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Mansambo > CART 2339 > 1968 > Fotos Falantes II > Os dois primeiros mortos do Grupo de Combate do Alf Mil Torcato Mendonça: o Bessa (46) e o Casadinho (45)...
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Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem do Torcato Mendonça, com data de 20 de Junho último:
Luis Graça: vou ser rápido porque isto é o despejar de um impulso, de uma revolta sentida, de um
flash vindo, demasiado rápido, do passado ao presente. Talvez um Psi conseguisse dizer, melhor que eu, o porquê. Li a morte de um Camarada em Madina (1). Sei que não eram relatados os pormenores à família. Sei a frieza da comunicação da morte dada aos familiares. Mas… eu conto-te, Camarada, eu conto-te e anexo – para dares uma vista de olhos – um escrito, creio que já enviado, O Natal, onde relato OS MORTOS DO MEU GRUPO, OS MEUS MORTOS.
Paro em tentativa de calma, calma com respiração funda e passa um pouco. Depois do ataque, fui apanhar o Bessa, subi ao palanque danificado, olhei à volta certamente com ódio, com vontade de acertar contas... De repente vejo, à luz amarelada das lâmpadas, algo a baloiçar e brilhando. Fixo o objecto, vejo um bocado de fio e um crucifixo, aperto os dentes, como neste momento o volto a fazer, dou uma palmada naquilo e solto um palavrão em blasfémia sentida. Ajudam-me e embrulham-no e limpam-no com carinho, revolta e choro contido, no local. Os homens também choram, porra, mesmo por dentro, dói, dói!
Passados tempos, alguém do meu Grupo e talvez da terra dele, perguntou-me:
-A família recebeu as
coisas mas não o fio e o crucifixo.
Não me lembro mas creio que houve uma resposta a tentar suavizar a situação... Não faltava só o fio… parte DELE não foi também recebido… Dizia-se áà família? Creio que era duro demais, nós sentimos demasiado aquela morte. Meses depois, quando da Op Lança Afiada, veio de héli o Comandante do PAIGC Braimadicô (2). Levei-o para o meu abrigo… pois ouvi logo o nome do Camarada morto, repetido por uns e por outros.
Respeitei os meus Homens e levei-o para outro lado. Eles também não esqueceram e, certamente não sabem perdoar. Hoje, trinta e oito anos depois é difícil. O que seria naquela altura. Sabes, penso que não se podia ou era preferível, esconder certos pormenores às famílias. Só se provocava mais sofrimento. Devia era haver uma postura mais humana por parte das Forças Armadas. Análise posterior com calma.
Queria ser mais breve, alonguei-me. Senti a falta de partilhar isto, com o meu Grupo, agora… recordarmos, reflectirmos. Mas eles merecem descansar, recordar ou não. Falar nisto é doloroso ainda HOJE.
Amigo, um abraço,
Torcato Mendonça
2. Estórias de Mansambo (5) > Natal, Ano Novo, dias normais
por Torcato Mendonça (3)
Os militares da CART 2339 só passaram um Natal na Guiné. Partimos, no Ana Mafalda em meados de Janeiro/68 e regressámos em Dezembro/69 no Uíge. Portanto só o Natal de 68 lá foi passado.
Espero que a memória me não atraiçoe e eu tenha arte e engenho para vos descrever tão faustosas festas. Ou seja, as Festas do Natal e Passagem do Ano de 1968/1969. Os Salões engalanaram-se; os Mestres Cozinheiros esmeraram-se e, digo mesmo, em salutar competição guardaram em segredo os menus; as Fardas de Gala foram engomadas…
E..., bom!... Não fantasiemos, pois a realidade era outra. Estávamos em Mansambo, na guerra estúpida e dura, não pertencíamos a grupo de privilégio, fantasia ou outro. Passámos por isso, o Natal e Ano Novo como muitos milhares de militares. Uns melhor outros pior por questões de afectos perdidos, por sentirem mais ou menos a falta das mulheres e filhos, das famílias e de quem gostavam.
Pessoalmente lastimo mas de pouco me lembro. Já estava acima da normalidade, chamemos-lhe assim, para sentir menos o Natal e mais a segurança. Tenho, nestes dias, pensado nisso e infelizmente deve ter sido assim. Socorro-me do Historial, de duas pequenas agendas e tento recordar.
É com esses auxiliares que vou relatar, o mais fielmente possível, aqueles dias.
Não posso dissociar o Natal do Ano Novo. Eram datas festivas, tempos com maior probabilidade de ataques do inimigo, necessidade de nos sentirmos mais ocupados. O ócio fazia-nos
voar para outras paragens.
Havia, como é natural, uma maior quebra anímica. Por isso, todo esse período de tempo deveria ser ocupado com diversas tarefas. Seriam, contudo, preservados, o mais possível, os dias festivos.
Assim:
A
23 e 24 de Dezembro de 1968 houve uma Operação/patrulhamento à zona de Biro e Galoiel. Leve troca de tiros com o IN. Fuga deste, missão cumprida e regresso a Mansambo.
Véspera de Natal: os pensamentos longe, cada vez mais longe daquele lugar. Homens a pensarem nas mulheres e filhos, nas namoradas, nos pais e noutros familiares, nos amigos, no frio, nas lareiras e nas luzes a enfeitarem, ruas e presépios, na Pátria distante. Outros, muito poucos, mantinham-se atentos num desligar, mais aparente que real, virando a atenção, o cuidado para o inimigo em hipotética espreita, para lá do arame farpado.
A maioria era do Norte. A religiosidade da data era, talvez, mais sentida por eles. Mas o Natal é festa de família, penso eu. Hoje sinto-o mais assim. Parece que jantei com o meu Grupo, o tradicional bacalhau. Creio mesmo que o Capitão deu uma volta pelos vários abrigos.
Em Mansambo vivíamos em abrigos. Houve certamente o convívio possível. Não me recordo bem. O dia de Natal foi diferente certamente, com pensamentos a irem para junto dos que, lá ao longe, o faziam em sentido contrário. Talvez se tenham encontrado e abraçado a meia distância, em viagens imaginárias, com os deuses a apadrinharem. Talvez!
Entre os dias 28 e 30 de Dezembro houve coluna-auto ao Xitole. Mas o itinerário foi Bambadinca, Galomaro, Quirafo (?), Saltinho e Xitole. Uma coluna formada por bastantes viaturas civis e militares. A Intendência era responsável pela carga. Nós, um Grupo reforçado por picadores e alguns Milícias, éramos os responsáveis pela segurança e bom andamento, daquele enorme
comboio com vários tipos de viaturas.
Impusémos regras rígidas. Levámos dois ou três mecânicos o que se veio a revelar de grande utilidade. Um dia de viagem para lá, outro para cá. Merecia ser relatada esta viagem. As avarias, o pó e toda uma loucura quase indescritível. Fizemos, duas ou três centenas de quilómetros (ida e volta) devido à estrada –
Mansambo/Xitole – cerca de vinte quilómetros, estar ainda
fechada [ou interdita].
O fim do ano aproximava-se e o
dia 31 aí estava. O meu Grupo, depois do regresso do Xitole, preparava uma saída para
Candamã no primeiro dia de Janeiro.
Talvez, na noite de passagem de ano, se tenha
batido a zona com os [obuses] 10,5 e os [morteiros] 81 e bebido mais um copo. Mantínhamo-nos contudo bem atentos. Lá fora, poderia estar alguém pronto a estragar qualquer princípio de festa.
De repente um tiro e gritos. O Pimenta, do meu Grupo, ferira-se com a sua própria arma. Felizmente um tiro de raspão na zona abdominal. Era um faz tudo, por isso e pelo cansaço, estava encarregado dos geradores Lister que forneciam a electricidade ao aquartelamento. No dia seguinte foi evacuado para Bissau e, mais tarde, para a Metrópole. Ainda o visitei no Hospital em Bissau, dias depois, antes da minha ida para férias.
Começava o ano com um ferido, mesmo por acidente, no meu Grupo. Não gostei dos
sinais. Depois da evacuação partimos para Candamã. Missão: reconstruir
o pontão da Chanca na picada para Dulo Gengele. Nós fazíamos, a segurança e a ajuda, se necessária, a uma secção de engenharia de Nova Lamego, comandada pelo Furriel Zamite.
O trabalho teria que ser feito com rapidez. Questão de eficácia e principalmente segurança. Moto-serras a trabalhar no mato… não era saudável. Com a ajuda de todos, população incluída, e o saber do pessoal da engenharia, no final do dia 2 de Janeiro estava a missão cumprida.
Começamos a aprontar o material para a saída na madrugada seguinte. Um descuido, azar ou outro motivo qualquer, fez com que o Casadinho sofresse uma queimadura ligeira numa perna.
Faço aqui um parêntese para contar breve história deste militar [, o
Casadinho]:
Era o
Bazuqueiro do grupo. Alentejano de S. Matias, aldeola quase encostada a Beja. Cerca de dois ou três meses, após a chegada à Guiné, soube do nascimento da filha. Os meses passaram, o desgaste era grande e, como era necessário um militar da Companhia ir para Bissau – serviços de apoio logístico – foi indicado o Casadinho. Pouco tempo lá esteve. No dia 3 de Outubro, a dois meses do embarque, faleceu vítima de um desastre de viação na estrada para Bissalanca. Depois de quase dois anos de mato, muitas horas debaixo de fogo, morre, estupidamente, num acidente. Repousa no cemitério da sua terra natal. Nunca conheceu a filha.
Quando lá passo, no IP2, o carro, todos os carros que, ao longo destes anos tenho tido, abrandam sempre, aceleram e travam um pouco, num engasgar de soluço, de modo a que eu me possa voltar na direcção dele e o cumprimente. Nunca tive coragem de procurar a viúva ou a filha. Um dia…
Voltando á Guiné, a Mansambo, aos
primeiros dias de Janeiro de 1969:
No
dia 3, abandonámos Candamã e regressãmos à nossa Base. Havia correio fresco á nossa espera e a natural alegria. Nesse dia, após o jantar, fui ao meu abrigo. Na
sala, à volta da mesa, a malta lia o correio, escrevia ou passava o tempo de outra forma. O Bessa partilhava uma garrafa de bagaço acabada de receber. Ofereceu-me um copo. Agradeci e entrei no abrigo. Ele foi para o palanque do posto de sentinela. Segundos depois um rebentamento. Aí estava mais um ataque ao aquartelamento. O estrondo inicial foi de uma roquetada que acertou no Bessa.
Durou talvez meia hora o tiroteio. Só que o meu Gr Comb sofreu o primeiro morto e o 1º Grupo um ferido grave. Terminado o ataque fui apanhar o
Bessa. Embrulhei-o num lençol e não relato os pormenores. Ainda hoje os tenho bem vivos na memória. Ainda hoje aperto os dentes. Nunca esquecerei aquela morte, qualquer morte de um camarada. Por má formação, além de não esquecer, nunca perdoarei.
Ao terceiro dia, do novo ano – 1969 – o meu Grupo sofreu um morto e dois feridos, embora um muito ligeiro. No dia seguinte fizemos uma coluna para Bambadinca. Acompanhei o fechar da urna com o Soldado Bessa lá dentro. Já não regressei a Mansambo. Afoguei a raiva bebendo e dando uma volta à tabanca á procura de um amigo…
Devo ter tido um acordar difícil no dia seguinte. Não sei bem. Lembro-me que o [sargento piloto aviador] Honório me deu boleia, na sua avioneta, até Bissau com passagem por Bigene, onde consegui dar um abraço a um conterrâneo.
Dias depois, embarcava para a Metrópole para gozar o meu segundo período de férias.
Resumo:
O Natal e Ano Novo foram dias muito normais;
Operação na véspera de Natal;
Coluna ao Xitole, por Galomaro;
Na noite de passagem de Ano feri
do o Pimenta;
No dia de Ano Novo ida para Candamã, fazer segurança á reconstrução de um pontão;
Findo o trabalho, dia 2, o Casadinho ligeiramente queimado numa perna;
Regresso a Mansambo, ataque ao aquartelamento e morte do Bessa;
Dia 4, em Bambadinca, fechada a urna do Bessa;
Dia 5, com passagem por Bigene, vinda para Bissau;
Dia 8 embarquei de férias para a Metrópole. Cortei as barbas a contragosto, do Capitão Vaz, da 1746, meu companheiro de viagem. A PIDE/DGS falava mais alto…
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 20 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1862: 42 anos depois, com emoção e revolta, sei das circunstâncias horríveis em que morreu o meu irmão... (Adelaide Gramunha Marques)
(2) Vd. post de 5 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1152: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Braimadicô, o prisioneiro que veio do céu
(3) Vd. 14 de Março de 2007>
Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães
16 de Abril de 2007 >
Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa
25 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?