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quinta-feira, 4 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19647: A galeria dos meus heróis (26): Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (Luís Graça)




Luís Graça, Guiné, Região de Bafatá, Centro de Instrução Militar de Contuboel, junho de 1969,
CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)




A galeria dos meus heróis: Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (*)



por Luís Graça (**)



1. Nascido no ano zero, 1945... Lembro-me de tu, Luís, teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... Lembras-te do SNI,o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?

Lembras-te, dessa história, em 1965 ?!... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado mulherengo!),enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida,  na Sorbonne!...

Estava quase a completar os meus vinte anos, com a tropa à perna, sem o saber. E tu ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo.


Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, menos do que eu...E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos" de Lisboa, expulsaram-te de casa e, a mim, cortaram-me a "mesada"... Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande. A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!

Eu era mais corajoso do que tu. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:
– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:
E os dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?


2. Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, diziam os parisienses, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho, incluindo na nossa terra, o recomeço da história da humanidade... Blá-blá, blá-blá... 

Mas ainda não foi dessa que o Salazar caiu da cadeira...

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, claro!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça...

Uma exposição no SNI em 1965!... Que privilégio!... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, no Palácio Foz, nos Restauradores ?!...Criado pelo António Ferro,  tu até tinhas relutância em lá entrar,,,

Não havia artista que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expôr no SNI!... Um casapiano, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela... Sempre adorei o preto e o vermelho.

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3ºano das Belas Artes, e tinha um "padrinho", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no SNI, ali nos Restauradores…

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento!... Sim, ao nível da gravura, acho que podia ter ido mais longe!...

Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as serigrafias, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo que fosse obra de arte, naquela ... A começar pelos amigos do meu "padrinho" de Lisboa... 

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!...


3. Na minha cédula pessoal, um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que nasci, filho de mãe solteira e de pai incógnito ( um estigma que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois o primeiro filho da terra a estudar na Universidade. Casou-se no Porto, teve um primeiro filho em 1947, o Gustavo.  E no Porto arranjou um tacho como advogado de uma conhecida empresa. 

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos fretes que ia fazendo, a este ou aquele.

O regedor era o meu... padrinho de batismo! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... Nas aldeias, toda gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida da gente. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós, mal vistos na aldeia.

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem, como muito poucas que conheci na vida: recusou casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o conselho do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos, com quem, de resto, pouco convivi. E de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo.


4. Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo que vigoravam na aldeia. A minha aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas fulas por eu onde passaria, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia. Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu querido mês de agosto, bem podíamos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer. Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo, a pobre, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

5. Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. Mais tarde, Ultramar. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto...Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce. Estás-me a imaginar de sotaina branca e longas barbas pretas, não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias e depois para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1965, que três anos depois estaria a desembarcar em Bissau!


6. No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores e usurpadores. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955. Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia. Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo até aos dez anos de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente.

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.


7. O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia. Negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa. Antes disso, ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio de Moncorvo, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", por ter andado na guerra. 


Tinha fama de ser violento e andava sempre armado, o meu padrinho. Percorria os concelhos à volta da serra, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. Não havia luz elétrica, nem sequer a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... 

Ia lá a casa o povoléu para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, o major de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa do major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava o poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama").

Ele, o meu padrinho, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "aprender um ofício"...

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa...Ao fim de semana, saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, em Benfica. Depois de fazer o 5º ano, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal,o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em 1968, depois de eu ter chumbado em Belas Artes, por ser cábula. Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, sequer o tradicional folar da Páscoa. E muito menos lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha ( a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.


8. Quando voltei da Guiné, em 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai, advogado no Porto (e meu presumível irmão, mais velho). Numas férias de verão, em meados dos anos 60, ficou em Londres a lavar pratos. Em setembro desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos,  era dois anos mais novo do que eu. Foi dado como refratário.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano,  beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 


Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, até filho de general era mobilizado. Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Schulz e o Spínola, mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa. O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família). 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.
– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…
– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 
– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus, e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone", um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que pouco mudara com as mudanças de regime.


9. Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o meu SPM, já no final da minha comissão. Éramos amigos (e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de impugnação da paternidade!). 

Ou melhor, éramos mais conterrâneos do que amigos , tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, quando garotos, nas férias de verão. Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. Nessa altura, brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados, e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia éramos a "canalha".

Agora, em Estocolmo, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)


10. As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas, desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas, quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Pirada até Piche, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer merda de político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!

Achei que o mundo não era justo. Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros,em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar.

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia e depois do bairro de Benfica… Uma deceção!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para tropa...


11. Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição,
a autopiedade, a autocompaixão...Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições pequeno-burguesas, agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu ainda conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1965, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira. 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, em 1970, a dizer que ia para a Venezuela, para casar. Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto percebi, era um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, por sinal do Funchal e conhecido da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 
Porque  havia mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (e depois de Nova Lamego). Em vão. As ligações com a Madeira não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar... por um padeiro venezuelano rico!


12. Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de confidências...

Acabei, já em Lisboa, bancário, por casar com uma galega de Orense, que nunca chegarás a conhecer, por que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe.

Depois, meu amigo, veio o rol de desgraças que me aconteceram. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou quase um ano para o Hospital Militar da Estrela. Enfim, poupo-te os pormenores, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz no peito). Até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a Bambadinca, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas noites, à espera do "barco turra", para Bissau.


13. É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro, entre 1969 e 1970, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado alguma vez, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim das viagens, por terra, mar e ar: só para saberes, já visitei mais de cem países dos cinco continentes... E ainda me faltam outros tantos...Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!"Carpe diem", é o meu lema.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. Aceitei vir-me embora, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto.

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1965, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha nos Restauradores. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.


Até sempre, amigo e camarada!


Teu F...

o Renoir de Montemuro.


PS1 - Parabéns pelo teu blogue de que fui apenas um fortuito visitante. Mas não me peças para lá voltar.

E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste (e bem, por ser um homem irascível e autoritário), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, cometeu suicídio... 

 Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um bom homem... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, e me ter dado uma "família normal", entre os 10 e os 20 anos... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência...Era professora de liceu...


PS2 – Nunca mais voltei aos Restauradores para beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensãozeca de DFA, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens.


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Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) um filho, casado, arquiteto, a viver nos arredores de Paris. Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo...Ou a descobrir novos mundos...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico.  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite para lhe escrever o catálogo, um ano e tal depois.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora) para este blogue que tu não segues, porque és daqueles que pôs (ou gostava de pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta ao meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande.

Respeito a tua decisão, esperando que não seja definitiva... Por isso também não te identifiquei... Mas, como eu costumo dizer,  a nossa Tabanca Grande não tem portas, nem cavalos de frisa, nem arame farpado... Podes entrar em qualquer hora do dia ou da noite...

Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-nos uma visita... Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude.

Como a vida é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, em agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, vai apenas um tiro de obus 14...

Um abraço fraterno... Luís Graça