Queridos amigos,
É sacramental, chegado o mês de agosto, subir à Beira Alta, de Trancoso se pode cirandar entre primórdios da nacionalidade, sobretudo sentir a dimensão das atalaias para resistir ao hostil castelhano, intruso século fora. Um amigo dileto põe e dispõe quanto ao que se faz o dia inteiro, é sempre aprazível o orgulho com que mostra o que o seu terrunho e circunvizinhança oferece de esplendoroso.
Chega-se a Rio de Mel, e é aí que se dita a sentença das excursões do dia. Desta feita, S. João de Tarouca e Santa Maria de Salzedas, compraz ver com olhos de ver que obras não faltam e que os monumentos nacionais, outrora postergados ou praticamente desconhecidos, aparecem altaneiros e verdadeiros expoentes do turismo cultural.
Um abraço do
Mário
De Trancoso para Santa Maria de Salzedas
Mário Beja Santos
Todos os anos, chegada a época estival, com filha e neta em Pedrógão Pequeno, telefono ao meu dileto amigo Luís Rodrigues, cuja terra-berço é Rio de Mel, concelho de Trancoso, para marcar visita, ladeia-se a Serra da Estrela, passam-se dois túneis, anda-se à margem da Guarda, conferem-se as muralhas de Trancoso e segue-se por uma estrada de pedregulhos, que trazem à reminiscência a cultura megalítica, e entra-se na quinta, pela calada já está organizado um programa bem surpreendente, pode ser Numão, Sernancelhe, Almeida, descer ao Douro, milhentas são as hipóteses. Aqui chegados, no agosto pandémico de 2020, vem a notícia, desta feita o passeio será a S. João de Tarouca e a Santa Maria de Salzedas, já lá tivemos há um bom par de anos, tem havido e continuam as obras de restauro, há que comparar entre o pretérito e o presente. Tinha saudades deste reencontro, é uma amizade encetada em 1977, este engenheiro químico enveredou pela política dos consumidores e marcou presença, foi uma referência durante décadas na área da segurança dos consumidores, mexia-se à vontade entre os cosméticos e os produtos de limpeza, a normalização dos bens de consumo, saiu-lhe das mãos legislação de realce, ainda hoje vigente. Uma carreira de funcionário público exemplar, foi galardoado com uma condecoração da Ordem de Mérito. Saúdo-o aqui, ele não sabe que o apanhei à porta do mosteiro, agradeço-lhe o seu acolhimento modelar e a plena surpresa destas digressões culturais.
As obras deste mosteiro cisterciense arrancaram em 1168, a patrona foi a segunda esposa de Egas Moniz, neste território que era designado de Salzeda, estamos no concelho de Tarouca. A escolha do território obedecia à lógica da regra de Cister, incrustado num vale, com acesso direto a um curso de água, a ribeira de Salzedas, afluente do rio Varosa. Enquanto igreja medieval de planta em cruz latina, com três naves e transepto saliente, foi sagrada em 1225. A atenção do visitante é de andar à cata dos sinais desse tempo, alguma coisa se encontrou, e dentro da intervenção a que o mosteiro está a ser sujeito mostram-se colunas do passado, como se pode ver.
Interior da Igreja de Santa Maria de Salzedas
Como foi uso na vida destes templos religiosos, as alterações acabaram por tudo transformar, e Salzedas conheceu obras de vulto entre os séculos XVI e XVIII. Como se viu na primeira imagem, a atual fachada data dos finais do século XVIII, tem duas torres laterais adiantadas. Monumento nacional desde 1997, Salzedas tem conhecido benéficas intervenções, todas elas justificadas, guarda obras notáveis de Grão Vasco e porventura da sua oficina, possui retábulos excecionais deste grande artista, produzidos entre 1511 e 1515. A sacristia é um espanto, resta dizer que este conjunto monástico abarca a igreja e adjacências como o Claustro do Capítulo, a Sala do Capítulo, a botica, a cozinha e o refeitório, espraia-se por dois andares, há muito para ver e assim perceber a riqueza dos artistas que aqui intervieram, sobretudo Vasco Fernandes e Bento Coelho da Silveira.
Magnificência, riqueza e grande aparato na Sacristia de Santa Maria de Salzedas
Esplendor barroco não falta, mas quem aqui acaba de chegar elogia para si mesmo estas intervenções de conservação e salvaguarda, fizeram bem em integrar Salzedas na rede de monumentos do projeto turístico-cultural Vale do Varosa. E se valeu a pena comparar o que se viu anos atrás e o estado de conservação a que se chegou, mesmo sabendo que foi bem pesada para os monumentos nacionais a forma como se distinguiam as ordens monásticas em 1834, e daí, em jeito de despedida, olhar-se ao fundo para as instalações monásticas arruinadas, num profundo contraste com a recuperação a que se assiste na igreja e nos claustros. Vamos ver o que o futuro nos reserva. E bem hajas, meu querido amigo Luís Rodrigues, pela magnífica digressão a Salzedas.
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21693: Os nossos seres, saberes e lazeres (430): Os primeiros Cistercienses de Vale Varosa: S. João de Tarouca (Mário Beja Santos)