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domingo, 27 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23820: Notas de leitura (1523): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte IV “Devo à Providência a graça de ser pobre” (Salazar, Braga, 1936)

1. Jornalista e escritor, com formação em história, João Céu e Silva não escreveu propriamemte uma biografia de Vasco Pulido Valente (VPV) (1941-2020), mas fez com ele uma interessantíssima, para não dizer apaixonante,  viagem pela história de Portugal, desde 1807 (início das invasões francesas e saída da corte para o Brasil) até à atualidade, valendo-se da sua centena de horas de entrevistas gravadas, ao longo de quase dois anos, e da vastíssima cultura histórica do VPV.

É um trabalho, não propriamente para eruditos mas para o grande público, incluindo os leitores daquele que foi um dos maiores (e mais polémicos) cronistas do seu tempo. Inevitavelmente, a vida do entrevistado vem ao de cima, desde a sua origem familiar às suas múltiplas atividades, como académico, historiador, investigador, jornalista, cronista e até político (cuja carreira terá sido cortada ao meio com a morte de Sá Carneiro). O único tabu que impôs (e muito bem) ao entrevistador foi a sua vida privada.

Não devendo, pelas nossas regras editoriais, entrarmos pela análise da atualidade política (o mesmo é  dizer, das últimas quatro décadas) vamo-nos centrar na apeciação que o VPV faz, no livro, da fase final do Estado Novo, do 25 de Abril, da descolonização e do 25 de novembro, terminando aqui, nas duas próximas  notas, a nossa leitura deste livro.(*)

Para todos os  efeitos, é um livro escrito a quatro mãos, baeado na resposta do VPM a um vastíssimo e exaustivo guião  de perguntas, mesmo que o entrevistado já não tenha tido oportunidade de rever o essencial das suas declarações. (A  obra saiu um ano depois da sua morte.)

Homem de ego elevado, estrangeirado como Eça de Queiroz (seu autor de cabeceira), tão  inteligente e lúcido quanto sarcástico e amargurado no fim da sua vida (morre, precocemente,  aos 78 anos, de doença crónica degenerativa), aceitou o desafio (e agarrou a oportunidade) de ditar, de algum modo, para a posteridade o seu "testamento" através do seu quase biógrafo João Céu e Silva.  

O livro tem tido, ao que parece,  boa aceitação, e inscreve-se numa série que o autor criou, "Uma longa viagem com..." (Antes de VPV, foram entrevistados outros escritores como, por exemplo,  José Saramago ou António Lobo Antunes, dois autores que, diga-se de passagem, o VPV estava longe de admirar; e o Saramago, esse,  destestava-o mesmo, talvez por pescar am águas que os historiadores consideram como suas, caso, por exemplo, do Memorial do Convento ou o Ano da Morte de Ricardo Reis; aliás, criticava o seu "realismo mágico",  deslocado aqui e agora, num Portugal por fim obrigado a confinar-se ao continente europeu e à sua cultura, "perdido" o império e as suas ilusões de grandeza; e quanto à atribuição do prémio Nobel da Literatura,  era qualquer coisa que não impressionava o implacável e iconoclasta VPV, um colecionador de "ódios de estimação").

Mas deixemos aqui, para uso e eventual proveito dos nossos leitores,  dois apontamentos do pensamento do VPV sobre o fim do Estado Novo, regime de que ele era particularmente crítico, de resto como outros historiadores devido ao bloqueio que representou à modernização da sociedade e da economia portuguesas. (No fundo, é uma ideia quase de "senso comum", da parte daqueles que fazem "história espontânea", mesmo sendo "anti-salazaristas": cumprida a sua missão (saneamento financeiro e neutralidade político-militar de Portgal na II Guerra Mundial), Salazar devia ter voltado a Coimbra, e deixado o país apanhar o comboio das democracias ocidentais que triunfaram sobre as"potências do Eixo"... Mas na realidade, não foi isso que aconteceu, infelizmente para todos nós: o homem sentia que tinha uma missão divina a cumprir na terra...

A seguir, excertos de João Céu e Silva . "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), com a devida vénia ao autor e à editora;



(i) Estado Novo
e desenvolvimento económico


(…) Nas décadas de 1950 e 1960 houve boas condições para Portugal crescer e obter mais riqueza (…) (pág 129).

(…) Pode não se acreditar, mas nos anos  50 o PIB português  cresceu à volta de  quatro a cinco por cento ao ano e  nos anos 60 conseguiu chegar aos seis e sete  por cento ao ano.. 

Portanto, o regime salazarista  teve muito sucesso económico, uma situação que Salazar não gostava, daí a célebre frase dele (…) quando fala aos ministros sobre o desenvolvimento económico do país, com o qual estavam todos de acordo: “Se quereis enriquecer, então está bem, cedo às vossas pretensões”. (…).

Isto é que era o verdadeiro Salazar, o que dissera “Devo à Providência a graça de ser pobre” (#), era ao mesmo tempo dizer que não era corrupto e, fundamentalmente, a afirmação de que a pobreza era uma virtude. Essa é uma premissa que nunca se tem percebido na interpretação de Salazar (pág. 130)

(#) Discurso em Braga, em 1936, dez anos de regime, “o grande discurso de Salazar” (pág. 164).

(ii) Fim do regime


P – Nos últimos anos do regime, os portugueses não se levantam porquê ? (pág. 174)

 Porque têm medo e porque a política deixou de ser a ocupação fundamental.  A grande libertação moral dos anso 60, os grandes movimentos idealistas dos hippies e do Paz e Amor é que preocupava as pessoas. Não eram coisas diretamente políticas, antes uma imposição americana, que nem se prestava muito às adaptações portuguesas.  

Bastava ver o que ser passava nos cafés da Avenida de Roma. No Vá-Vá ou no Roma, que eram o retrato de uma nova mentalidade. Eram modas e conversas que levavam a que as pesssoas andassem preocupadas com outras coisas e ficassem desligadas da realidade política – não queriam saber dela para nada. Formalmente, eram todos contra, mas isso já não queria  dizer nada porque não as preocupava. O único problema que existia era a guerra colonial, de maneira que essa gente  era contra os militares porque lhes cheirava a  colónias. Quanto ao resto, não aquecia nem arrefecia. (pag. 174/175)

(…) Os meninos emigravam voluntariamente, não só para fugirem à tropa mas para terem experiência no estrangeiro. Isto estava tudo dissolvido e a chegada de Marceloo Caetano não resolve, piora. Porque havia menos medo de Marcello do que de Salazar. (…) 

Estavam até às tantas da manhã em festas, as pessoas fumavam drogas leves e iam para a cama com A e com B,  um estilo de vida contra o qual não havia nada a fazer

E então veio o 25 de Abril, que era uma consequência  disto e também um movimento irresistível. (pág. 175).

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos  / Links, para efeitos de publicação deste poste:  LG]

___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23815: Notas de leitura (1522): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (5) (Mário Beja Santos)

Vd. postes anteriores:

24 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23811: Notas de leitura (1521): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte III: Salazar, Caetano e as Forças Armadas... (Considerar os capitães milicianos como "voluntários" e "mercenários", raia o insulto, não?!..)

18 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...

17 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I . As colónias não valiam o preço...