando o sangue ferve e temos de matar para não morrer, tudo se transforma nesse momento.

Tomada de assalto a tabanca que se encontrava deserta, obviamente procede-se à sua destruição. Os Vagabundos, comandados por Mamadu, terão essa tarefa como determinado. Simples: porta aberta, granada incendiária descavilhada para dentro, porta fechada e fugir para se abrigar. Em segundos o que era uma morança, é uma cópia do inferno de Dante.

E se está alguém lá dentro? Não seria a primeira nem a última!

Após a destruição efectuada, Mamadu reagrupa a secção, mas algo estranho acontecia, o cabo Cigarra chorava. Preocu­pado.  o furriel pergunta:
- O que é que foi, pá? Estás ferido?

Há sempre um estilhaço que nos pode apanhar. Mas o cabo diz não ser nada, talvez do fumo possivelmente.

Sem problemas esta fase da operação. Pior a batida à mata de Cadique Iála onde as coisas se baralharam um pouco com forte resistência do IN. Com o apoio aéreo resolveu-se a questão e, milagrosamente, desta vez sem um ferido sequer. Há horas felizes!

Batida que foi a mata, a companhia deslocou-se para a estrada de Cadique, onde se garantiria a protecção a um grupo de combate dos páras que iria entrar em acção.

Concluída a operação, havia que reembarcar, no cais de Cadique Nalu. Embarque um pouco atribulado pois, para além do cais estar destruído, a maré ainda a encher, a lancha tinha problemas para encostar, houve que entrar no lodo até aos joelhos. Coisa da guerra que,  como já se viu,  a preparação era feita como no jogo do pau. Aprendia-se a levar pancada. 

Finalmente lá se embarcou, descurando um pouco a segurança, é verdade, mas hoje é o nosso dia e a sorte também conta nesta vida de antiguerrilha. Não se pode levar sempre porrada,  carago, como costumava dizer, na sua típica linguagem tripeira, esse grande amigo que é António Pedro. Tivemos bas­tante sucesso na operação, conforme informações posteriores que confirmaram termos causado baixas significativas ao IN, já por nós calculadas dados os rastos de sangue que verificáramos na mata.

Camuflados cheios de lama e todos molhados, já na lancha, ainda alguém se lembrava de ter envolvido cigarros e isqueiro (nessa altura já não era obrigatória a licença) em saquinho milagroso de plástico. Geralmente almas caridosas, pelo que Mamadu come­çou a deliciar-se com umas gostosas fumaças, enquanto a lancha fazia marcha à ré até alinhar pelo meio do rio. Hora de sabor e de sonho. Mas o cabo Cigarra, continuava estranho! Mamadu estava preocupado.

Aproveitando a maré enchente, a LDM desliza suave­mente rio Cumbijã acima rumo a Cufar, num ronronar silencioso.

Em sentido contrário, o meu pensamento aproveita a deslizante maré para se transformar, e desgovernado rodopia e avança em louca navegação sem instrumentos de bordo, num abandono fantasmagórico de barco sem timoneiro.

Qual o ganho desta revolta sem ânimo, se o desalento que me assalta não leva a lado nenhum, nesta trama trágico-marítima? Fora do tempo e do modo, galopante,  a tua lembrança de mulher aparece! Descubro-te agora figura não apagada nos teus olhos negros vivos e cintilantes.

Corrói-me a inexistente coragem - forte motivação - para existir para ti e contigo. Sinto-me possuído e consumido por febrão de paludismo incurável, na existência da tua imagem. Num décimo de segundo tenho de abandonar-te, figura presente. O matraquear das PPSH, as 'costureirinhas', e o sibilante assobiar das metralhadoras Degtyarev passam uns metros acima da blindagem. O cabo marinheiro põe o motor da lancha numa po­tência louca, os dois fuzos agarram-se à metralhadora cobertos pela blindagem, ordem imediata para ninguém levantar cabe­ça. Apesar de mais de cem homens a bordo, a lancha levanta a proa e o doce deslizar transforma-se em louca hidroplanagem rio acima.

Não resisto. É mais forte do que eu. Pé sobre a rampa da lancha, espreito. O rio neste local alarga um pouco, mas é nítido o fumegar das Preciosas no tarrafo. A experiência do marujo é importante. Aproxima-se mais da margem contrária. Ouvi neste momento nitidamente o estampido cavo, da saída de granadas das RPG2. A coisa está preta. O motor continua no seu louco ronco forçado.

Mais uma vez volto a ti. Sinto-te perto de mim. Rodopiamos ao som da banda, junto ao Pelourinho. A minha mão esquerda aperta com sensibilidade extrema a tua mão direita, enquanto o meu braço, com enlevo, envolve o teu frágil corpo. Um balanço mais forte, um estrondo fortíssimo e escorrego pela blindagem da LDM. Aperto contra o peito a minha companheira G3, imagem há pouco transformada em ti. Um braço amigo segura-me. Uma granada de RPG tinha rebentado por cima da blindagem do abrigo da metralhadora. Cigarra, meu cabo amigo continuava para além da sua defesa, junto a mim. Espero, meu amigo, que a sorte nos sorria, assim como tu não me abandonas. 

Um ferido ligeiro, não é nada mau. Um pequeno esti­lhaço no ombro do fuzo impecavelmente tratado pelo Juvelino que tinha tanto de bom enfermeiro, como de tarado sexual. A zona de emboscada passou. A LDM voltou ao suave deslizar sobre as águas do Cumbijã. No cais de Impungueda, as viaturas esperavam o desembarque dos grupos de combate. O fuzo seguia na lancha até ao navio patrulha, o qual já entrara no rio para fazer a cobertura.

No cais, o furriel Mamadu, comandante dos Vagabundos, saltou para o unimog e sentou-se na capota por cima do moto­rista, como era habitual. Cara encovada, cheia apenas por uma barba mal arranjada, olhos fundos, ar de poucos amigos, gritou para o cabo Cigarra:
- Esta merda está pronta?
- Sim, meu furriel!

Respondeu o cabo no seu modo sereno e simples. Mamadu fez sinal ao alferes do grupo de combate, levantando o polegar da mão direita, que por sua vez informou Carlos. Após dez minu­tos de espera por causa das Amélias se acomodarem, que em to­dos os lados as há, a coluna arrancou direito, ao aquartelamento.

À chegada, como de costume, o pessoal que tinha ficado em Cufar aproximava-se e queria saber como tinha decorrido a Operação. Os valentes do arame farpado queriam saber se havia algum prisioneiro, para molharem a sopa. Necessidade psíquica para estes heróis ultrapassarem a cobardia fora do arame, e assim limpar o cu, borrado ainda da última saída ou flagelação às instalações!

Mandados destroçar os grupos de combate, cada qual foi tomar o seu magnífico duche, sob os bidões de gasolina ou petróleo, não importava, desde que tivessem água. Quem não tivesse bidões que a puxasse a pulso com baldes do poço. 

Nesta época já Mamadu, Francisco José e António Pedro dividiam entre si o quarto de adobe, reconstrução de armazém da antiga quinta do sr. Camacho. Mamadu pediu a Amadu, soldado nativo impedido dos três furriéis, para lhe limpar a G3 e os carregadores, bem como o cinturão e cartucheiras, e dirigiu-se para os chuveiros. Jata cantarolava debaixo da água.
-Amadu! Quero roupa lavada, calças e camisa civil - gri­tou Mamadu.

Depois de atirar com o camuflado cheio de lama para um canto, meteu-se debaixo do chuveiro e sentiu a água morna como que saída do esquentador. Que merda de terra esta, até a água fria é quente!... Se os americanos tivessem estas condições, não paravam um dia no Vietname! Só mesmo o portuguesinho aguenta esta porra, cogitou enquanto se ensa­boava.
-Amadu! - voltou a gritar-Diz ao Lopêz que quero o copo de bambu cheio e gelado!
-Furiel, bó cá cume nada? Bó cá tem cabeça,  furiel!
-Amadu, cala a boca e faz o que furriel manda, meu saco de carvão!
-Chi, minino, lassa picou mesmo furiel Mamadu! Mim bai chama Miriam, mim cá entende furiel, hoje!
-Bó suma burro de Bafatá!- gritou Mamadu enfure­cido.
-Vem buscar o camuflado que está cheio de lama e faz tu conversa giro com Miriam. Gosse gosse, tira esta merda daqui.

Jata tinha saído do chuveiro, calçou as sabrinas e enrolou a toalha à cintura, sem se limpar. Olhando para Vagabundo que tirava a espuma do corpo, deu um assobio de piropo e disse:
-Manga de ronco. Conforme estás hoje, há festa da grossa!
-Não me chateis, também tu! Zarpa! Fora! Vai levar onde levam as galinhas.

De facto não se encontrava bem... Sentia-se neurótico. Queria estar só, não queria ver, ouvir, sen­tir, ninguém por perto. O ego exige-nos muitas vezes o isolamen­to. Há momentos que são só nossos. Deixem-no só, por favor!...

Vagabundo estava mesmo no fundo. Vestiu-se lentamente, da mesma forma, descalço aproximou-se do bar e sen­tou-se num canto sozinho. O Lopêz conhecia já as tempestades e os tornados perfeitamente, pelo que, com a sua sensibilidade, evitava-os. Devagar, mais parecendo deslizar sobre gelo, levou o velho copo com dose dupla, colocou-o sobre a mesa, e mais uma vez adivinhando tudo, junto colocou um maço de Português Suave e uma caixa de fósforos. De idêntica forma deslizou para detrás do balcão, e a sua boca continuou um túmulo. Tão bem que nos conhecias, Lopêz, e quão mal nós te tratávamos!

Ao primeiro gole, o velho copo ficou meio. Um pouco nervoso, Vagabundo abriu o maço de cigarros, acendeu um e também este ficou pelo meio na primeira passa. Ao lado, mas silencioso, Chico Zé observava e adivinhava que Mamadu esta­va voando em direcção ao Alentejo. Verdade! Mas já não voava, tinha aterrado numa praça onde existia um pelourinho.

Conheci-te menina e moça. És um ano mais velha que eu. Eu ainda adolescente, com borbulhas na cara a despontar uma rara barba, sorrindo introvertido, envergonhado, olhos no chão. Por vezes, num arranque de dignidade, tentava procurar os teus olhos, com o rubor na face de te querer namo­rar.

Ninguém nos ajudou, ninguém nos desculpou, antes pelo contrário, tentaram conspurcar. As nossas mãos límpidas e cora­ção puro para uma simples paixão jovem. Hoje, tão longe tão per­to desse tempo, recordo com angústia que ninguém quis deixar­-nos provar a límpida água da ébria nascente dos nossos sonhos.

Espreitámo-nos por entre janelas de cortinados arren­dados, tendo o pelourinho como sentinela, arvorado em cúmplice guardião, em dias cálidos de verão, ou sorrir de sol em tardes de festa do Santo Mártir. Na sombra das acácias, teceram-se teias de segredos e ternura contida.

Nos meus olhos, a doce tentação do emanar da mensa­gem possível. A vastidão do forte sentir, a envolvente aventura da alma, na ânsia da emoção mal disfarçada. O encoberto e silenciado crime do meu (nosso?) amor, era a certeza de coisa sofrida no amplificar dos sentidos, tentando perscrutar o inaudível me­lódico som de guitarra chorando.

Uma mão tocou-lhe o ombro, e acordou. O Chico Zé tinha-se aproximado, a mão fez mais pressão e falou baixinho:
- Que é isso,  pá? Escreve pelo menos!
- Nunca! Dói-me muito.

Gargalhada.

-Nunca digas nunca. A malta não pode ficar assim. Vamos comer qualquer coisa, depois vão uns fadinhos de Coimbra, O.K.? Anda lá. Espera, vamos primeiro provocar o Jata.

Mamadu reagiu, limpou a garganta com o resto do Dim­ple e, conjuntamente com o Zé, atacaram:

"Diziam que era a mais bela de Andaluzia
Mais bela quando cantava à luz do luar,
Manuela .... Manuela ... "



Jata deu um salto no outro lado da sala e gritou:

- Cabrões! Lopêz dá-me uma 'bazuca'! (A 'bazuca' era um acerveja de 6,6 dcl.)

Não podia ouvir esta canção, tinha de recorrer à cerveja para apagar, ou pelo menos diluir, a lembrança sentida da mulher amada. Quase enlouquecia. Por vezes a dor era tão forte que as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto em pérolas de saudade.

Carlos Manuel e António Pedro aproximavam-se, depois outros. Estava o coro formado. Olhos nos olhos, a guerra pre­sente morria naqueles momentos.

"Ao longe sulcando o espaço
Vai um bando de andorinhas”


O pensamento daqueles jovens, tornados homens de guerra, voava também com as andorinhas. Uma, de certeza, pousaria docemente no campanário da Matriz de N. S. do Paço, e chilreante, tentaria transmitir uma mensagem ao pelourinho.

Era nestas alturas que Lopêz se tornava Chefe man­dante, como ele o sabia fazer tão bem.

-Como é que é, hoje não se come? Vá.  meninos, para a mesa! Depois dizem que a comida não presta.

Abeirava-se mais junto do grupo e sussurrava baixinho, na sua voz gaguejante:

- Olhem que o G3 (, alcunha do primeiro sargento da companhia, ) já está a resmungar.

Aceitavam-se, por vezes, as ordens do Lopêz e o pessoal lá se ia sentando para a opípara refeição, tendo ainda o trabalhão de consultar a lista para escolher o menu:

Esparguete guisada com carne de vaca,

Carne de vaca guisada com esparguete,

Carne de vaca acompanhada de esparguete,

Esparguete para acompanhamento de carne de vaca. 

Difícil!

- Quem me escolhe a ementa hoje que eu estou indeciso? - pedia Tambinha, solícito.
- Come e cala, senão vais pró rancho geral comer baca­lhau amarelo com ciclistas ou batatas podres.

Era verdade. Por vezes não havia facilidades de abaste­cimento, várias vezes se tinha recorrido ao arroz pilado nas tabancas. E que mais queria a malta?

Não havia de vez em quando perdiz, pato, pombo verde e outras aves caçadas pelos doentes da caça?! E gazela com feijão frade?!...


Cada mês havia um gerente de messe. Quando calhava o Mamadu ou o Chico Zé, o G3 entrava em pânico pois não sobra­va um peso, e se as contas davam alguma coisa a favor, havia. bebidas de borla para toda a malta.

Vacas, isso não havia problemas. Quando o stock estava a acabar, fazia-se a operação Vacas. Só de voluntários, pois não se queria muita gente. Poucos, mas dos bons. Parecendo fácil, era muito difícil e extremamente perigosa. Vamos a uma:

Zona: Bolanha da tabanca de Boche Mende entre a mata de Cufar e Cabolol, só a pronúncia deste último nome, dava logo para fazer uma selecção.

Armamento: G3, um lança granadas foguete, uma MG42, granadas de mão ofensivas e defensivas.

Munições: à descrição.

Operação: o grupo de combate não poderia ter menos de trinta homens nem mais de trinta e cinco. O grupo seria dividido em três subgrupos: dois de segurança e um de "campinos".

O grupo saía direito ao cais de Cufar e seguia pelo tarrafo acima até junto à mata de Cufar Nalu. Assim que encon­trasse local apropriado, cambava o rio Manterunga, para o lado da bolanha de Boche Mende. Nesta zona de ninguém, tabancas que se encontravam abandonadas, existiam várias manadas de vacas. Localizada a manada que estaria em melhores condições de manobrar, era montado o dispositivo de segurança pelos dois grupos para esse efeito. Depois seria o trabalho dos "campinos" que tentariam reunir e conduzir o maior número possível de ca­beças para o local onde se cambaria o rio. Não era fácil, pelo contrário, exigia perícia, sangue frio e valentia. A primeira dificuldade, consistia em separar o touro dominante, chefe da manada, dos restantes animais.

Havia duas opções que só no terreno, e no momento se podiam determinar, resultando daí o sucesso ou insucesso da operação. Ou se abatia o touro e corríamos o risco de sermos detectados por algum grupo do PAIGC que andasse próximo, ou até espantar a manada. Tentava-se ir calmamente isolando o macho, de forma a manada ser conduzida facilmente. Tudo muito bem no papel, mas no terreno, só com gente com sangue mais frio do que rãs.

Nem sempre sucedeu bem e uma vez tivemos de pedir o auxilio da artilharia e dos morteiros 81. Com o rabinho entre as pernas e sem vacas, voltámos ao aquartelamento. Outros dias de sucesso compensavam generosamente esse desaire.

Após o jantar, o furriel, como de costume, passou pelo abrigo da secção para verificar o moral da malta. O pessoal estava contente, as coisas tinham corrido bem, havia uma mesa de lerpa, que terminou imediatamente à entrada do chefe dos Vagabundos. Alguns escreviam à luz do candeeiro, feito das garrafas de cerveja com mechas e petróleo lá dentro. O cabo não estava. Há problema!, pensou Mamadu. Perguntou então onde é que ele se encontrava ao que o Ferreira, o homem da MG42, respondeu, dizendo tê-lo visto jun­to ao cajueiro, em frente ao abrigo. Dirigindo-se para lá, dá com o mesmo quadro, o cabo a chorar.
-Que se passa pá, há problemas com a família?!. .. São saudades?!. ..

O cabo engasgou, um soluço abafado e triste saiu-lhe da garganta, virou a cara e disse, soluçando:
-Meu furriel, eu sou um criminoso, um assassino! Numa das casas, quando lancei a granada, estava um bebé a chorar lá dentro!

Mamadu apertou-lhe o braço com força, olhou para o céu e blasfemou, gritando!

-Oh, Deus! Oh, Tu que em tudo mandas, acaba depressa com esta merda de guerra suja, ou então Tu próprio tens de nos perdoar.

Grandes problemas existem nesta guerra, mas aparecem como acto natural, em natureza perversa e suja. Não há impos­síveis. Tudo hoje nos aparece como normal, nesta sujeira envol­vente de lama.

Na parte nova do aquartelamento, ainda no abrigo da secção, estava Vagabundo uma noite a dormir a sono solto, quando pelas vinte e quatro horas, mais ou menos, foi acordado pelo Orlando que estava de sentinela.
- Meu furriel! Meu furriel!
- O que foi?

Perguntou Vagabundo levantando-se e pegando imediatamente na G3.
- Não é nada, não faça barulho, deixe a arma venha ver, por aqui!

Saíram contornando as bananeiras, junto ao cajueiro, Orlando disse baixinho:
- Olhe ali para o curral das vacas, junto ao poilão!

Mamadu ficou pasmado, embora o luar não fosse o natural de África, pois a noite apresentava-se um pouco escura. A cena não era só visível, mas perfeitamente audível. O Fumaça, empoleirado nas raízes do poilão, calções em baixo, possuía a vaca preta, a Pretinha,  como se lhe chamava derivado da sua man­suetude. A mão direita afagava o bicho, enquanto se ouvia uma voz rouca e trémula de excitação:
-Está quieta, pretinha ... está quieta ...

Vagabundo
ia dar um berro. Dominou-se, pegou no braço de Orlando e sussurrou:
-Anda, vamos embora, os outros não utilizam a cabra? Deixa os animais,  coitados,pois é deles a noite como dos lobiso­mens. É o que esta maldita guerra faz de todos nós! Não somos animais, rapaz, somos bestas.

Fumaça ficou satisfazendo os seus instintos animalescos, e Vagabundo, num turbilhão mental de dor, de revolta, de dó e de confusão, pensou num ser Superior. Pensou, pensou, até entrar no escuro, e não conseguiu resposta nenhuma. Mas sentiu uma certeza: Deus deve estar completamente desfeito e desi­ludido, ao verificar a merda em que se transformou o homem que criou.

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Nota do editor:

19 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17258: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XX Parte: Cap XI - Como se Constrói uma Capela... ou o insólito encontro com o carismático capelão Monteiro Gama, do BCAV 490 (Binta e Farim, 1963/65)