1. Com a devida vénia e agradecimentos ao semanário O Diabo (fundado em em 10 de Fdevereiro de 1976) publicamos hoje, para quem ainda não conhece, mais um interessante depoimento para a catarse da história da guerra na Guiné, datado de 16 de Junho de 1992. É uma entrevista ao lendário Comandante Fuzileiro Especial Alberto Rebordão de Brito (entretanto já falecido), que de alguma forma reforça as ideias e matérias reproduzidas nos poste P8644 e P8650.
A postagem, em formato Word, contou mais uma vez com a preciosa e amigável colaboração do nosso Camarada Manuel Marinho (1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), pelo que se registam igualmente os nossos melhores e devidos agradecimentos. (MR)
Comandante na reserva, Rebordão de Brito, em entrevista.
“ O PAIGC DIFICILMENTE AGUENTARIA MAIS UM ANO DE LUTA”
Chama-se Rebordão de Brito e é comandante na reserva. Nasceu em Cabo Verde, de onde saiu com apenas 4 meses de idade. Decidiu ser militar ao serviço dos Fuzileiros Especiais nº 12, que foram colocados na Guiné. Aí participou na conhecida operação Mar Verde e chefiou campanhas em cenário de guerra. No dia 25 de Abril estava de férias em Londres, regressando 4 dias depois da revolução. De Lisboa embarcou para a Guiné para que as tropas africanas portuguesas não caíssem na mão do inimigo. Com a chegada ao poder de Vasco Gonçalves decide abandonar o País. Parte para o exílio, no dia 11 de Março de 1975, porque a Pátria que serviu não é a mesma. Hoje tem uma vida igual à de tantos militares que, como ele, combateram nas províncias ultramarinas embora não se sinta refugiado no seu próprio país, não quer ser fotografado, nem pel’O DIABO
O Diabo – Em que ano foi colocado em África?
Comandante Rebordão de Brito – Não fui colocado em África fui voluntário, para prestar serviço no Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 12 que partia em comissão de serviço para a província ultramarina da Guiné. Estranhará por certo esta diferença de terminologia, mas, o facto é que, tendo nascido em Cabo Verde, sempre me senti português de alma e corpo inteiro e nunca um colonizado.
O Diabo – Quais eram os objectivos da operação “ Mar Verde”?
R B – O principal objectivo era resgatar os portugueses que se encontravam prisioneiros em Conacri. Simultaneamente dado conhecermos a enorme oposição a Sekou Touré, seria facilitar a ascensão ao poder de um governo não hostil a Portugal que interditasse ao PAIGC a utilização de santuários no território da Guiné-Conacri. A dar-se tal situação é fácil de prever que o esvaziamento daquele partido era uma mera questão de tempo.
O Diabo – Essa operação destinava-se também a resgatar Amílcar Cabral?
R B – Como atrás disse, o principal objectivo não era esse. No entanto, se Amílcar Cabral se quisesse acolher à nossa protecção seria certamente
bem-vindo, e quem sabe, talvez ainda hoje fosse vivo.
O Diabo – Consta-se que um dos objectivos seria apanhar uma série de aviões “MIG” que estariam estacionados numa base da Guiné – Conacri. Tem algum fundamento?
R B – Não era básico. Essa intenção fazia parte da neutralização das forças da Guiné-Conacri, o que permitiria andar por lá praticamente à vontade. O que interessava era trazer os prisioneiros, e como havia connosco uma série de dissidentes do regime da Guiné-Conacri, a ideia era dar cobertura à instalação de um poder que nos fosse favorável, e com isso, claro, desmantelar o PAIGC.
O Diabo – Quem foram os principais intervenientes nessa operação?
R B – Bom, essa pergunta é de difícil resposta. Temo, por um lado esquecer-me de alguns que, convicta e orgulhosamente, nela participaram e, por outro, relembrar quem, convenientemente hoje, por ela não quer ser recordado. Ainda assim, e porque é homem que não renega o seu passado, não posso deixar de referir o inspector-adjunto Matos Rodrigues. Embora não tendo participado fisicamente na operação, ao seu entusiasmo, patriotismo e proficiência na recolha de informações, estabelecimento de contactos e apoios se deve uma boa parte da gestação da operação “ Mar Verde”.
O Diabo – Como descreveria a situação da guerra ultramarina à data do
25 de Abril 74?
R B – Julgo ser suficientemente conhecido o panorama em Angola e Moçambique para que a ele me refira agora. Quanto à Guiné, em que a situação era um pouco mais complicada (dada a pequenez do território e a grande extensão fronteiriça), creio, apesar desses condicionalismos, termos sido, vítimas de bem tramada intoxicação, de deficiente informação ou ainda de ambas. E digo isto porque em Junho 1974, quando da entrada dos primeiros elementos do PAIGC, estes se apresentavam, na sua maioria esfarrapados e com péssimo aspecto. Alias, ao conversar na povoação de Cacine com o então comandante da sua marinha (Pedro Gomes), este confessou-me que dificilmente o seu partido aguentaria mais um ano de luta. Esta confissão é sem dúvida corroborada pelo insistente pedido feito às nossas autoridades para que se procedesse ao imediato desarmamento das forças africanas.
O Diabo – É verdade que na Guiné o PAIGC levava uma grande vantagem sobre as tropas portuguesas?
R B – Nada mais falso. Se se disser que os guerrilheiros atacavam com alguma impunidade guarnições fixamente agarradas ao terreno, isso poderá, nalguns casos, corresponder à verdade. No entanto sempre que os encontros se davam com tropas especiais ou outras tropas comandadas, com determinação e vontade, o confronto era-lhes sempre e fatalmente, negativo.
O Diabo – É de opinião que de um modo geral a guerra em Angola e Moçambique estava ganha?
R B – Estava estacionária e em regressão.
O Diabo – Então só na Guiné é que ainda havia problemas?
R B – Na Guiné havia, mas depois vim a averiguar de que não era tão grave como isso. Após o 25 Abril vim a confirmar essa situação. Na altura não havia pilotos suficientes, nem meios aéreos, mas se tivéssemos forças de intervenção rápidas, em vez de fazermos uma guerra de quadrículas, nós tínhamos conseguido resolver a questão.
O Diabo – O que aconteceu na Guiné depois do 25 de Abril?
R B – Eu estava em Londres no dia 25 de Abril. Vim para Lisboa a 29 e segui para a Guiné onde as manobras de guerra tinham parado. Havia uma situação um tanto ou quanto confusa, e como as operações tinham parado havia que dar destino àquela gente que tínhamos enquadrado, africanos, que eram bastantes. Uma das minhas preocupações, um pouco antes da independência, foi andar entre Lisboa e Bissau a ver se conseguia integrar aquelas forças nas futuras Forças Armadas da Guiné e, no meu caso, criar uma marinha onde eles tivessem um lugar, nem que fosse para lhes salvar a vida. Não se conseguiu totalmente. Nas minhas unidades consegui-o mais ou menos, pagando-lhes até ao fim desse ano (1974).
Aconselhei-os a saírem da Guiné o mais depressa possível e dirigirem-se para o Senegal para não terem a sorte que na altura tiveram, muitos comandos africanos.
O Diabo – Que foram mortos?
R B – Sim, e muitos por culpa deles, porque se deixaram ficar na Guiné-Bissau.
O Diabo – Acompanhou sempre todas as operações militares na Guiné?
R B – Sim, de 1967 a 1974. Saio da Guiné antes da independência.
Recusei-me a assistir à independência.
O Diabo – Conhece alguns episódios ocorridos durante a guerra colonial que queira contar?
R B – Como deve calcular, ao longo do tempo que passei no ultramar, milhentos episódios se passaram. Como temos falado da “Mar Verde” vou-lhe contar um, de certo modo caricato, que durante ela se passou.
Quando o meu grupo de assalto largou do navio-mãe e partiu em direcção às embarcações inimigas houve um bote que se atrasou visivelmente. Voltei atrás e insultei o seu chefe, o pobre marinheiro Sani, (mais tarde assassinado pelos seus “irmãos libertadores”). Disse-lhe que se tinha medo podia voltar para bordo, pois não queria cobardes no grupo. Ele balbuciou umas palavras que na confusão não entendi e deixei-o, voltando à cabeça da formação. Concluída a missão dei ordem de reembarque e cada um voltou ao seu bote. Isto é, cada um julgou ter voltado, ao seu. Mandei-os seguir à minha frente a fim de verificar os resultados e confirmar se não haveria algum retardatário. Verificações feitas, acelerei a fundo e da carcaça do meu potente motor saiu um profundo gemido e um tossir que assustaria o mais calejado médico dos sanatórios do Caramulo. Enfim, grunhindo e arrastando-se, o miserável bote lá conseguiu chegar ao navio onde, no negrume da noite, qual fantasma, me esperava uma branquíssima dentadura que generosamente apenas me perguntou:
“ Então chefe, a quantas cervejas tenho direito?”
O Diabo – Concorda com a afirmação de que o general Spínola se terá deixado ultrapassar pelos acontecimentos aquando do 25 Abril?
R B – Não concordo de forma alguma. Acho, isso sim, que o general Spínola, raciocinando e agindo como homem e militar íntegro que era e é, foi enredado nas malhas que a traição e baixa política tecem. Convém não esquecer os vários “judas” (conscientes ou imbecis úteis), que na sua órbita gravitavam. O general Spínola queria manobrar e verificou que não tinha forças para isso, alguns não compareciam, outros saíram deliberadamente, outros faziam o jogo da esquerda sem saber bem porquê. São os tais a quem eu chamo os “imbecis úteis” e ele viu-se enredado numa confusão tremenda e só teve, a saída que teve em 30 de Setembro, que foi aquele discurso.
O Diabo – Como se processou a fuga do general Spínola para o Brasil?
R B – Antes de mais refuto liminarmente a tese da fuga. Como já foi amplamente divulgado, dadas as informações que circulavam, houve um grupo de civis e oficiais (entre os quais o general Spínola), que foram aconselhados a receber a protecção de uma das poucas unidades militares não completamente conspurcadas pelo desvario pseudo-revolucionário que então grassava em quase todo o País.
Em determinada altura, por estarmos sem qualquer comunicação com o exterior, acompanhei o general Spínola à unidade vizinha no intuito de sabermos o que se passava. Quando o nosso helicóptero regressou ao ponto de onde partira verificamos imediatamente uma enorme efervescência na guarnição e soubemos que alguns oficiais já tinham sido presos. Considerei que o melhor, de momento, seria embarcar a esposa do general Spínola e a aproveitar o helicóptero para sermos colocados fora da unidade e daí seguir para onde julgássemos ser mais conveniente. No entanto, dada a perseguição movida durante algum por dois aviões, considerou-se que o mais seguro seria rumarmos a Espanha. Não foi, nesta altura, considerada a hipótese de partir para o exílio no Brasil.
O Diabo – Portanto nesta altura ninguém pensava no exílio?
R B – Nessa altura apenas pensávamos em sair da base aérea e sermos colocados num sítio qualquer e dali arranjar um transporte que nos levasse aonde quiséssemos. Não havia nada a ideia de sair do País, mas dado as condições foi a melhor coisa a fazer. Assim considerámos a hipótese de ir para França, para não estarmos muito afastados de Portugal.
O Diabo – Era essa a única solução?
R B – Sem dúvida. Com a loucura colectiva comandando o País, o mais provável era ter havido fuzilamentos a coberto da defesa da Revolução.
O Diabo – Em sua opinião o que é que poderia ter alterado o rumo dos acontecimentos nos dias que se seguiram ao 25 de Abril?
R B – É-me muito difícil dar uma resposta razoável a essa pergunta, porque, nessa altura, me encontrava na Guiné tentando salvar a vida dos fuzileiros africanos que tive o privilégio de instruir e comandar.
O Diabo – O que pensa dos acordos do Alvor celebrados em 1975?
R B – Os acordos do Alvor? Poderá considerar-se acordo uma farsa montada pelos vassalos da ex-URSS com um fim único de servir o expansionismo desta e adiar o seu estertor? Creio bem que não.
O Diabo – Os acordos do Alvor, uma farsa?
R B – Não é mais do que isso. Estava tudo perfeitamente orquestrado para entregar aquilo às forças marxistas de Angola, e, aliás, com o desenrolar da situação verifica-se isso.
O Diabo – Como classifica neste momento a situação vigente na Guiné?
R B – É dramática. É um país, sem economia, sem indústrias, a agricultura está destruída. Não tem quadros; uma classe dirigente e completamente corrupta; todas as ajudas exteriores que recebem são desviadas. Não vejo grande saída para a Guiné: ou é absorvida por aqueles dois grandes espaços francófonos a norte ou a sul, ou (passo o termo) encosta-se a Portugal e é a única maneira de sobreviver como país independente.
O Diabo – Como natural de Cabo Verde como vê o futuro daquele arquipélago?
R B – O caso de Cabo Verde é um pouco diferente. Tem uma colónia de emigrantes muito grande, quer nos Estados Unidos quer na Holanda, e em Portugal, como é óbvio, mas as outras são muito mais potentes economicamente, e como tal, recebe imensas divisas. Neste momento está a dar alguns passos no turismo e tem condições para desenvolver a pesca, e, para além disso, tem quadros e uma população muito mais evoluída e culta que a Guiné. Embora também não tenha uma agricultura muito desenvolvida, porque em Cabo Verde só chove quando Deus quer, e muitas vezes Deus não quer.
O Diabo – Qual é a sua opinião relativamente ao diferendo existente entre o Governo e a Presidência por causa da lei dos coronéis?
R B – Eu não gostaria de ter opinião acerca disso, mas julgo que os únicos prejudicados no meio disso tudo são os militares que não foram tidos nem achados para alimentar essa fogueira e que estão nessa querela sem culpa nenhuma.
O Diabo – O que pensa do serviço militar obrigatório ter passado para 4 meses?
R B – Entre haver serviço militar obrigatório com 4 meses e não haver, acho que era preferível não haver. Fazer isso, sim, mas com umas Forças Armadas profissionais, bem treinadas e relativamente pequenas, porque serviço militar obrigatório de 4 meses não dá para coisíssima nenhuma.
O Diabo – À semelhança do que acontece nos EUA com os Fuzileiros?
R B – Porque não. Basta olhar para Inglaterra, são perfeitamente profissionais, quando são chamados estão sempre prontos, e sabem aquilo que fazem.
O Diabo – Os nossos Comandos não correspondem a essa necessidade?
R B – Os Comandos são um ramo das Forças Armadas, mas como sabe têm também serviço militar obrigatório. Apenas os quadros são profissionais.
O Diabo – Mantém contactos regulares com os militares que o acompanharam em campanhas no ultramar?
R B – Muitos dos meus colegas que serviram nos fuzileiros não estão ao serviço ainda. Tenho contactos permanentes, quase todas as semanas um deles me telefona e anualmente fazemos um almoço para comemorar a ida para a Guiné. Os outros, os africanos, que temos aos poucos conseguido trazer para cá, quer eu, quer o meu antigo imediato, estão todos empregados, e mais não temos feito porque não temos tido apoios.
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Notas de M.R.:
Vd. também os postes relacionados com esta matéria em:
9 de Agosto de 2011 >
Vd. último poste desta série em:
9 de Agosto de 2011 >