A bela mas estéril Miriam
Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados
[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
[Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVIII Parte > Cap IX - Guerra 2 (pp. 62-66)
por Mário Vicente
Sinopse:
(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),
(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;
(iii) é mobilizado para a Guiné;
(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;
(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;
(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;
(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;
(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):
(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;
(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;
(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;
(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;
(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVIII Parte > Cap IX - Guerra 2 (pp. 62-66)
por Mário Vicente
Sinopse:
(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),
(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;
(iii) é mobilizado para a Guiné;
(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;
(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;
(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;
(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;
(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):
(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;
(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;
(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;
(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;
(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;
(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele.
Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XIX Parte: Cap X: Miriam (pp. 61-66)
Cada Povo tem os seus rituais para exorcizar o medo da morte. Mas é a morte que está sempre presente na guerra.
Miriam, sendo fula, apresenta como é natural as características gerais desta etnia. Feições perfeitas cor de ébano, alimenta-se de arroz, fruta, carne, exceptuando porco, e abusa um pouco da cola. De origem nómada, convertida ao islamismo, tem regressões ao feiticismo e foi herdada pelo sargento de milícia Aqueba Baldé, homem já de uma certa idade, por morte de seu irmão, conforme a lei e tradição fula. Relativamente nova, sem definição de idade, andará pelos vinte, vinte e um anos. Seios pequenos mas levantados, apesar do uso do pano para os quebrar, é demonstrativo que ainda não teve filhos.
Caracterizando por alto, eis a lavadeira que o chefe dos Vagabundos conseguiu, tendo talvez aqui começado em parte também a alcunha daquele, para furriel Mamadu não desvalorizando também o gosto deste em saber usos e costumes, o seu convívio e relacionamento com o pessoal nativo. Era habitual ver o furriel falando e convivendo com os soldados da milícia.
Tantas vezes o cântaro vai à fonte até que… ou antes, tantas vezes a roupa foi lavada, que Vagabundo começou a estranhar o extremo esmero com que sua roupa era tratada sem reclamação ou exigências de melhor remuneração. A lavadeira um dia mais afoita e atrevida, atacou directamente Vagabundo:
– Furiel!... tu é Mamadu, home balente, bó na bai na mato e cá tem medo, Miriam gosta de furiel. Eu sabo tu é branco, a mim preto! Miriam quer fazer cumbersa giro com furiel Mamadu!
Vagabundo poderia esperar tudo menos isto! Grande morteirada! Havia normas e conceitos que, como graduado responsável, tinha de respeitar. Além do mais, Miriam, para todos os efeitos, era mulher do sargento da milícia e tudo traria problemas que teriam reflexos em toda a CCAÇ 763.
Sejamos claros! Não seria coisa que desgostasse ao furriel, porque apesar de ser negra, Miriam não era nada de desperdiçar, com a agravante da inexistência de formas dos militares, naquela situação no mato, resolverem carências de sexo em termos normais. E como se dizia: "ao fim de quinze dias na Guiné, as negras começam a ficar brancas”!
Vagabundo, a princípio, não ligou e mandou a lavadeira ter cabeça, criar juízo. Mas Miriam continuou insistindo. O furriel, para evitar problemas, foi falar com o sargento da milícia e informou-o que prescindia dos serviços da mulher e que ela não tinha juízo. Aqueba ouviu, olhou de uma forma resignada para Mamadu e disse:
- Furiel!... a mim sabe desse cumbersa todo! Miriam cá tem cabeça, Miriam fala a mim desse coisa todo! Mim recebe esse mulher de irmon meu. Eu, home belho, furiel, não pode dar a ela filho, ela quer filho de home branco e quer ser de furiel minino qué Mamadu! Qui na bai na mato, cá tem medo, home balente.
Nada de anormal no reino de Cufar. Esta parelha era vista muitas vezes de volta do copo de bambu, sempre com a desculpa do mosquito. O que é certo é que não constava que tivessem tido paludismo, talvez porque o remédio faria efeito.
Numa das ocasiões em que Miriam estava em Catió, o 2º Grupo de Combate foi fazer o abastecimento. Mamadu solicitou a Almeida para ficar um tempinho em Priame, só para um “converse”, pois o Chico Zé e o Tambinha não se importavam e desenrascavam a secção com o cabo Cigarra, enquanto ele não chegava.
-Está bem! Mas qualquer dia tens de me deixar dar uma volta na bicicleta! - gozou o alferes com o seu furriel.
-É pá, quando quiseres, não sou eu o dono!
Mal soube da passagem da coluna, Miriam correu, como de costume para ver quem vinha: ou era o dono da roupa e haveria festa, ou teria tristemente mandar por alguém. Mal reconheceu o grupo de combate, naquele dia desapareceu. O furriel Mamadu desceu da viatura e cumprimenta o pessoal conhecido e não, com o tradicional “Corpo di bó tá bom?” Contornou as primeiras moranças de Proame e dirigiu-se para a casa de Aqueba Baldé.
Entrou na casa e o cheiro de plantas perfumadas habitualmente queimadas quando da sua visita, encheu-lhe as narinas. Chamou por Miriam mas esta não respondeu, pelo que foi entrando. Quando estava ao centro da morança, apareceu-lhe Miriam completamente vestida, com vestimenta de ronco azul às ramagens, de saia e corpete tapando unicamente os seios. Pelo odor e luzir da pele como ébano polido notava-se que se tinha preparado com óleo de flores.
-Bó cá fala com furriel Miriam? - inquiriu Mamadu.
-Fala, sim, furiel Mamadu, mas dia de hoje tu na bai cum Miriam no Homem Grande a mim quer corpo di bó fechado!
O furriel viu o filme. Temos bruxaria de certeza, pensou. Mas, curioso como era, e delirando conhecer os usos e costumes desta misteriosa África , achou que seria o momento oportuno para enriquecer os seus conhecimentos e respondeu:
-Certo, vamos então estar com o Homem Grande!
Miriam pediu ao furriel para a seguir. Atravessaram a estrada Priame-Catió para o lado direito, passando por um campo de mancarra e contornando uma plantação de abacaxis, internaram-se num bananal até atingirem a orla da mata. Aí chegados, Miriam derivou para a esquerda e passados uns dez metros já dentro da mata, disse para Mamadu:
-Jube!
Mamadu, estupefacto, ficou petrificado. Os seus olhos nunca tinham visto algo assim. Que maravilhosa é a natureza! Indescritível!... Perante o olhar extasiado do furriel, uma das visões mais lindas até aí apreciadas. Entre um círculo de palmeiras e outras plantas arbustivas próprias do clima tropical, aparece um lago de água estagnada, um pântano. A sua superfície está coberta de um rendilhado de nenúfares gigantes, desde o alvo branco ao rosa forte misturados com outras plantas e flores aquático-tropicais. Que paisagem linda este pântano! Nas suas manifestações de actividade, a natureza revela tal imaginação que qualquer hipótese de relato não traduz na plenitude os seus surpreendentes efeitos.
Miriam acordou Vagabundo daquele sonho e continuou a conduzi-lo pelo estreito carreiro, agora transformado pela vegetação, em túnel, obrigando Mamadu a caminhar um pouco vergado. Preocupado o furriel, pegou no braço da lavadeira e informou-a de que se estariam a afastar demasiado da povoação, o que se tornava perigoso. Ela olhou para ele e disse:
-Tu cá tem medo, tu bai fica fechado p´ra bala!
-Merda para isto, fico fechado para a bala e aberto para o morteiro e RPG! Meto-me em cada uma!
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió 1967/69)> Álbum fotográfico de Vitor Condeço (1943-2010) > Catió - Vila > Foto 50 > "Lagoa com nenúfares à esquerda na estrada de Catió-Priame".
Foto (e legenda) : © Vítor Condeço (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
X Miriam
Cada Povo tem os seus rituais para exorcizar o medo da morte. Mas é a morte que está sempre presente na guerra.
Miriam, sendo fula, apresenta como é natural as características gerais desta etnia. Feições perfeitas cor de ébano, alimenta-se de arroz, fruta, carne, exceptuando porco, e abusa um pouco da cola. De origem nómada, convertida ao islamismo, tem regressões ao feiticismo e foi herdada pelo sargento de milícia Aqueba Baldé, homem já de uma certa idade, por morte de seu irmão, conforme a lei e tradição fula. Relativamente nova, sem definição de idade, andará pelos vinte, vinte e um anos. Seios pequenos mas levantados, apesar do uso do pano para os quebrar, é demonstrativo que ainda não teve filhos.
Caracterizando por alto, eis a lavadeira que o chefe dos Vagabundos conseguiu, tendo talvez aqui começado em parte também a alcunha daquele, para furriel Mamadu não desvalorizando também o gosto deste em saber usos e costumes, o seu convívio e relacionamento com o pessoal nativo. Era habitual ver o furriel falando e convivendo com os soldados da milícia.
Tantas vezes o cântaro vai à fonte até que… ou antes, tantas vezes a roupa foi lavada, que Vagabundo começou a estranhar o extremo esmero com que sua roupa era tratada sem reclamação ou exigências de melhor remuneração. A lavadeira um dia mais afoita e atrevida, atacou directamente Vagabundo:
– Furiel!... tu é Mamadu, home balente, bó na bai na mato e cá tem medo, Miriam gosta de furiel. Eu sabo tu é branco, a mim preto! Miriam quer fazer cumbersa giro com furiel Mamadu!
Vagabundo poderia esperar tudo menos isto! Grande morteirada! Havia normas e conceitos que, como graduado responsável, tinha de respeitar. Além do mais, Miriam, para todos os efeitos, era mulher do sargento da milícia e tudo traria problemas que teriam reflexos em toda a CCAÇ 763.
Sejamos claros! Não seria coisa que desgostasse ao furriel, porque apesar de ser negra, Miriam não era nada de desperdiçar, com a agravante da inexistência de formas dos militares, naquela situação no mato, resolverem carências de sexo em termos normais. E como se dizia: "ao fim de quinze dias na Guiné, as negras começam a ficar brancas”!
Vagabundo, a princípio, não ligou e mandou a lavadeira ter cabeça, criar juízo. Mas Miriam continuou insistindo. O furriel, para evitar problemas, foi falar com o sargento da milícia e informou-o que prescindia dos serviços da mulher e que ela não tinha juízo. Aqueba ouviu, olhou de uma forma resignada para Mamadu e disse:
- Furiel!... a mim sabe desse cumbersa todo! Miriam cá tem cabeça, Miriam fala a mim desse coisa todo! Mim recebe esse mulher de irmon meu. Eu, home belho, furiel, não pode dar a ela filho, ela quer filho de home branco e quer ser de furiel minino qué Mamadu! Qui na bai na mato, cá tem medo, home balente.
O furriel viu de imediato o filme todo!... Apesar de ter o conhecimento de, na etnia, a mulher conceder favores sexuais facilmente, em que grande complicação se meteria ainda por cima com aquela ideia louca do filho.
Mas o velho milícia insistiu:
-Cá tem porblema! Furiel cá fala desse cumbersa, a mim cá fala tabem! Si Aqueba firma na Catió, Miriam firma ali no Cufar; si Aqueba firma na Cufar, Miriam firma na Catió. Furiel Mamadu faz como tu sabe!
Sim senhora!... Desta simples forma se viu Vagabundo usufrutuário do corpo de Miriam.
Nessa tarde, ao passar pelas moranças onde estavam instaladas as duas secções de milícia, Vagabundo viu Miriam aproximar-se de Aqueba que, sentado, dedilhava um corá, instrumento rústico de cordas. Qualquer coisa segredou que o sargento da milícia começou cantando uma lenga lenga em linguagem fula misturada de crioulo onde as únicas palavras que o furriel entendeu foram:
-Jaramááááá… furiel Mamadu qui na bai na mato e cá tem medo, Jaramááááá!...
O chefe dos Vagabundos falou com o médico e Miriam foi vista pelo tenente obstetra, natural das terras do Mondego.
O tenente médico miliciano entrou na messe de sargentos e pediu ao Lopez um whisky, o qual mandou pôr na conta de Mamadu. Ao sair encontrou-se com este e disse-lhe:
- Já cobrei a consulta!
- Então!?
- Em perfeita saúde! Entre aspas é claro, tens mais sorte que o Diogo Alves! Há ali uma disfunção hormonal qualquer, pelo que ela não tem ovulação, sofre de amenorreia crónica!
- Palavra?
- Pela conversa que tive e para teu bem, e mal dela, coitada, pois ela disse-me o que queria! Aliás o que quereria! Dado não ser possível, convém não lhe falares nisso. É melhor a ignorância e ilusão por vezes, que uma grande vida. Deixa-a viver na esperança, que assim vive feliz. Não vale a pena criar problemas psíquicos que geralmente nestes casos resultam em grandes complicações. Entendido? Vamos beber mais um para afastar o mosquito?
- OK! Mas volto a pagar eu!- ripostou Vagabundo.
Mas o velho milícia insistiu:
-Cá tem porblema! Furiel cá fala desse cumbersa, a mim cá fala tabem! Si Aqueba firma na Catió, Miriam firma ali no Cufar; si Aqueba firma na Cufar, Miriam firma na Catió. Furiel Mamadu faz como tu sabe!
Sim senhora!... Desta simples forma se viu Vagabundo usufrutuário do corpo de Miriam.
Nessa tarde, ao passar pelas moranças onde estavam instaladas as duas secções de milícia, Vagabundo viu Miriam aproximar-se de Aqueba que, sentado, dedilhava um corá, instrumento rústico de cordas. Qualquer coisa segredou que o sargento da milícia começou cantando uma lenga lenga em linguagem fula misturada de crioulo onde as únicas palavras que o furriel entendeu foram:
-Jaramááááá… furiel Mamadu qui na bai na mato e cá tem medo, Jaramááááá!...
O chefe dos Vagabundos falou com o médico e Miriam foi vista pelo tenente obstetra, natural das terras do Mondego.
O tenente médico miliciano entrou na messe de sargentos e pediu ao Lopez um whisky, o qual mandou pôr na conta de Mamadu. Ao sair encontrou-se com este e disse-lhe:
- Já cobrei a consulta!
- Então!?
- Em perfeita saúde! Entre aspas é claro, tens mais sorte que o Diogo Alves! Há ali uma disfunção hormonal qualquer, pelo que ela não tem ovulação, sofre de amenorreia crónica!
- Palavra?
- Pela conversa que tive e para teu bem, e mal dela, coitada, pois ela disse-me o que queria! Aliás o que quereria! Dado não ser possível, convém não lhe falares nisso. É melhor a ignorância e ilusão por vezes, que uma grande vida. Deixa-a viver na esperança, que assim vive feliz. Não vale a pena criar problemas psíquicos que geralmente nestes casos resultam em grandes complicações. Entendido? Vamos beber mais um para afastar o mosquito?
- OK! Mas volto a pagar eu!- ripostou Vagabundo.
Nada de anormal no reino de Cufar. Esta parelha era vista muitas vezes de volta do copo de bambu, sempre com a desculpa do mosquito. O que é certo é que não constava que tivessem tido paludismo, talvez porque o remédio faria efeito.
Numa das ocasiões em que Miriam estava em Catió, o 2º Grupo de Combate foi fazer o abastecimento. Mamadu solicitou a Almeida para ficar um tempinho em Priame, só para um “converse”, pois o Chico Zé e o Tambinha não se importavam e desenrascavam a secção com o cabo Cigarra, enquanto ele não chegava.
-Está bem! Mas qualquer dia tens de me deixar dar uma volta na bicicleta! - gozou o alferes com o seu furriel.
-É pá, quando quiseres, não sou eu o dono!
Mal soube da passagem da coluna, Miriam correu, como de costume para ver quem vinha: ou era o dono da roupa e haveria festa, ou teria tristemente mandar por alguém. Mal reconheceu o grupo de combate, naquele dia desapareceu. O furriel Mamadu desceu da viatura e cumprimenta o pessoal conhecido e não, com o tradicional “Corpo di bó tá bom?” Contornou as primeiras moranças de Proame e dirigiu-se para a casa de Aqueba Baldé.
Entrou na casa e o cheiro de plantas perfumadas habitualmente queimadas quando da sua visita, encheu-lhe as narinas. Chamou por Miriam mas esta não respondeu, pelo que foi entrando. Quando estava ao centro da morança, apareceu-lhe Miriam completamente vestida, com vestimenta de ronco azul às ramagens, de saia e corpete tapando unicamente os seios. Pelo odor e luzir da pele como ébano polido notava-se que se tinha preparado com óleo de flores.
-Bó cá fala com furriel Miriam? - inquiriu Mamadu.
-Fala, sim, furiel Mamadu, mas dia de hoje tu na bai cum Miriam no Homem Grande a mim quer corpo di bó fechado!
O furriel viu o filme. Temos bruxaria de certeza, pensou. Mas, curioso como era, e delirando conhecer os usos e costumes desta misteriosa África , achou que seria o momento oportuno para enriquecer os seus conhecimentos e respondeu:
-Certo, vamos então estar com o Homem Grande!
Miriam pediu ao furriel para a seguir. Atravessaram a estrada Priame-Catió para o lado direito, passando por um campo de mancarra e contornando uma plantação de abacaxis, internaram-se num bananal até atingirem a orla da mata. Aí chegados, Miriam derivou para a esquerda e passados uns dez metros já dentro da mata, disse para Mamadu:
-Jube!
Mamadu, estupefacto, ficou petrificado. Os seus olhos nunca tinham visto algo assim. Que maravilhosa é a natureza! Indescritível!... Perante o olhar extasiado do furriel, uma das visões mais lindas até aí apreciadas. Entre um círculo de palmeiras e outras plantas arbustivas próprias do clima tropical, aparece um lago de água estagnada, um pântano. A sua superfície está coberta de um rendilhado de nenúfares gigantes, desde o alvo branco ao rosa forte misturados com outras plantas e flores aquático-tropicais. Que paisagem linda este pântano! Nas suas manifestações de actividade, a natureza revela tal imaginação que qualquer hipótese de relato não traduz na plenitude os seus surpreendentes efeitos.
Miriam acordou Vagabundo daquele sonho e continuou a conduzi-lo pelo estreito carreiro, agora transformado pela vegetação, em túnel, obrigando Mamadu a caminhar um pouco vergado. Preocupado o furriel, pegou no braço da lavadeira e informou-a de que se estariam a afastar demasiado da povoação, o que se tornava perigoso. Ela olhou para ele e disse:
-Tu cá tem medo, tu bai fica fechado p´ra bala!
-Merda para isto, fico fechado para a bala e aberto para o morteiro e RPG! Meto-me em cada uma!
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió 1967/69)> Álbum fotográfico de Vitor Condeço (1943-2010) > Catió - Vila > Foto 50 > "Lagoa com nenúfares à esquerda na estrada de Catió-Priame".
Foto (e legenda) : © Vítor Condeço (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
Andaram mais ou menos cinquenta metros, e numa curva do carreiro, apareceu inesperadamente uma pequena clareira, cercada de enormes poilões em cujo centro existia uma palhota onde fumegava uma pequena fogueira, com panelas de ferro de variado tamanho ao redor.
Batendo as palmas, a lavadeira falou em fula ou mandinga qualquer coisa que Vagabundo não entendeu. Passado uns momentos de silêncio naquele arbóreo claustro, por entre a porta da palhota, apareceu uma figura muito seca de carnes, mesmo magríssima, apenas com meio corpo coberto por um pano branco alabastro. Pequeno, cabelo e uma rala barbicha brancos, eis o Homem Grande, pensou o furriel. E era verdade!... Embora parecendo mais uma palhinha ao vento do que gente. Ali estava o milagreiro que fecharia o corpo de Mamadu à bala.
Miriam encetou uma conversa com o velhote, e Vagabundo completamente off, não petiscava nada do que se estava passando. Não entendia nada e aquela porra já o estava a deixar descontrolado. É que não tinha trazido arma nenhuma, nem ao menos uma granada de mão como era seu costume. Embora a confiança na lavadeira fosse total, o filme de ser apanhado à mão começou a exibir-se na sua mente.
Passados aqueles primeiros momentos, o velhote olhou o furriel de forma profunda, como se o seu olhar fosse raio X que trespassasse o corpo do homem. Sorriu, descontraindo um pouco o militar e mandou-o entrar. A lavadeira pediu ao furriel para fazer tudo o que o Homem Grande quisesse, porque ela teria de ficar cá fora. Vagabundo animou e pensou: já que ali estava, os dados estavam lançados, valeria a pena arriscar para ver. Deve ser giro entrar numa sessão de feiticismo e, com a curiosidade espicaçada, Mamadu entrou na palhota.
O velho, por gestos mandou o furriel despir-se e deitar-se sobre uma esteira de fibra vegetal. Começou a falar e a pôr as mãos sobre o corpo do militar. Saía e entrava, seu corpo palhinha estremecia, os braços movimentavam-se para cima e para baixo, sempre falando como que implorando algo a um deus qualquer. Derramou um líquido indefinido sobre o peito do furriel, cobrindo-lhe o corpo com um pano branco colocou-lhe as mãos sobre o peito, o que fez sentir palpitações no coração de Mamadu que regressou ao nevrótico estado inicial.
A palhinha negra deve ter chamado a lavadeira, pois esta entrou e, após uma troca de palavras, o velho saiu e Miriam pediu ao furriel para beber o que o Homem Grande lhe apresentasse. Este entrou com uma meia tigela de coco cujo indecifrável conteúdo, beberragem que o militar teria de tomar, seria a finalização daquele acto.
O furriel fez negação com a cabeça, mas Miriam insistiu. Querendo livrar-se daquela porra toda, e relembrando os camaradas foçando, carregando as viaturas e com certeza mandando bocas sobre o furriel comendo a lavadeira e eles no duro, resolveu beber a mistela e sair dali o mais rápido possível. Bebeu, vestiu-se, tirou uma nota de cem pesos e meteu-a na mão do velhote palhinha que delirou, ao ver-se com a dádiva de uma nota daquelas na mão.
Saindo da palhota, Miriam começou a saltitar alegremente na frente do militar e segredou-lhe:
-Agora bala cá entra no corpo de Mamadu!
Regresso junto ao pântano, fizeram conversa giro com aquele como fundo. O furriel esquecendo o carregamento e camaradas sentiu-se na obrigação de partilhar alguma coisa com aquela mulher-criança. O corpo de Miriam estremeceu, sentiu algo de novo que nunca tinha conhecido e a lavadeira chorou. As causas ninguém as saberá. No espírito e corpo Miriam nunca mais esqueceria aquele momento em que não houve cor, raça ou fêmea, mas simplesmente foi considerada mulher a corpo inteiro, a quem a sua própria crença e raça tinham castrado, retirando-lhe parte desse estatuto de um ser livre. E acreditou que teria sido o momento do seu sonho.
Pelo contrário o militar sentiu-se safado e triste por utilizar os seus instintos brincando com os sentimentos de um ser humano.
Perdoa, mulher negra, mas o teu sonho não será realizado nem por branco safado nem por outro homem qualquer. Serás eternamente uma flor que não transformará a sua polinização em fruto.
Vagabundo ainda chegou a tempo ao batalhão. O abastecimento estava a meio e nada de anormal tinha acontecido. Abastecimento feito, regresso a Cufar normal. Viagem sem problemas. Se sempre assim fosse, que óptimas férias em África. Não! Não será assim!
______________
Miriam encetou uma conversa com o velhote, e Vagabundo completamente off, não petiscava nada do que se estava passando. Não entendia nada e aquela porra já o estava a deixar descontrolado. É que não tinha trazido arma nenhuma, nem ao menos uma granada de mão como era seu costume. Embora a confiança na lavadeira fosse total, o filme de ser apanhado à mão começou a exibir-se na sua mente.
Passados aqueles primeiros momentos, o velhote olhou o furriel de forma profunda, como se o seu olhar fosse raio X que trespassasse o corpo do homem. Sorriu, descontraindo um pouco o militar e mandou-o entrar. A lavadeira pediu ao furriel para fazer tudo o que o Homem Grande quisesse, porque ela teria de ficar cá fora. Vagabundo animou e pensou: já que ali estava, os dados estavam lançados, valeria a pena arriscar para ver. Deve ser giro entrar numa sessão de feiticismo e, com a curiosidade espicaçada, Mamadu entrou na palhota.
O velho, por gestos mandou o furriel despir-se e deitar-se sobre uma esteira de fibra vegetal. Começou a falar e a pôr as mãos sobre o corpo do militar. Saía e entrava, seu corpo palhinha estremecia, os braços movimentavam-se para cima e para baixo, sempre falando como que implorando algo a um deus qualquer. Derramou um líquido indefinido sobre o peito do furriel, cobrindo-lhe o corpo com um pano branco colocou-lhe as mãos sobre o peito, o que fez sentir palpitações no coração de Mamadu que regressou ao nevrótico estado inicial.
A palhinha negra deve ter chamado a lavadeira, pois esta entrou e, após uma troca de palavras, o velho saiu e Miriam pediu ao furriel para beber o que o Homem Grande lhe apresentasse. Este entrou com uma meia tigela de coco cujo indecifrável conteúdo, beberragem que o militar teria de tomar, seria a finalização daquele acto.
O furriel fez negação com a cabeça, mas Miriam insistiu. Querendo livrar-se daquela porra toda, e relembrando os camaradas foçando, carregando as viaturas e com certeza mandando bocas sobre o furriel comendo a lavadeira e eles no duro, resolveu beber a mistela e sair dali o mais rápido possível. Bebeu, vestiu-se, tirou uma nota de cem pesos e meteu-a na mão do velhote palhinha que delirou, ao ver-se com a dádiva de uma nota daquelas na mão.
Saindo da palhota, Miriam começou a saltitar alegremente na frente do militar e segredou-lhe:
-Agora bala cá entra no corpo de Mamadu!
Regresso junto ao pântano, fizeram conversa giro com aquele como fundo. O furriel esquecendo o carregamento e camaradas sentiu-se na obrigação de partilhar alguma coisa com aquela mulher-criança. O corpo de Miriam estremeceu, sentiu algo de novo que nunca tinha conhecido e a lavadeira chorou. As causas ninguém as saberá. No espírito e corpo Miriam nunca mais esqueceria aquele momento em que não houve cor, raça ou fêmea, mas simplesmente foi considerada mulher a corpo inteiro, a quem a sua própria crença e raça tinham castrado, retirando-lhe parte desse estatuto de um ser livre. E acreditou que teria sido o momento do seu sonho.
Pelo contrário o militar sentiu-se safado e triste por utilizar os seus instintos brincando com os sentimentos de um ser humano.
Perdoa, mulher negra, mas o teu sonho não será realizado nem por branco safado nem por outro homem qualquer. Serás eternamente uma flor que não transformará a sua polinização em fruto.
Vagabundo ainda chegou a tempo ao batalhão. O abastecimento estava a meio e nada de anormal tinha acontecido. Abastecimento feito, regresso a Cufar normal. Viagem sem problemas. Se sempre assim fosse, que óptimas férias em África. Não! Não será assim!
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Nota do editor:
Último poste da série > 22 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17169: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVIII Parte: Cap IX - Guerra 2: O primeiro Lassa a morrer em combate, o sold at inf Marinho
Último poste da série > 22 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17169: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVIII Parte: Cap IX - Guerra 2: O primeiro Lassa a morrer em combate, o sold at inf Marinho