"O meu país celebra a inscrição da sua alma na alma da Humanidade"."
(...) Agora é que é mesmo. A Morna foi hoje proclamada Património Imaterial da Humanidade. “Para todo o Cabo Verde, hoje é um dia feliz, em que nos sentimos felizes de ser cabo-verdianos”, destacou o Ministro da Cultura e Indústrias Criativas, Abraão Vicente, em língua cabo-verdiana, no discurso de celebração, perante o Comité do Património Cultural Imaterial da UNESCO.
No seu discurso, que prosseguiu em castelhano, Abraão Vicente congratulou a consagração desta prática musical que é a alma de Cabo Verde, agradecendo à UNESCO, aos peritos e a toda a comunidade.
“Hoje o meu país celebra! O meu pequeno país, formado por 10 ilhas no meio do Atlântico, meio milhão de habitantes residentes e um milhão em todo o mundo, o meu país celebra a inscrição da sua alma na alma da Humanidade”, disse.
O Ministro assumiu ainda que será cumprido “com honra o privilégio de ver reconhecido como património da Humanidade, o vínculo emocional mais importante do povo e nação de Cabo Verde: a Morna”.
E, em jeito de presente do povo de Cabo Verde, apresentou “dois músicos de referência que irão representar não somente os artistas e os compositores, mas a gente simples de Cabo Verde”.
“Porque a morna é a alma do nosso povo”.
E a morna fez então ouvir, pela voz de Nancy Vieira e a viola de Manuel di Candinho, na reunião do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade.
Caminho longe
A candidatura da Morna foi oficialmente apresentada no passado mês de Março e hoje, na cidade colombiana de Bogotá, foi confirmada como Património Imaterial da Humanidade.
Neste processo de candidatura, Cabo Verde contou com o apoio de Portugal tendo Paulo Lima, especialista na elaboração de processos de candidatura a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, estado no país para uma missão de assessoria técnica de apoio à instrução da candidatura.
A 27 de Fevereiro, o parlamento aprovou, por unanimidade, a data de 03 de Dezembro como Dia Nacional da Morna, dia em que nasceu Francisco Xavier da Cruz, mais conhecido por B. Léza (1905 - 1958), um dos maiores compositores do género musical.
A 7 de Novembro, Abraão Vicente já tinha dito que a nomeação era certa, no que foi, por muitos, considerado como uma "partida em falso" uma vez que ainda faltava a confirmação oficial do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade. Esta acabou por surgir hoje durante a reunião que, se iniciou no dia 8 e termina dia 14." (...)
2. Neste dia de alegria e felicidade para os cabo-verdianos (*), a que se associam, seguramente, os demais povos lusófonos, e os amantes da morna, como eu (**), deixem-me aqui lembrar a letra (e a música) da morna talvez mais conhecida em todo o mundo, a mais emblemática, numa interpretação (imortal) da Cesária Évora, a "Sodade":
Quem mostra bo es caminho longe? [Quem te mostra esse caminho longo ?]
Quem mostra bo es caminho longe? [Quem te mostra esse caminho longo ?]
Es caminho pa São Tomé [Esse caminho para São Tomé ?]
Sodade, Sodade, Sodade [Saudade, saudade, saudade]
Des nha terra, São Nicolau [Da minha terra natal São Nicolau]
Si bo screve m', [ Se me escreveres, ]
M' ta screve bo [ Eu escrever-te-ei,]
Si bo squece m' [Se me esqueceres,
M' ta squece bo [Eu te esquecerei,]
Até dia qui bo volta [, Até ao dia em que voltares]
Des nha terra, São Nicolau [Da minha terra natal São Nicolau]
Si bo screve m', [ Se me escreveres, ]
M' ta screve bo [ Eu escrever-te-ei,]
Si bo squece m' [Se me esqueceres,
M' ta squece bo [Eu te esquecerei,]
Até dia qui bo volta [, Até ao dia em que voltares]
Sodade, Sodade, Sodade [Saudade, saudade, saudade]
Des nha terra, São Nicolau [Da minha terra natal São Nicolau]
Curiosamente a autoria desta morna, a "Sôdade", ainda hoje é atribuída, indevidamente, nalguns sítios, à dupla de Amândio Cabral / Luis Morais.
Na realidade, o autor da "Sôdade" foi Armando Zeferino Soares (1920-2007), compositor e comerciante na sua ilha natal, São Nicolau. Segundo declarações à Agência Lusa, sete anos antes de morrer, ele explicou como esta morna nasceu quando, por volta de 1954, foi despedir-se de um grupo de conterrâneos, na situação infamante de "contratados" para trabalhar nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe. Era habitual , em Cabo Verde, os amigos e familiares irem-se despedir de quem ia partir, talvez para sempre. A emoção era grande, dada a incerteza da viagem, da estadia e do regresso.
Os "contratados" cabo-verdianos, a par de angolanos e moçambicanos, alimentavam a economia colonial local, basada na monocultura do cacau e do café. enquanto a população local, os "forros" (descendentes de escravos), se recusavam a trabalhar nas roças.
Um ano anos, com início em 3 de fevereiro de 1953, tinha acontecido o "massacre de Batepá" (, despoletado por um conflito laboral, tal como o massacre do Pidjiguiti, em Bissau, em 3 de agosto de 1959, que se tornou, desgraçadamenet, numa espiral de violência.)
Hoje, dia de festa, não é a melhor ocasião para lembrar esta triste efeméride...Em todo caso, convém dizer que sobre o massacre de Batepá há um manto diáfano de efabulações e de silêncios que mascaram e escamoteiam uma realidade complexa e contraditória, em que os próprios "contratados" foram instrumentalizados pelo poder colonial, e pelos fazendeiros, a responder a uma alegada revolta dos "forros" (Fala-se em mais de mil mortos, segundo fontes são-tomenses, ou em 100 a 200, segundo as autoridades coloniais da época; continua a ser, em todo o caso, um trágico acontecimento da nossa história colonial, pouco ou nada conhecido tanto dos portugueses, como dos próprios são-tomenses e dos cabo-verdianos, nos seus contornos, antecedentes, causas imediatas, processo, protagonistas e consequências; em São Tomé, o 3 de fevereiro de 1953 é feriado nacional, o " Dia dos Mártires da Liberdade"; o governador geral de São Tomé e Príncipe, cor art Carlos Sousa Gorgulho, fica para sempre associado a esta página negra da história do colonialismo; não escrevo "colonialismo português", porque o colonialismo não tem... pátria!)
Os "contratados" cabo-verdianos, a par de angolanos e moçambicanos, alimentavam a economia colonial local, basada na monocultura do cacau e do café. enquanto a população local, os "forros" (descendentes de escravos), se recusavam a trabalhar nas roças.
Um ano anos, com início em 3 de fevereiro de 1953, tinha acontecido o "massacre de Batepá" (, despoletado por um conflito laboral, tal como o massacre do Pidjiguiti, em Bissau, em 3 de agosto de 1959, que se tornou, desgraçadamenet, numa espiral de violência.)
Hoje, dia de festa, não é a melhor ocasião para lembrar esta triste efeméride...Em todo caso, convém dizer que sobre o massacre de Batepá há um manto diáfano de efabulações e de silêncios que mascaram e escamoteiam uma realidade complexa e contraditória, em que os próprios "contratados" foram instrumentalizados pelo poder colonial, e pelos fazendeiros, a responder a uma alegada revolta dos "forros" (Fala-se em mais de mil mortos, segundo fontes são-tomenses, ou em 100 a 200, segundo as autoridades coloniais da época; continua a ser, em todo o caso, um trágico acontecimento da nossa história colonial, pouco ou nada conhecido tanto dos portugueses, como dos próprios são-tomenses e dos cabo-verdianos, nos seus contornos, antecedentes, causas imediatas, processo, protagonistas e consequências; em São Tomé, o 3 de fevereiro de 1953 é feriado nacional, o " Dia dos Mártires da Liberdade"; o governador geral de São Tomé e Príncipe, cor art Carlos Sousa Gorgulho, fica para sempre associado a esta página negra da história do colonialismo; não escrevo "colonialismo português", porque o colonialismo não tem... pátria!)
A letra e a música da morna "Sôdade" traduzem muito da idiossincrasia do cabo-verdiano, dividido entre o "ter de partir" (para fugir da fome e da miséria) e o "querer ficar" (por amor à terra). Entre 1922 e 1971, estima-se em 12 mil o número de cabo-verdianos que foram forçados a emigrar para São Tomé, numa altura de reto em que a economia são-tomense e o sistema dos "contratados" entravam em crise,,,
Por outro lado, com a descolonização e a independência de São Tomé e Príncipe, muitos destes cabo-verdianos não puderam voltar à sua terra e a situação de miséria, na sequência da decadência e encerramento das roças de cacau e de café (,com o regresso de dois mil brancos a Portugal), ainda hoje é um problema social (e diplomático) que está por resolver entre as três partes implicadas, São Tomé, Cabo-Verde e Portugal.
Por outro lado, com a descolonização e a independência de São Tomé e Príncipe, muitos destes cabo-verdianos não puderam voltar à sua terra e a situação de miséria, na sequência da decadência e encerramento das roças de cacau e de café (,com o regresso de dois mil brancos a Portugal), ainda hoje é um problema social (e diplomático) que está por resolver entre as três partes implicadas, São Tomé, Cabo-Verde e Portugal.
Oxalá esta consagração mundial da morna seja, tal como aconteceu com o fado, uma oportunidade histórica para o renascimento deste género musical, com o aparecimento de novos temas, compositores, músicos, letristas e vozes. Também Cabo-Verde está a sofrer as consequências do "rolo compressor" da globalização que, a par de aspetos positivos, está a matar a diversidade cultural da humanidade (, além da biodiversidade, em consequências das alterações climáticas e dos impactos negativos do desenvolvimento económico e social nos ecossistemas).
PS - Pode ser ver-se aqui, na RTP Play, um excelente trabalho de reportagem sobre a Morna Património Mundial da Humanidade (vídeo: 50' 30''). Um dos entrevistados é o nosso camarada e membro da Tabanca Grande, Carlos Filipe Gonçalves (ex-fur mil amanuense, QG, Santa Luzia, Bissau, 1973/74, jornalista, escritor, estudioso da morna e de outras formas da música de Cabo Verde).
Sinopse: "A Morna é um género musical de Cabo Verde, tradicionalmente tocada com instrumentos acústicos. Reflete a realidade insular do povo crioulo e os seus sentimentos mais genuínos: a saudade; o amor; a morabeza; a chegada e a partida.Apesar das várias versões sobre a sua origem, acredita-se que a Morna terá nascido no século XIX da convergência entre os ritmos melancólicos trazidos pelos judeus do norte de África; da modinha brasileira; do lundum português e mais tarde (princípio do século XX) do fado.
"Tornou-se símbolo nacional, eternizado por vozes tão carismáticas como Bana; Ildo Lobo; Tito Paris; Mayra Andrade; Lura, Mário Lúcio.
PS - Pode ser ver-se aqui, na RTP Play, um excelente trabalho de reportagem sobre a Morna Património Mundial da Humanidade (vídeo: 50' 30''). Um dos entrevistados é o nosso camarada e membro da Tabanca Grande, Carlos Filipe Gonçalves (ex-fur mil amanuense, QG, Santa Luzia, Bissau, 1973/74, jornalista, escritor, estudioso da morna e de outras formas da música de Cabo Verde).
Sinopse: "A Morna é um género musical de Cabo Verde, tradicionalmente tocada com instrumentos acústicos. Reflete a realidade insular do povo crioulo e os seus sentimentos mais genuínos: a saudade; o amor; a morabeza; a chegada e a partida.Apesar das várias versões sobre a sua origem, acredita-se que a Morna terá nascido no século XIX da convergência entre os ritmos melancólicos trazidos pelos judeus do norte de África; da modinha brasileira; do lundum português e mais tarde (princípio do século XX) do fado.
"Tornou-se símbolo nacional, eternizado por vozes tão carismáticas como Bana; Ildo Lobo; Tito Paris; Mayra Andrade; Lura, Mário Lúcio.
"Mas seria Cesária Évora, o seu expoente máximo, a levar a Morna a todo o mundo. Cesária Évora, é, na verdade, um dos mais fortes argumentos do dossier de candidatura da morna a património mundial entregue à Unesco em março de 2018 e cujo desfecho será conhecido entre os dias 10 e 13 de dezembro.
"A confirmar-se o parecer positivo do Comité Científico da Unesco, a Morna será proclamada Património Imaterial da Humanidade." (Fonte: RTP, 5/12/2019).
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Notas do editor:
(**) Vd. poste de 9 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20328: Meu pai, meu velho, meu camarada (59): "Maria Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más... Uma morna imortal, numa homenagem à Morna, em vias de ser oficialmente consagrada como "património cultural imaterial da humanidade"