Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da Semana > 27 de Abril de 2008 > "Esta foto será legendada muito em breve. Aos nossos visitantes pedimos desculpas pelo atraso"...
Querido Pepito, queridos amigos da AD e da Guiné-Bissau, irmãos e irmãs: para quê mais palavras, se esta imagem vale por mil palavras ? Metaforicamente falando, está aqui a tua Guiné, a vossa Guiné, a nossa Guiné, a aprender a andar, a cair e a pôr-se de pé, como jovem nação que é... É a minha leitura, ou sugestão de leitura, se mo permitem: sem cinismos, sem paternalismos, com a com + paixão com que eu, à distância de milhares de quilómetros, vos vejo, e às vossas boas obras... Força, amiga, força, irmã!... Que o caminho se faz caminhando, parafraseando o grande poeta espanhol António Machado ("Caminante no hay camino, se hace camino al andar", poema popularizado pelo cantor catalão Joan Manel Serrat) (*).
Numa sociedade patriarcal e machista, como a sociedade fula do tempo da guerra colonial, seria de todo improvável poder encontrar uma aprendiz de biciclista...
Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento. Direitos reservados (Com a devida vénia...)
Guiné > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guileje > 3 de Março de 2008 > No regresso a Bissau, o Nuno Rubim, o capitão fula, aqui de costas, contempla pela última vez o antigo aquartelamento e parte mantenhas com habitantes locais (que agora residem em Mejo)... Dois deles deslocavam-se de bicicleta, um meio de transporte, ainda hoje, um luxo que não está ao alcance da maioria da população...
Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.
1. O nosso irmãozimnho de Fajonquito continua a deliciar-nos com o seu talento de escritor e a frescura das suas memórias de infância e adolescência, passadas na zona leste da Guiné-Bissau, junto à fronteira com o Senegal, em contacto com os diabos brancos (entre meados de 1960 e 1974, em Cambaju e Fajonquito) ...
Há dias o Cherno Baldé mandou-nos mais dois textos, datados de Novembro de 2006, de que publicamos hoje o último, o Velho Marabu de Sumbundo... No próximo texto, escrito recentemente, ele fala-nos das suas aventuras de menino e moço em Fajonquito (1970-1975
O VELHO MARABU DE SUMBUNDO... ou a história de uma revelação fantástica
por Cherno Baldé
No período decorrido entre os anos de 1972/75, vivendo em Fajonquito para onde mudámos no ano de 1968 na sequência da transferência do meu pai (**), acompanhava este com frequência, em deslocações às aldeias vizinhas, durante os fins-de-semana.
Nessa altura, o meu pai tinha sempre consigo uma bicicleta como meio de transporte para esses casos. Eram, na maioria dos casos, bicicletas usadas que ele raramente montava, não só pela idade que não permitia muito esforço físico, mas também a necessidade ou a obrigatoriedade de falar e cumprimentar cada pessoa com que nos cruzávamos. Eram mantenhas prolongadas que nunca mais acabavam, durante as quais cada um tentava sondar o outro sobre assuntos dos mais variados de seu interesse, coisas de adultos no mundo rural de Fuladu de então. Eu, ao lado, ouvia e ouvia, era quase sempre o mesmo discurso que, na minha opinião de criança apressada, não servia para nada.
Não foi uma única vez, foram várias vezes que ele me levou consigo. Nunca percebi bem, porque razão nos levava consigo nessas andanças. A bicicleta e eu não tínhamos quase nenhuma utilidade prática, éramos simples objectos de decoração da sua importância cuja presença nem sequer era notada. Ele raramente falava comigo, limitando-se a monologar consigo mesmo durante a caminhada, e as pessoas com que nos cruzávamos nunca me dirigiam a fala sequer, salvo quando nos cruzávamos com um grupo de mulheres mais tagarelas. Elas sim, elas sempre se dirigiam a mim depois de cumprimentar o meu pai, perguntando da minha mãe ou dos meus irmãos.
Na sociedade Fula, as mulheres estavam mais próximas das crianças e formavam assim um grupo que raramente penetrava no espaço fechado e reservado dos homens. Altivos e soberbos, estes, aparentemente, não tinham em muita conta as mulheres, as quais pertenciam, juntamente com as crianças não circuncisas, ao mundo dos não iniciados e que, pelo seu comportamento leviano e infantil, só mereciam indiferença.
Uma vez, acompanhei-o à aldeia mandinga de Sumbundo, distante cerca de 13 km de Fajonquito, a nordeste]. O trajecto que levava para lá chegar passava por várias aldeias, Canhámina, Sintchã Coli, Djambur, Fanca, Sare Wali e Walikunda, dependendo das voltas que quisesse fazer.
Daquela vez foi com alguma surpresa, para mim, que entrámos na aldeia de Sumbundo. A primeira vista, parecia diferente das outras aldeias vizinhas, era uma aldeia enorme e densamente povoada, e ao contrário das aldeias dos Fulas, a presença de gado bovino nas imediações era diminuta, quase nula, mas em contrapartida haviam muitas cabras e burros à solta e à volta das casas, pastando ou amarrados junto das suas casotas de palha.
O meu pai era muito conhecido na zona devido às suas actividades comerciais e também pelas ligações antigas que a nossa família tinha com aquela gente. Por isso, passou ainda por todas as moranças da aldeia antes de se dirigir a casa do velho Marabu (***). Quando entrámos, o velho estava sentado ao pé da cama na pele de um carneiro. Dispensaram vários minutos para os habituais salamaleques de velhos conhecidos. Passaram depois para outros temas. Eu assistia silencioso sem compreender o sentido da conversa, sentado ao lado do meu pai, absorto nas minhas cogitações. O barulho das crianças e os gritos das mulheres ocupadas nos seus afazeres domésticos entrava casa adentro sem incomodar todavia os dois homens concentrados nos seus assuntos.
Finalmente, o meu pai, visivelmente satisfeito, e voltando a si, olhou longamente para mim, o que ele fazia raramente, percebi então que a consulta tinha chegado ao fim, todavia dirigindo-se ao velhote, informou-o que eu estava na escola a aprender a leitura e a escrita dos brancos mas que ele não estava sossegado pois queria que eu fosse, também, à nossa escola tradicional a fim de aprender o Alcorão.
O velho Marabu percebeu a aflição (o dilema) do meu pai e também aquilo que ele queria dizer naquelas poucas palavras e olhou meigamente para mim e concentrou-se nos seus instrumentos. Tirou um papel branco duma sacola aos seus pés, meteu-o numa pasta que tinha a seu lado e embrulhando-o com um pano pô-lo em cima da pele de carneiro. Pegou no seu rosário e durante alguns minutos, com o olhar posto no vazio e manobrando o rosário com os dedos da mão direita, fazia as contas deste deslizar uma a uma, murmurando algumas palavras ininteligíveis.
Sem dar muita importância à questão inicialmente posta, disse ao meu pai que ambos eram conciliáveis, isto é, uma e outra coisa eram boas, pois tanto fazia que eu fosse à escola europeia ou à corânica, ou ainda às duas ao mesmo tempo, estava predestinado a sair-me bem. Só mais tarde, reflectindo no assunto, vim a perceber a importância de que revestiram aqueles poucos minutos para o futuro da minha vida.
As palavras de um reputado Marabu tinham um peso enorme nas decisões dos homens dessa época. Olhando nos olhos do meu pai de forma prolongada, acrescentou ainda que eu era pessoa dotada de uma “cabeça larga” e faria 77 anos de vida nesta terra. O significado de “cabeça larga” entre nós podia ser interpretado de variadas formas e estava ligado a conotações tanto positivas como negativas. O “cabeça larga” podia ser uma pessoa que tinha acesso ao mundo invisível, que podia ver aquilo a que aos seres normais estava vedado ou ter acesso a acontecimentos futuros, a fenómenos que ainda não tinham acontecido, mas também podia ser associado ao domínio da feitiçaria e consumo da carne humana. Ah, o homem se desacreditou completamente, pensei comigo.
Esta revelação a que o velho Marabu parecia dar maior relevância na sua tentativa de vasculhar o meu futuro não foi bem recebida por meu pai, pois este deu sinais em como que já queria se despedir. Antes de dar a mão a meu pai, o Marabu desembrulhou calmamente a pasta que continha o papel branco, retirou de lá a folha e deitou-a em cima da pele de carneiro à sua frente, como que para dar força às suas palavras. Curiosamente, vimos que o papel que antes era completamente branco e limpo, agora, inexplicavelmente, estava toda manchada de tinta, representando uma curiosa grafia em letras árabes num dos lados.
O meu pai não disse mais nada, levantou-se acto contínuo e disse-me para o anteceder na saída. Ele era assim mesmo, ouvia aquilo que lhe apetecia ouvir e detestava o resto. Aquela manobra de prestidigitação do velho parece que não tinha despertado nenhuma curiosidade nele, ou porque lhe era por demais familiar ou porque não queria ouvir detalhes que pudessem ofuscar e/ou desfazer a magia da energia positiva do momento.
Já passavam das cinco horas da tarde quando nos pusemos a caminho de casa. Esta era sempre a melhor parte, para mim, pois no regresso vínhamos sempre montados na bicicleta e agora não havia muita conversa no caminho, cumprimentava as pessoas sem descer da bicicleta e às vezes nem sequer parava pois já o sol estava a esconder-se lá para oeste e não havia tempo a perder, ele pedalava, pedalava, e eu lá atrás gozava com o prazer da corrida e da brisa que soprava no meu rosto de criança feliz escondida no grande bubu do meu pai.
No entanto, para dissipar qualquer dúvida não resisti à tentação de perguntar-lhe sobre o significado das palavras do velho Marabu, aliás, queria deixar bem claro a meu pai que o velho se tinha enganado pois que eu era completamente cego, quer dizer não era nenhum “cabeça larga” como tinha sugerido o Marabu. Mas, quando o fiz, ele limitou-se a sossegar-me dizendo que aquele velho mandinga já não estava bem da bola por isso não valia a pena se martirizar com suas alucinações de velhice.
Mais tarde, na minha vida de homem já maduro, esta consulta trivial sem importância voltaria várias vezes na minha cabeça, pensando nas palavras que ouvi e naquela magia ou arte fenomenal que se me deu assistir e ver com os meus olhos de criança. E, sempre que depois me acontecia por premonição ver numa visão ou em sonhos factos que depois se confirmavam passado algum tempo, lembrava-me das palavras do velho Marabu que me atribuía capacidades extraordinárias e questiono a mim mesmo se não seriam estas visões que o Marabu tinha vislumbrado através do seu rosário mágico.
Os 77 anos de vida que ele me deu ainda estão por se confirmar, mas já constituíram para mim uma importante fonte de confiança na minha longevidade. Todavia, se antes me parecia ser uma boa idade para morrer, com o tempo e a pressão da idade, estou tentado a mudar de opinião e, penso, que o velho Marabu talvez, se tenha equivocado, afinal, 77 anos é tão pouco tempo para viver.
Voltando à questão da cabeça larga, no dia 17 de Dezembro de 2006, passados mais de 20 anos de separação, veio visitar-me um antigo colega de infância, que actualmente reside na cidade senegalesa de Ziguinchor, de nome Algássimo Baldé. Na nossa conversa amena, na presença da minha esposa, Geralda, relembrou-me duas coisas que teria dito a seu respeito e que na sua opinião se tinham confirmado.
- Primeiro, disse-me ele, você me tinha dito que mais tarde eu seria calvo, estou aqui hoje à tua frente para te mostrar a minha cabeça completamente calva. Segundo, você me tinha dito que eu era pessoa muito trabalhadora mas que tinha pouca sorte, infelizmente, isto também se revelou verdade, trago aqui comigo um extracto de um jornal que conta a história de como os rebeldes daquela zona nos assaltaram e me roubaram numa única noite todos os bens que tinha acumulado durante mais de 20 anos de trabalho árduo e meticuloso. Depois de passar por ser um dos mais ricos da zona da baixa Casamança (área de Ziguinchor), agora sou obrigado a trabalhar de motorista de táxi para dar sustento a minha família. E durante todo o percurso que fizemos, eu e mais outros prisioneiros, levando em cima das nossas cabeças o espólio desses bandidos, não pensei em outra coisa que suas palavras. Parecia ouvir o martelamento das tuas palavras como se fosse ontem “Você é pessoa muito trabalhadora mas tem pouca sorte na vida”.
Eu nem podia acreditar naquilo que ouvia, e nem sequer me lembrava de ter feito aquelas vaticinações incríveis que ele tinha gravado na sua cabeça para sempre. Seriam os sinais evidentes da luz que o Marabu tinha visto na minha infância? Não sei dizer.
Bissau, Novembro de 2006
[Fixação / revisão de texto / bold a cores: L.G.]
___________
Notas de L.G:.
(*) Vd. poste de 26 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3243: Blogpoesia (26): 35 anos de Guiné-Bissau: A minha contribuição para a tua festa, meu irmão, minha irmã (Luís Graça)
(**) Vd. postes da série Memórias do Chico, menino e moço:
19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão
24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo
25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio
30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói
6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968
13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda
Vd. também postes de:
18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...
7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)
(***) Marabu: sacerdote muçulmano, que leva uma vista ascética, e é venerado, em vida e depois da morte, como um homem sábio e santo...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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terça-feira, 21 de julho de 2009
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