Fonte: Excertos de Alberto Branquinho - Cambança final: Guiné, guerra colonial: contos. Lisboa,Vírgula, 2013, 224 pp.
Sinopse:
«Cambança Final» foi, para muitos que fizeram a guerra na Guiné, a passagem desta margem de vida para a outra: essa que é definitiva.
«Cambança Final» foi, para a maioria, o regresso, dois anos depois, ao outro lado de onde tinham partido. Regressavam endurecidos, feitos homens em movimento sofrido e acelerado. (Entrementes, muitos iam regressando, mutilados no corpo ou na alma.)
Este livro é composto de pequenas histórias que abordam não só aspectos dramáticos da guerra, mas também situações pícaras ou bizarras e encontros/desencontros de culturas que foram obrigadas a conviver no mesmo espaço geográfico em tempo de guerra.
(Fonte: Sítio do Livro)
Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".
1. Reli, recordei, e voltei a achar um piadão a mais este microconto do Branquinho: é uma das joia de humor de caserna do seu livro "Cambança final", de que eu selecionei uns tantos em mais de 6 dezenas.
Merece ser destacado, nesta série, até por que me fez lembrar a figura popular da minha terra e da minha infância, que era um cauteleiro,que vinha de um concelho vizinho (talvez Bombarral) e a quem toda a gente chamava... o "biró-lista" (à moda do Porto!): "Oh, biró-lista, anda cá, p'ra ver se foi desta que eu largo a porca miséria do ofício", dizia-lhe o meu velhote, que todas as semanas comprava uma cautela... ("Só calha a quem joga!", justificava-se ele; claro que nunca teve a "sorte grande" em vida)...
Último poste da série > 9 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25924: Humor de caserna (73). "Trombas do Lopes" (Jorge Cabral, 1944-2021)
Não sei se o "biró-lista" do meu tempo chegou a fazer algum "milionário excêntrico". Na maior parte das vezes, calhava apenas a terminação aos mais afortunados. Mas este "biró-lista" da tropa do Branquinho é um humaníssimo retrato do nossos "soldados básicos", alguns de facto sofrendo de "deficiência intelectual... Mas, "em tempo de guerra, não se limpa(va)m armas" e o exército tinha que aproveitar "todo o peixe que vinha à rede".
É um microconto escrito com muita ternura e compaixão humana, sempre com aquele humor fino, não desbragado, do Branquinho que, além de um duro e bravo combatente da CART 1689, não alienou a sua condição de "primus inter pares". Além do mais, é uma prosa castiça: quem é que se iria lembrar de expressões como esta, uma "taleiga cheia de notas, amarrada à cintura" ?! ("Taleiga", do árabe árabe ta'līqa, "saco").
− Ó Ver-a-lista!
O homem aproximava-se, exibindo a lista da última extracção e, também, o jogo que tinha para vender.
Apresentou-se na Companhia, ainda em formação e antes do embarque, um rapaz cuja cara parecia uma caricatura. Olhos esbugalhados e assustados, nariz estreito, anguloso e projectado para a frente, quase ausência de malares, queixo pontiagudo e com a bochecha direita perfurada por uma fístula. Verificou-se mais tarde que era provocada pela infecção de um dente, que foi tratada. Parecia ter sido arrancado de um quadro de Hieronymus Bosch.
Pois este rapaz, depois da observação sagaz e agressiva, que era habitual no meio militar, passou a ser chamado de “Ver-a-lista”.
Assustado, olhando em volta, chegou-se à porta do espaço onde funcionava a secretaria, parou e grunhiu qualquer coisa. O sargento, que não era propriamente uma pessoa suave e de trato fácil, berrou-lhe:
− Que é que queres, ó rapaz?
Ele estendeu a mão, mostrando os papéis de apresentação. O sargento agarrou neles, olhou-o atentamente e fez-lhe algumas perguntas. Pela postura e pelo aspeto, constatou que devia ter um atraso mental.
− Qual é a tua especialidade?
− Atirador… de… de… morteiro.
− Meu capitão, dá licença?
Entrou. Pouco depois chamou o rapaz, que entrou no gabinete do capitão.
− Então não cumprimentas o nosso capitão?
Ele tropeçou bota contra bota, desequilibrou-se. O sargento amparou-o. O rapaz estendeu a mão para cumprimentar o capitão e o sargento berrou-lhe:
− Cumprimento militar!
− Deixe lá, nosso sargento. Então, ouve lá, rapaz. Disseste ao nosso sargento que és atirador de morteiro. É verdade?
O rapaz olhou o sargento com olhos assustados, olhou o capitão, olhou para as botas e, passado algum tempo, voltou a olhar o capitão e respondeu:
− Então como é que fazes fogo com o morteiro?
Ele levantou ambas as mãos à altura do ombro direito, como quem segura uma arma e respondeu:
− Tá… ta…rá…tá…tá. PUM!!!
− Está bem. Podes ir embora.
Saiu.
− Nosso sargento, vamos aproveitar o rapaz nos trabalhos de limpezas e outros afins.
(Nesses tempos aconteciam situações semelhantes. Havia que aproveitar todos os homens e, em caso de menos cuidado: “Apurado para todo o serviço militar”).
Depois de passar a curiosidade e, até, espanto pela presença daquele militar bizarro (até a marchar era diferente, pois, para além de não conseguir acertar o passo, marchava como se estivesse a pisar uvas), passou a ser protegido, pelo menos por alguns.
Ao receber o pagamento do pré, olhava espantado o sargento que lhe entregava o dinheiro – então, tinha cama, mesa e… (roupa lavada não, porque era ele que a “lavava”) e ainda lhe pagavam?
− Então, Ver-a-lista, disseram-me que fazes fogo de rajada com o morteiro?
Na Guiné, com o decorrer do tempo e com o crescer da agressividade entre os homens, criou um instinto de defesa, principalmente com os que não eram da Companhia.
− Ó Ver-a-lista tu sabes escrever?
− Xei calquer coijita.
− Tu não recebes correio. Não escreves à família?
− Eles xabem munto bem ond’é q’eu estou.
Durante o primeiro ataque ao quartel, alguém lhe berrou:
− Corre pr’ó abrigo, Ver-a-lista!!!
Humor de caserna > Biró-lista, atirador de... morteiro
por Alberto Branquinho
No Porto, chamavam “Ver-a-lista” aos homens e rapazes, habitualmente aleijados ou diminuídos mentais, que andavam pelas ruas vendendo lotaria. Por exemplo, alguém que estivesse sentado numa esplanada, ao avistar um vendedor de jogo, chamava:
O homem aproximava-se, exibindo a lista da última extracção e, também, o jogo que tinha para vender.
Apresentou-se na Companhia, ainda em formação e antes do embarque, um rapaz cuja cara parecia uma caricatura. Olhos esbugalhados e assustados, nariz estreito, anguloso e projectado para a frente, quase ausência de malares, queixo pontiagudo e com a bochecha direita perfurada por uma fístula. Verificou-se mais tarde que era provocada pela infecção de um dente, que foi tratada. Parecia ter sido arrancado de um quadro de Hieronymus Bosch.
Pois este rapaz, depois da observação sagaz e agressiva, que era habitual no meio militar, passou a ser chamado de “Ver-a-lista”.
Assustado, olhando em volta, chegou-se à porta do espaço onde funcionava a secretaria, parou e grunhiu qualquer coisa. O sargento, que não era propriamente uma pessoa suave e de trato fácil, berrou-lhe:
− Que é que queres, ó rapaz?
Ele estendeu a mão, mostrando os papéis de apresentação. O sargento agarrou neles, olhou-o atentamente e fez-lhe algumas perguntas. Pela postura e pelo aspeto, constatou que devia ter um atraso mental.
− Qual é a tua especialidade?
− Atirador… de… de… morteiro.
− Espera aí.
O sargento bateu na porta ao lado.
O sargento bateu na porta ao lado.
− Meu capitão, dá licença?
Entrou. Pouco depois chamou o rapaz, que entrou no gabinete do capitão.
− Então não cumprimentas o nosso capitão?
Ele tropeçou bota contra bota, desequilibrou-se. O sargento amparou-o. O rapaz estendeu a mão para cumprimentar o capitão e o sargento berrou-lhe:
− Cumprimento militar!
− Deixe lá, nosso sargento. Então, ouve lá, rapaz. Disseste ao nosso sargento que és atirador de morteiro. É verdade?
O rapaz olhou o sargento com olhos assustados, olhou o capitão, olhou para as botas e, passado algum tempo, voltou a olhar o capitão e respondeu:
− Então como é que fazes fogo com o morteiro?
Ele levantou ambas as mãos à altura do ombro direito, como quem segura uma arma e respondeu:
− Tá… ta…rá…tá…tá. PUM!!!
− Está bem. Podes ir embora.
Saiu.
− Nosso sargento, vamos aproveitar o rapaz nos trabalhos de limpezas e outros afins.
(Nesses tempos aconteciam situações semelhantes. Havia que aproveitar todos os homens e, em caso de menos cuidado: “Apurado para todo o serviço militar”).
Depois de passar a curiosidade e, até, espanto pela presença daquele militar bizarro (até a marchar era diferente, pois, para além de não conseguir acertar o passo, marchava como se estivesse a pisar uvas), passou a ser protegido, pelo menos por alguns.
Ao receber o pagamento do pré, olhava espantado o sargento que lhe entregava o dinheiro – então, tinha cama, mesa e… (roupa lavada não, porque era ele que a “lavava”) e ainda lhe pagavam?
− Então, Ver-a-lista, disseram-me que fazes fogo de rajada com o morteiro?
− Xim, xenhora!
Na Guiné, com o decorrer do tempo e com o crescer da agressividade entre os homens, criou um instinto de defesa, principalmente com os que não eram da Companhia.
− Ó Ver-a-lista tu sabes escrever?
− Xei calquer coijita.
− Tu não recebes correio. Não escreves à família?
− Nã, xenhora.
− Queres que eu escreva ou que te ajude?
− Eles xabem munto bem ond’é q’eu estou.
Durante o primeiro ataque ao quartel, alguém lhe berrou:
− Corre pr’ó abrigo, Ver-a-lista!!!
− O quê?!
− Os gajos estão a atacar!
− E ós’póis? O qu’é qu’eu fiz de mal p’ra ter que fugir?
Teve que ser empurrado para dentro.
No final da comissão voltou para a aldeia, em Trás-os-Montes. Também ele estava ainda mais duro, como todos os outros, mas não estava marcado pela guerra. Terá, alguma vez, entendido a realidade dentro da qual viveu durante cerca de dois anos? Estava mais esperto e mais risonho, não só por voltar a casa, mas também devido à taleiga cheia de notas, amarrada à cintura.
Teve que ser empurrado para dentro.
No final da comissão voltou para a aldeia, em Trás-os-Montes. Também ele estava ainda mais duro, como todos os outros, mas não estava marcado pela guerra. Terá, alguma vez, entendido a realidade dentro da qual viveu durante cerca de dois anos? Estava mais esperto e mais risonho, não só por voltar a casa, mas também devido à taleiga cheia de notas, amarrada à cintura.
Fonte: Excertos de Alberto Branquinho - "Fogo de rajada com... morteiro". In: Cambança final: Guiné, guerra colonial: contos. Lisboa,Vírgula, 2013, pp- 105-107 pp.
(Título, revisão / fixação de texto, itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e à editora...)
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Nota do editor: