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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21553: Agenda cultural (764): Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Andara desleixado, até que alguém advertiu que a exposição sobre as moranças guineenses estava patente até ao final do ano. Fiquei assombrado com a seleção de imagens, a doação do Arquiteto Fernando Schiappa de Campos parece ter uma dimensão impressionante, foi incansável a registar mais do que as moranças, usos e costumes, museograficamente é um atrativo para os olhos, obriga a refletir e para nós que lá vivemos é uma tremenda sacudidela na nostalgia, percorremos estas atmosferas e até colhemos bonitos sorrisos deste povo que não se ensaia pela belicosidade e que, no entanto, é dos mais afáveis do mundo. Não percam a exposição, até porque com o mesmo bilhete têm acesso ao valiosíssimo património do museu e visita ao esplendoroso jardim botânico.
Quando disse à minha neta que havia lá uma sala de dinossauros, entusiasmada, lá fomos. Depois contarei como foi.

Um abraço do
Mário


Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau,
Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano


Mário Beja Santos

Depois da aula de ginástica, quatro reformados acordaram em ir visitar a exposição sobre as moranças guineenses, supostamente já fechada ao público, descobriu-se que é possível visitá-la no majestoso edifício que foi o Colégio dos Nobres, depois Escola Politécnica e agora Museu Nacional, toca a preparar uma visita-guiada, com antropólogo e tudo. Muito está estudado sobre o habitat guineense. Teixeira da Mota, quando trabalhou como Adjunto do Governador Sarmento Rodrigues, pôs de pé um conjunto de estruturas culturais que marcaram indelevelmente o conhecimento antropológico, etnólogo e etnológico das suas populações. O oficial de Marinha convocava os administradores para produzirem estudos monográficos que vieram a ser publicados no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, as investigações mais curtas e parcelares ficaram dispersas no valioso Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Sobretudo no final da década de 1940, por toda a década de 1950 e também com algum dinamismo ao longo da década seguinte, foram aparecendo trabalhos que deram conta da completa integração da morança do quadro da tabanca, o uso de materiais, a construção permitia espaços sombrios e frescos, as arrecadações, as construções de querentim permitiam a privacidade do agregado familiar, a posição estratégica da mesquita, a produção de adobe, o corte dos cibes, a lógica de pinturas, especialmente na cultura Bijagó. A Junta de Investigações do Ultramar enviou dois arquitetos e um sociólogo no fim da década de 1950 para aprofundar esse conhecimento. É do trabalho dessa missão que esta magnífica exposição revela que o investigador foi acicatado pela curiosidade e cedeu ao feitiço africano. Todas estas imagens falam de um encontro de alguém que seguramente tinha conhecimentos dos locais que visitava, mas foi tão intenso o encontro que o fotógrafo se perdeu de amores. Consta mesmo que o arquiteto Fernando Schiappa de Campos guardou esta revelação até morrer, fora deslumbramento inextinguível.
Para saber mais, quem vai visitar esta exposição pode consultar o seguinte site: https://museus.ulisboa.pt/sites/default/files/Folheto%20Moran%C3%A7as%20site.pdf
Enquanto o grupo espera a chegada do mestre de cerimónias, um tanto à sorrelfa vou até à zona do museu onde se situa o velho Laboratório de Química, que liga com o anfiteatro muitíssimo bem conservado. Nestas balaustradas, os alunos viam professores fazer as experiências que deviam ser comentadas em voz alta, os alunos nesta geral deviam ir pondo questões. Tudo obra do passado, ainda bem que estas relíquias estão primorosamente conservadas. E agora vamos começar a visita propriamente dita.
Aqui ficam as imagens de quem por lá andou e os dois aparelhos fotográficos que pertenceram a Schiappa de Campos. O nome deste arquiteto era muito conhecido, quando andei a pesquisar a história do BNU da Guiné, ele foi chamado a apresentar um projeto para a construção da nova delegação do banco em Bissau, não retive se também fora convidado para apresentar o projeto da delegação de Bafatá, prevista em 1974. Era portanto um conhecedor da Guiné, mas estas imagens não são as de um repórter seduzido, é alguém que entrou na intimidade de diferentes facetas culturais, dir-se-á hoje que procedeu inclusivo, despido de preconceitos, deixando as imagens exprimir formas de resposta àquilo que alguém designou por Babel negra.
Quem visitar a exposição registará que o fotógrafo colheu diferentes imagens deste dançarino Bijagó, ele aparece a remoinhar, aquela ráfia se sacode vertiginosamente, é uma dança que vai afrontar, pode ser um tubarão-martelo, pode ser os espíritos endemoninhados que precisam de ser aplacados pelo vigor do movimento e dos sons. E repare-se como a vida continua na proximidade, aquele toque de quotidiano que nos é dado pelo arco com que o menino brinca.
E temos a luta, um desporto com regras, não é para bater nem massacrar, é para coroar a agilidade, há lutadores com o corpo bem oleado, há quem faça das mãos e da postura o engenho que leva ao desequilíbrio do contendor, veja-se a simetria das posições, até parece que há ali um árbitro que confere as regras da equidade, para ver quem primeiro bate com os costados no chão.
Atenda-se ao pormenor, o que interessa ao fotógrafo é revelar os adornos dentro de uma certa elegância corporal e nada mais, o que prova que não são necessárias braceletes de ouro ou prata, o cordame é mais do que suficiente para decorar e chamar a atenção, em todas as culturas o corpo é vitrina, os adornos são chamariz, é o que dita a imagem.
Temos aqui o transporte de mel, há quem esteja esquecido que foi sempre uma riqueza e produto de troca, há milénios. Há diferenças nas etnias quanto à forma de afugentar as abelhas e retirar os favos preciosos. Como nunca vira este comércio, pensei que se tratasse de uma imagem deslocada, até me pareceu um transporte asiático, mas não, o que está ali é mel e da Guiné.
Temos agora a derradeira fotografia, Schiappa de Campos talvez tenha organizado encenação, uma pose quase de estúdio. Veja-se a seriedade da mulher, o olhar dos dois jovens vai ficar gelificado para a eternidade e aquele sorriso é de quem ama a vida, gostou de acolher o visitante e quer que saibam, para todo o sempre, que tirar uma fotografia é sempre um tiro para a posteridade, como aqui aconteceu, guarda-se a nobreza dos povos e acende-se o rastilho desse feitiço de ver tão belas imagens e ter uma infinita saudade de gente tão acolhedora, tão cruelmente fustigada pelos desatinos do destino.
Não percam esta exposição, é gente que conhecemos e que jamais esquecemos, pelo que a vida nos ensinou.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18367: Fotos à procura de... uma legenda (101A) : A técnica de construção da estrutura superior das moranças fulas... (Cherno Baldé / Luís Graça / António Rosinha / Armando Tavares da Silva)



Desenho manual da fase inicial de construcao de uma palhota
Infografia: Cherno Baldé (2018)




Foto nº 1


Foto nº 2

Foto nº 3


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (1968/69) > Candamã > Reconstrução de moranças, depois do ataque de 30/7/1969. Fotograma de "slides", do Henrique Cardoso, retiradas, com a devida cortesia, do seu vídeo, disponível aqui, no You Tube / Henrique Cardoso.

Fotos: © Henrique Cardoso (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 4

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > Madina Xaquili > Junho de 1969 > A morança que foi destinada ao Fernando Gouveia quando foi destacado para Madina Xaquili, para reforçar o sistema de autodefesa.

Foto: ©  Fernando Gouveia  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Comentário de Cherno Baldé ao poste P18357 (*):

Quero desafiar a capacidade de observação dos antigos combatentes com a seguinte questão:

- Quem sabe ou quem é capaz de descrever a técnica que os Fulas do campo usavam na construção daquelas casas (palhotas) redondas onde viviam? Quem acertar dou um preéio.

 PS: Nas imagens vemos algumas casas (palhotas) com a estrutura já pronta, faltando cobrir com a palha [Fotos nº 1 e 2]

2.  Comentário do nosso editor LG [Tabanca Grande]:

Cherno, é um bom desafio...Mas eu não me atrevo a ser o primeiro a tentar responder-te... 

Passei algumas semanas em tabancas em autodefesa, sobretudo no tempo das chuvas... A (re)construção das moranças, a mudança do colmo, etc., era feita no tempo seco... E o tempo seco era o das grandes operações, quando íamos aos 'santuários' [ou 'zonas libertadas']  do PAIGC, uma vez por ano...



3. Comentário de António Rosinha:


Respondendo à pergunta sobre a técnica dos fulas na construção das cubatas redondas e o colmo de palha no telhado, não sei bem a que se refere o Cherno, sei que são abrigadas contra o calor, o frio e os ventos de qualquer direcção.

Com aquele telhado que fica a aba a 1 metro do chão, temos uma climatização o ano inteiro.

Mas já vi jovens cooperantes suecos a fazer adobe e a construir,  com esses tijolos, uma escola nos arredores de Bissau, e os guineenses sentados à sombra dos mangueiros a ver aquela "novidade", adobe.

Também já vi japoneses a fazer arroz numa bolanha de Bafatá, e balantas e fulas a assistir àquela novidade agrícola, o arroz.

Acho que os suecos e os japoneses já foram todos embora e os guineenses não continuem sentados.


4. Resposta do Cherno Baldé:

Caros amigos Luis e Rosinha,

A última imagem do Post mostra uma armadura circular feita de canas de bambu enrodilhadas e suportada por paus à volta com um diâmetro de mais ou menos 4/5 metros (onde os dois rapazes estão encostados) [Foto nº 2] . É este o sítio onde se começa a montagem/construção das estruturas que vão servir de cobertura às casas (Palhotas).

Para começar, escolhem as melhores canas de bambu e encostadas uma a uma a volta da estrutura circular, vão cruzá-las no meio do círculo onde serão atadas, formando desse modo a parte que, quando invertida ou levantada para cima , vai constituir o topo da casa, chamada de cabeça.

Assim, mais de metade desta estrutura de cobertura de colmos é colocada ainda no chão e amarrada com cordas de ramos de palmeira (ráfia), antes de a levantar, colocando a parte que estava em baixo para cima, e fazer subir em cima das paredes redondas (ou outra estrutura qualquer de Kirintins) que servirão de base de apoio à cobertura feita de palha ou de folhas de cibes, conforme as regiões do país e a disponibilidade da palha de cobertura que se podia encontrar na orla das bolanhas, que é cada vez mais rara.

À primeira vista parece simples, da mesma forma que, aos olhos do leigo, parece simples matar uma galinha e dividi-la em partes, mas os mais novos tinham que aprender com os mais velhos e respeitar os procedimentos e o ritual subjacente, sem o qual o trabalho não tinha o devido valor aos olhos da comunidade e dos seus valores.

Se calhar, todos acham que sabem fazer o trabalho elementar de matar uma galinha é de a dividir em diferentes partes!?

Nada mais errado. Da forma como os metropolitanos matavam galinhas no quartel, nenhum Homem grande Fula aceitaria consumi-la. Primeiro por razões religiosas sim, mas também porque não correspondia às normas locais de procedimento e de respeito à vida do animal.

Uma casa que fosse construida sem respeitar as regras ancestrais, também podia ser rejeitada pelos mais velhos e transformar-se num trabalho inglório.

Tenho a quase certeza que o "alfero Cabral",  de Missira, sabia esfregar mamas de Bajudas, mas não aprendeu a arte de matar uma galinha ou da construção de uma bela palhota, palhota de receber hóspedes ilustres, como aquela que reservaram ao Fernando Gouveia em Madina Xaquili ou ao Luís Graça em Saré Ganá com os respectivos mobiliários, sem esquecer a "turpeça" do chefe.


4. Comentário de Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno: sim, a cobertura ou cabeça da habitação em forma cónica é montada ao nível do solo à volta da estrutura circular de bambú que se vê na imagem do lado direito e onde estão encostados os dois rapazes [Foto nº 2].

As canas de bambú serão atadas no meio, mas penso que esta operação não será feita ao nível do chão, pois, de contrário os rapazes não chegariam ao topo onde as pontas das canas irão ser atadas.
Mas acrescenta que esta estrutura é ”levantada ou invertida”, fazendo crer que esta fase da construção pode ser realizada de 2 maneiras. Em qualquer caso isto obriga a levantar a estrutura alguns metros acima do solo, para se poder construir por baixo as paredes da habitação. E isto, como é que é feito? Não será preciso mais gente?

Agradeço estes esclarecimentos.


5. Resposta do Cherno Baldé:

Caro Armando,

Obrigado pelo interesse sobre o assunto.

O topo da cobertura das casas que estão a ver, estavam no chão e no centro da estrutura circular, mas invertidas e na posição contrária daquela que se ve nas imagens. Mais de metade desta cobertura em canas de bambu deve ser montada no chão, em posição invertida, antes de se colocar em cima da parede da casa. Para a colocar, o indivíduo que estava a montar e amarrar as canas  precisava do apoio de um número determinado de pessoas para colocá-la em cima da parede, dependendo do tamanho da casa em construção.

A fase seguinte consistia em meter mais canas de bambu, agora de baixo para cima e fechar todos os espaços vazios. É isto que o rapaz da primeira imagem { Foto nº 1] está a fazer, estando em cima da cobertura a fim de prender solidamente com as cordas de rafia fabricadas a partir de ramos de palmeiras.

Espero ter ajudado a compreender o procedimento,


 6. Nova pergunta Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno:

Peço desculpa mas ainda não compreendi bem o procedimento. Invertidas significa que a parte de cima (ou de fóra)  é a que vai ficar da parte interior da habitação? O atar da extremidade das canas de bambú é feito quando estas se encontram ao nível do chão (no plano do chão)? Qual a utilidade da estrutura circular? Como é que ela é utilizada na momtagem das estruturas de cobertura? Eu pensava que esta estrutura servia para nela se encostarem as canas de bambú de modo a serem atadas no topo.

Abraço

7. Resposta  final do Cherno Baldé:

Caro amigo Armando,

Tenho umas fotos que vou tentar recuperar e enviar-te via  Blogue da Tabanca Grande, pois acho que não consegui explicar convenientemente, mas com a imagem será mais facil. Se quiseres, poderás indicar um contacto de e-mail para poder enviar-te directamente, caso consiga recuperar a tal imagem que tinha numa máquina fotográfica [, vd infografia acima]. (**)

Um abraço,
Cherno Balde

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