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domingo, 19 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26402: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (2): "se não prevenires hoje, amanhã pode ser tarde demais"... (Luís Graça)

Luís Graça
1. Houve vários casos, no TO da Guiné (e também em Angola e Moçambique), de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", erro humano ou técnico, falha no manuseamento de arma de fogo, granada, mina ou armadilha, etc, ocorridos entre as NT, e que originaram baixas mortais (e feridos graves), tendo invariavelmente sido tratadas, para os devidos efeitos (incluindo estatísticos) como "acidentes com arma de fogo" (*).

Interessei-me, em tempos, noutra encarnação, na minha vida académica, pelo tema dos "acidentes de trabalho" (a par das doenças profissionais e das doenças relacionadas com o trabalho)... Aliás fiz o meu doutoramento em saúde pública, na área de especialização em promoção da saúde no trabalho...

Na época (anos 80 do século passado, estávamos nós a prepararmo-nos para entrar no "clube dos ricos", a então CEE...),  ainda tinha muita aceitação em termos de senso comum a teoria do "blaming the victim": a vítima é que é culpada, até prova em contrário... Se é "erro humano" eu não pago, diz o empregador, diz a seguradora (pública ou privada)...

Na maior parte dos casos, o acidente (de trabalho, de lazer, de viação, de comboio, de aviação, de pesca, etc.) era devido a "erro humano" (o "operador"), e só muito acessoriamente a "falha técnica" (a "máquina").

Era/é uma teoria que dava/ dá jeito para a gente (a começar pelo Estado, os empregadores, as seguradoras...) sacudir a água do capote: 

  • ah!, não usava o capacete, os óculos de proteção, os auriculares, as botas de biqueira de aço, o famoso EPI...obrigatório por lei; 
  • ah!, era imigrante, não falava português;
  • ah!, era fumador;
  • ah!, era muçulmano, estava na Ramadão, não comia de dia, estava fraco; 
  • ah!, 'tava com os copos, etc.

Ora eu defendia na altura a abordagem sociotécnica integrada. O acidente é sempre de origem multifactorial (depende de uma multiplicidade de factores de natureza física, química, biológica, psicossocial, organizacional, cultural), pelo que não se pode dissociar o "operador" e a "máquina", o "erro humano" e a "falha técnica, o indivíduo e o sistema, o pescad0r, a pesca, o barco, os apetrechos de pesca, o mar....

Tendencialmente os sistemas socioténicos, abertos, complexos, integrados (do avião à fábrica, da unidade militar à equipa de futebol) devem aproximar-se do zero erro... O erro pode ter maiores ou menores custos (diretos, indiretos e ocultos) e nalguns casos catastróficos como a queda de um avião, um naufrágio d eum barco de pesca, o descarrilamento de um comboio, a queda de um guindaste, etc,...).

Nessa medida, o acidente, todo o acidente pode ser minimizado e prevenido, melhorando ou redesenhando o "sistema sociotécnico de trabalho"... O acidente é sempre, nessa medida, uma probabilidade estatística conhecida...

Os "acidentes com armas de fogo" podem ser equiparados aos "acidentes de trabalho", pelo menos na suas causas e consequências.... Se eu não tenho armas com uma alta fiabilidade e mecanismos de segurança, nem atiradores devidamente selecionados e altamente formados, treinados, competentes (e com boa saúde física e mental), corro o risco de ter um acidente... Isto é válido para todas as situaçóes de trabalho ou atividade humana, no ar, no mar ou em terra, em paz e em guerra, etc.

O uso do álcool como droga "legal", socialmente aceite,  tolerada e até incentivada pelo Exército no nosso tempo, no teatro de operações...) pode também ajudar a explicar casos como o do infeliz Cavaco (que provocou uma tragédia).
 
Centrando-nos neste caso: o Cavaco, apurado para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialidade (era soldado condutor auto, deve ter feito testes psicotécnicos, era portador legal de carta de condução)... Bolas, não era um "básico qualquer" (!)... Mas não fez (nem nenhum de nós fez) testes de avaliação psicológica...

Dir-me-ão: mas era de todo impossível, com uma guerra como aquela em três frentes, a milhares de quilómetros de casa,  mesmo sendo considerada de "baixa intensidade!.. O país que mal conseguia recrutar, instruir, financiar, mobilizar, alimentar, municiar, manter e refrescar o então "maior exército do mundo" (à nossa escala ou dimensão), podia lá dar-se a esse luxo!... Bolas, mobilizámos, só na metrópole, 800 mil homens. Um milhão, com os não metropolitanos (ou de recrutamento local). Mais de um milhão, com que os que foram recrutados, e treinados mas que ficaram na metrópole...

E depois nem havia psicólogos!...(E os psiquiatras eram só "p'rós malucos"!)... Mas havia capelães, mesmo que a malta já não fosse à missa... E muito menos havia controlo do álcool (a não ser por via do autocontrolo e do medo do RDM ..) para certas funções, cargos ou especialidades...

E afinal de contas "só" tivemos menos de 11,5% (entre as tropas metropolitanas) de baixas mortais por "acidente com arma de fogo" podendo aqui incluires, se quiseres, uns tantos casos, "que se contam pelos dedos" (!), de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", e coisas do género sem significado estatístico)... 

Depois dos "ferimentos em combate (58,5%), a "doença" matou mais (12,9%)...E se juntares  o "acidente de viação" (7,6%), o "afogamento" (6,3%) e "outras causas (3,1%)  tens a  segunda causa de morte (17,0%) entre as tropas metropolitanas na Guiné (num total de 2177 baixas mortais, por todas as causas). (*)

Pois é, falta-nos investigação de arquivo: só consultando os processos individuais, as certidões de óbito, os processos de averiguações do acidente, etc., é que poderíamos ter uma ideia mais aproximada destes casos, e do seu contexto, etc. Tarefa ciclópica: a tropa não te permite a consulta destes processos individuais em arquivo  a não ser com autorização (escrita) dos familiares mais próximos...(E todos os casos ainda podem ser dolorosos,  havendo alguns muito delicados: indícios ou provas  de suicídio ou homicídio, etc ..).

Mas tudo isto foi passado num "outro país" e  numa época em que a teoria da "carne para canhão" também era muito "popular" e aceite, com resignação, fatalismo ou  naturalidade, não só pelo "povo" como pelas "elites", políticas, militares, sociais e económicas... (e até religiosas).

O busílis da questão é que só tarde e mais horas é que os "altos crânios" desse tal país se  deram conta da crescente rarefação dos recursos humanos qualificados, necessários para alimentar uma guerra de longa duração (e que só poderia ter uma solução política...), a começar pelos comandantes operacionais... (As Academias Militares são bonitas, sim, senhor, mas  só em tempo de paz...).

Sabemos no que deu "fechar os olhos, os ouvidos e a boca" face à realidade (gritante), a de que, mais tarde ou mais cedo, a coisa ia dar m*rda...

Moral da história: se não prevenires hoje, amanhã pode ser tarde demais...
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26398: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (1): o caso o cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, cmdt da CART 1613 (Guileje, 1967(68), morto em São João, em 24/12/1966