Foto (e legenda): © Alcides Silva (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Foi assim que o Virgínio entrou paara o nosso blogue, em 18 de outubro de 2005. Tratou-me cerimoniosamente por você (*): o que era natural, não nos conhecíamo-nos, pessoalmente... E contou-nos uma história, muito bonita, não de caça ao crocodilo, mas de amor, entre um caçador de crocodil0s, Ansumane, e a uma jovem, Cadi, que foi forçada a casar-se com outro homem...
Caro Luís Graça,
Descobri há pouco tempo o seu interessante blogue. Todos os dias à noite passo por ele e vou-me actualizando, lembrando aqueles tempos. Passei também por aquelas terras. Fui mobilizado, em rendição individual, para a Guiné em Janeiro de 65, para um batalhão que tinha participado na Op Tridente, na Ilha do Como e que mais tarde esteve em quadrícula, sediado em Farim.
Fui colocado em Cuntima, na fronteira norte. E, quando o Batalhão se preparava para regressar, ingressei nos comandos em Brá. Corri com o meu grupo a Guiné quase toda. Também fui a Satecuta, ao Galo Corubal e por lá andei 19 dias, na época das chuvas.
Tenho muita coisa escrita, coisas que guardei para mim, que fechei numa mala, quase durante 40 anos. Envio-lhe uma história que ouvi lá.
Um abraço,
V. Briote
2. Comentário do editor LG, com data de 19/10/2005:
(...) Como vês, Virgínio, a malta vai juntando peças para fazer o puzzle da memória da guerra (colonial ou do Ultramar, como queiras), sem sentimentos de culpa, sem acusações, sem vanglórias... Tem sído bonito, dizem-me, e eu também sinto que sim. E talvez para o ano, a gente se possa juntar, conhecer pessoalmente e beber um copo. (...) (**)
_____________
ANSUMANE, O CAÇADOR DE CROCODILOS
(conto tradicional guineense,
recolhido por Virgínio Briote)
A agitação interior que eu sentia, miudinha, contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio.
− Boa noite, patrão!
O Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dafé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes.
− Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?
Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo. A agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu.
− O que é aquilo, Braima?
− Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo. Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora...
... Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Cadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres. Cadi a crescer, o coração fraco a palpitar, começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região.
Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Cadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.
Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Cadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe.
Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda noturna como era costume, viu a adorada Cadi, ao ar fresco da noite na varanda.
Cadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado.
− Tens que ser minha!.
− Não posso, Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou!
− Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei!
− É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher.
Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Cadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir:
− Cadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos, Cadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance.
Cadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar:
− Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.
Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Cadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane.
− Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos!
Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de 'buco' (#talvez ficasse melhor, diria a Cadi que lho preparasse.
− Cadi, Cadi!
A voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Cadi, devia estar a repousar, não a viu, Cadi, outra e outra vez o eco sem resposta. Onde estaria Cadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria?
A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.
Não queria acreditar, as febres, Cadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, "Caaadiii!!!", …um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se!
Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse!
Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar.
Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Cadi que agora mais que nunca era sua. E, erguendo-se para o céu, pediu a Alá que os protegesse.
A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar!
Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!
... Quando Braima acabou a história, fixei melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar.
O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão! Braima respondeu com um prolongado:
A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.
Não queria acreditar, as febres, Cadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, "Caaadiii!!!", …um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se!
Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse!
Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar.
Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Cadi que agora mais que nunca era sua. E, erguendo-se para o céu, pediu a Alá que os protegesse.
A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar!
Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!
... Quando Braima acabou a história, fixei melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar.
O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão! Braima respondeu com um prolongado:
− Eh! eeeeh!
E estalou repetidamente com a língua…
− Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor!
Umas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida. (***)
Virgínio Briote
Virgínio Briote
(Revisão / fixação de texto / nota: LG)
(#) Nota de LG: "Buco", do crioulo da Guiné-Bissau: planta medicinal de cujas folhas se faz um chá usado na prevenção do paludismo e no pós-parto. Fonte: Porto Editora – buco no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2025-01-22 18:13:25]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/buco
Notas de L.G.
(*) Vd. pposte de 17 de outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)
(***) Último poste da série > 22 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26414: Os 111 históricos do nosso blogue, que agora passam a "senadores" e "senadoras" (1): Virgínio Briote e Rogério Freire, que hoje fazem anos