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sábado, 21 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17889: (Ex)citações (325): Os capitães de África, pelo professor Rui Ramos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

A história das guerras do império, por vagas sucessivas, envereda pelos seguintes domínios: 

(i) logo a seguir ao 25 de Abril os teóricos à esquerda e extrema-esquerda a desvelar aspetos sombrios do colonialismo, desde a palmatória aos massacres, 

(ii) e o teóricos da direita e extrema-direita a apontar para a tragédia da descolonização; 

(iii) o novo fluxo prendeu-se com o sofrimento daqueles que combateram pela presença portuguesa, perseguidos e executados, isto a par da permanente acusação do dedo soviético e da ganância norte-americana à espreita de petróleo e diamantes; 

(iv) seguiu-se a acusação irrestrita de que a descolonização prejudicou por inteiro os descolonizados; 

(v) no fluxo presente, em que é impressionante o acervo de conhecimentos sobre o que foram as campanhas de África e em que contexto internacional se moveram as decisões de Salazar e Caetano, passa-se banho lustral sobre os fundamentos das lutas de libertação e temos historiadores a falar dos teatros de guerra sem jamais os ter estudado.

Encontra-se no trabalho de Rui Ramos bojardas como a seguinte, a propósito da invasão da Guiné Conacri, em 1970: "O PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos permanentes no interior do território".

Pasma como quebra o silêncio para denunciar a inqualificável besteira.

Um abraço do
Mário


Os capitães de África, pelo professor Rui Ramos

Beja Santos

Em escassas duas semanas, de quatro proveniências diferentes recebi o artigo que o professor Rui Ramos publicou no jornal Independente em 2006 sobre as guerras que travámos em África:

http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2017/09/oscapit%C3%A3es-de-%C3%A1frica-por-prof-rui-ramos.html. (*)

O documento é naturalmente polémico, será precisamente por isso que anda nas redes sociais, dá satisfação aos descontentes e azedumentos. À pergunta de que aquela guerra fora o simples resultado da natureza do regime político em 1961 ou da idiossincrasia do seu chefe, o historiador não hesita: “Nenhum governo português poderia ter feito outra coisa em Março de 1961”.

E refere as chacinas, os apelos à violência da UPA, incluindo o ideólogo de alguns revolucionários, Frantz Fanon. Na suposição de que o historiador aposta na imparcialidade e na contextualização dos factos, estava sem querer que houvesse algumas palavras abonatórias de que se encetara desde o termo da II Guerra Mundial uma gradual consciencialização anticolonial, que o Estado Novo estava ciente de que vinham problemas do principal anfiteatro planetário, as Nações Unidas, onde as novas nações independentes clamavam pelo fim das colónias.

O Estado Novo iludiu a realidade, e depois de umas largas pinceladas sobre a chegada de colonos a Angola e Moçambique, remata que não teria sido fácil em 1961 o abandono de África, ninguém pensara em retirar nem mesmo o PCP e os demais antissalazaristas. Houve portanto guerra aos movimentos de libertação porque era inevitável, ponto final, foi uma História sem antecedentes, um autêntico conto de fadas.

Rui Ramos fala da evolução da guerra e da estratégia salazarista, cita mesmo Marcelo Caetano em Março de 1974: “Não será por falta de dinheiro que nos renderemos”. Dinheiro houvera muito, mas estava tudo a correr mal desde 72, primeiro a crise mundial de alimentos, dispararam os preços, só baixarão no fim da década, a seguir o primeiro choque petrolífero e o castigo árabe a Portugal, pensou-se em racionamento, houve quilómetros de bicha, candonga a gasolina, se o professor Rui Ramos conversar com alguns do seus colegas e que conhecem economia e finanças, ficará surpreendido como a inflação subiu acima dos 30% no fim do primeiro trimestre de 1974.

Apregoa os mesmos argumentos de que a guerra se apresentava viável, que os principais movimentos de libertação constituíam um complicado folhetim de desânimos, cisões constantes, ajustes de contas sanguinários e deserções espetaculares. Era bom que o professor Rui Ramos estudasse a fundo o que foi o PAIGC, por exemplo, teve altos e baixos mas foi-se fortalecendo e prestigiando, conseguiu os necessários apoios técnicos, em armamento e equipamento, formou quadros e nos últimos anos da guerra fez reverter para o interior da Guiné uma matéria-prima de grande qualidade, os quadros cabo-verdianos que não tinham condições de estender a guerrilha a Cabo Verde.

Não esclarece muito bem o que mudou de Salazar para Marcello Caetano, deste refere novos argumentos, mais complicados, assentes numa solidariedade humanitária, para justificar as operações militares. “Convenceu-se também de que a estratégia da guerra limitada e de longa duração não podia continuar”.

Então, o historiador atira uma régua para cima da mesa, já que era necessário pôr fim à guerra: “Caetano proporcionou aos chefes militares os meios para romperem com a modesta rotina salazarista e tentarem esmagar a guerrilha. O ano 1970 foi marcado por iniciativas dramáticas: a invasão da Guiné Conacri, o grande assalto ao Planalto dos Macondes em Moçambique, e um novo plano de operações no Leste em Angola. Os resultados iniciais não foram maus. Na Guiné, o PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos do território”.

Penso que nunca ficaremos a saber se o académico ilude os factos, é ignorante e tacanho ou consultou os dossiês errados. Tivesse ele procurado ler o que foi o ano militar da Guiné de 1970, e mesmo 1971, e descobriria que o PAIGC não abandonou nenhum acampamento, esquece-se que ainda há muita gente viva que por aqui anda e que os arquivos estão cheios dessa documentação. O académico sugestionou-se, sentiu-se livre para dizer umas bojardas.

O que aconteceu depois? Kaúlza e Spínola teriam ficado despeitados por não terem sido candidatos à presidência da República, em 1972 e foi posta a propalar a tese de que o governo não lhe dera os recursos materiais ou as autorizações políticas necessárias. Curiosamente, esta argumentação não bate certo com o que, depois do 25 de Abril escreveram militares como Kaúlza de Arriaga ou Silvino Silveira Marques e mais recentemente um tenente-coronel aviador de escrita alucinada, Brandão Ferreira.

O que escreve sobre o desfecho do regime e a ascensão do MFA é pura pirotecnia argumentativa: os capitães entendiam que a democracia portuguesa se iria fazer abrindo estradas, administrando escolas e hospitais, como se fazia em África. O historiador profere estes dislates, tanto quanto sei ninguém lhe foi ao pelo. Será por indiferença? Segue-se, no termo do artigo, a verrina e a destilação de veneno:

“Só a mitologia de esquerda podia dar uma boa consciência aos homens do MFA. Só ultimamente se começou a perceber o verdadeiro sentido da retirada portuguesa. Havia mais africanos a combater do lado português do que do lado dos partidos armados. Na Guiné, metade dos confrontos com o PAIGC eram da responsabilidade das milícias locais”.

Que ninguém se pasme como se pode ser tão leviano. E nem uma palavra sobre aquele trimestre fatídico para Marcello Caetano, em que mandou negociadores sigilosos falar com o PAIGC, a FRELIMO, o MPLA, a FNLA e a UNITA. Numa entrevista a um jornal brasileiro, Caetano irá com uma certa displicência que era inevitável as independências, era um fenómeno internacional onde já não cabia a argumentação portuguesa em prol de um Portugal do Minho a Timor. (**)
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Notas do editor:

(*) O link constante no texto não funciona pelo que tive de pesquisar na net uma alternativa. Encontrei este: http://macua.blogs.com/files/os-capit%C3%A3es-da-%C3%A1frica-ii---2004.pdf que permite até carregar o PDF.

(**) Último poste da série de 16 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17867: (Ex)citações (324): os memoriais de Buruntuma (CART 1742, 1967/69) e Ponte Caium (3º Gr Comb, CCAÇ 3546, Piche, 1972/74): Abel Rosa, António Rosinha, Carlos Alexandre e Valdemar Queiroz

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16608: Notas de leitura (891): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (2) (Mário Beja Santos)

A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Neste itinerário das comemorações entre 1880 e 1960, assistimos às diferentes matizes a que foi sujeito o ciclo nacionalista-imperialista, desde o jubileu de Camões no aflitivo momento em que grandes potências coloniais se preparavam para negociar parcelas do nosso Império até ao centenário do Infante D. Henrique, em 1960, a derradeira festividade em que se procurava o maior fausto para justificar a gesta dos Descobrimentos e a presença de Portugal em África. Sem se entender todo este percurso, é extremamente espinhoso procurar linearidade no relacionamento entre Portugal e as suas ex-colónias africanas, após os acontecimentos de 1974 e 1975.

Um abraço do
Mário


As comemorações imperiais portuguesas, nos séculos XIX e XX (2)

Beja Santos

Em “História da História de Portugal, Séculos XIX-XX”, Temas e Debates, 1998, o historiador Fernando Catroga, a propósito da temática das ritualizações da História, trata minuciosamente o ciclo nacionalista-imperialista e a sua associação direta à questão colonial. Já se referiram várias comemorações, retenha-se que o centenário da Índia foi alvo de cortejo, de exposições, de memórias, de apoteose de iluminações, repiques de sinos e, claro está, de Te Deum. A Sociedade de Geografia de Lisboa, o núcleo duro da defesa dos interesses coloniais de Portugal, lançou mão de uma série de iniciativas, incentivou importantes contributos historiográficos.

A República não ficou atrás na exaltação nacionalista-imperialista. E não podia ficar. Berlim continuava a cobiçar largas porções de Angola e Moçambique. Ao deflagrar a I Guerra Mundial, os republicanos deram a máxima prioridade à questão colonial. Mobilizaram a opinião pública para entrar na guerra e uma das razões capitais dadas foi a de se dever garantir a soberania portuguesa em África. O regime republicano é confrontado com os centenários de Ceuta e de Afonso de Albuquerque, que balizavam o início e o apogeu da gesta dos Descobrimentos. Previram-se congressos internacionais, a transladação dos ossos de Afonso de Albuquerque da Igreja da Graça para os Jerónimos. Foram iniciativas que receberam fraco acolhimento, embora se tenha produzido e editado obras relevantes, conforme o historiador Fernando Catroga enumera.

À volta da viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral no hidroavião Lusitânia, em 1922, na passagem do I Centenário da Independência do Brasil, a questão colonial era bem evidente. Os governos republicanos depois dos tratados de Versalhes (1919), e da conferência de S. Remo (1920), e perante o facto das antigas colónias alemãs terem passado a ser governadas por potências administrantes, começaram por se mostrar tranquilos mas o presidente norte-americano Wilson trouxe uma nova preocupação: Washington exigia a criação de condições que gradualmente elevassem os povos colonizados à autodeterminação e independência, em conformidade com o art.º 22.º do Pacto da Sociedade das Nações.

Viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral no Atlântico Sul, 1922. 
(Imagem retirada, com a devida vénia, do blogue Estado Sentido.)

Voltemos a Camões, em 1922, a Câmara Municipal de Lisboa lançou a ideia de nova consagração do vate, a propósito da passagem do quarto centenário do seu nascimento. Houve sarau na Sociedade de Geografia de Lisboa, sessões públicas e algumas conferências. Como recorda o historiador, numa conferência realizada por António Cabreira, a descoberta do caminho marítimo para a Índia era apresentada em termos em que o elemento rácico tinha um lugar proeminente: a aventura portuguesa devia ser apreciada como uma libertação da Europa da pressão muçulmana e turca porque salvou “a Civilização Ocidental de uma derrocada certa, salvando o próprio sangue europeu da mestiçagem bárbara que daria, fatalmente, a quebra de índice encefálico e, portanto, a perda irremediável do brilho mental das raças mais nobres do planeta”.

E estamos chegados à era de Salazar. O ditador maneja com mestria a sua visão de unidade nacional, que incorpora republicanos conservadores, católicos, monárquicos liberais, integralistas e grupos afins. Move-os a todos o culto da independência e a defesa das colónias. Os republicanos já tinham dado o exemplo. Ainda antes do 28 de Maio, a Sociedade de Geografia de Lisboa apoiou a constituição de uma Comissão de Defesa das Colónias, onde estava a quase totalidade do grupo da Seara Nova. Armando Cortesão escrevia abertamente: “O Império de além-mar é para Portugal uma questão de vida ou de morte”. E saiu do punho de Afonso Costa esta definição: Portugal não é um pequeno país. Os que sustentam isso esquecem que as províncias ultramarinas fazem com o território metropolitano de Portugal um todo uno e indivisível.

Salazar faz aprovar o Acto Colonial em 1930, e o seu art.º 3.º é esclarecedor: “Os domínios ultramarinos de Portugal denominam-se Colónias e constituem o império colonial português”. A Constituição de 1933 irá ratificar este preceito. O regime apresenta-se com parte integrante da herança dos Descobrimentos, o Império é a justificação da missão de Portugal no mundo. Procura-se institucionalizar o Império, o mito da grandeza imperial, aprovam-se publicações que têm a finalidade de sensibilizar os portugueses para essa grandeza imperial. Sucedem-se as conferências e exposições, visa-se alicerçar o conceito de Império como forma de dar credibilidade ao culto nacionalista da Pátria.

O ponto alto destas celebrações será a Exposição do Mundo Português, António Ferro, à frente do Secretariado de Propaganda Nacional, é o manobrador esforçado para pôr em prática iniciativas como as exposições coloniais ou fazer representar a questão colonial em exposições internacionais, como a de Paris, em 1937. As colónias são a questão central da Exposição Colonial Portuguesa, 1934, da Exposição Histórica da Ocupação no Século XIX, 1937, e assim chegámos ao faustoso acontecimento da Exposição do Mundo Português [Vd. foto acima].
Atenda-se ao que Fernando Catroga escreve para distinguir as iniciativas liberais e republicanas das do Estado Novo. Eventos como o jubileu camoniano de 1880 serviram para contestar a decadência e trazer esperança à regeneração. O Estado Novo impunha a ideia de refundação, como escreveu António Ferro na sua célebre “Carta aberta aos portugueses de 1940”, 1140, 1640 e 1940 simbolizavam três anos sagrados da nossa História: o ano do nascimento, o ano do renascimento e o ano apoteótico do ressurgimento. As comemorações anteriores nasceram de múltiplas iniciativas de grupos de cidadãos, de associações culturais, só mais tarde se juntava (ou não o apoio governamental; agora era o regime de Salazar que tomava a iniciativa, definia os programas e precisava as metas que deviam ser alcançadas.

O mundo está em guerra, Franco saiu vitorioso da guerra civil de Espanha, Salazar estabeleceu com ele a aliança peninsular e reforçou a sua arreigada convicção de que a defesa das colónias passava pela manutenção da tradicional aliança com Inglaterra. Por isso, comemorar era regenerar, mostrar progresso, como a autoestrada de Lisboa-Cascais. Propõem-se inúmeras obras públicas e projetos desmedidos para a exposição do mundo português, e Salazar, cortante, sentencia: “Acho de mais. Temos de reduzir. Não vamos supor que pretendemos comparar a obra da Junta Autónoma das Estradas, aliás notável, com os Descobrimentos do Caminho para a Índia”.

Vejamos de seguida como as comemorações de 1940 assentavam como uma luva no orgulho nacional-imperialista.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16598: Notas de leitura (890): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16170: Nota de leitura (845): Estudos Sobre a Economia do Ultramar, por José Fernando Nunes Barata, publicado em 1963 pela Biblioteca do Centro de Estudos Político-Sociais (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
O planeamento socioeconómico pesou no processo político metropolitano e ultramarino. Lê-se este bem condimentado trabalho de Nunes Barata, sentem-se as boas intenções em diversificar produções e exportações, intensificar a industrialização, o autor até vaticina ser uma boa aposta o caju na Guiné e faz referências brandas ao desenvolvimento piscatório. É um estudo que ele elabora em Bissau, data de Novembro de 1962, o Sul já está em subversão, é impossível que o economista não disponha de informações de que se avizinha uma tormenta, e deixa-nos um documento sereno, confiante, nada se passa a não ser a fé naquela aposta do desenvolvimento. Foi assim que aconteceu, quando o estudo foi publicado este projeto estava definitivamente comprometido. Mas é preciso ler tudo, dar atenção a tudo e perceber que a Guiné teve e tem enormes potencialidades para o desenvolvimento e o bem-estar do seu povo.

Um abraço do
Mário


Como era encarado o desenvolvimento da Guiné, à beira da guerra

Beja Santos

Para deter uma informação contextualizada sobre evolução socioeconómica da Guiné, entre o pós-guerra e a eclosão da guerra de libertação, é indispensável reunir várias peças e sobretudo as opiniões disponíveis, perceber o alcance das previsões. Foi nessa perspetiva que li o estudo de José Fernando Nunes Barata publicado em 1963 pela Biblioteca do Centro de Estudos Político-Sociais, trabalha idóneo, documentado, seguramente concebido sem sentir os efeitos da guerra que se pressagiava e que depois se propagou, até destroçar qualquer planeamento fora da custódia militar.

É ocioso determo-nos sobre o que ele escreve quanto a território, população, ambiente social e até realidades económicas, embora neste último aspeto vale a pena uma certa recapitulação: não existia agricultura organizada nas mãos dos “civilizados”, mas havia “ponteiros”, geralmente industriais de água-ardente, muitas vezes e simultaneamente comerciantes. Os produtos de exportação eram o amendoim, o coconote e as madeiras, o arroz, tão exportado na década de 1950, começava a cair a pique. Mas este arroz pesava eternamente, era o alimento privilegiado da autossubsistência. Quanto a madeiras, exportava-se “bissilom”, “mancone”, “pau conta”, “pau sangue”, “pau bicho”, “pau miséria”, “pau incenso”, “pau veludo”, entre outros. Havia ao tempo propostas para um melhor aproveitamento da floresta e sobretudo falava-se no aproveitamento, com caráter industrial, dos subprodutos das florestas. De há muito que a borracha perdera o significado que tivera entre finais do século XIX e começos do século XX. E o autor observa: “A borracha talvez possa constituir uma notável fonte de receita para a Guiné. Não muito longe, na Libéria, a conhecida Firestone explora uma plantação de 80 mil hectares, a que corresponde uma produção superior a 20 toneladas de borracha”. Como prova de que as pescas, por insólito que pareça, tinham um peso inexpressivo nas atividades económicas, basta ouvir a opinião do autor. “Quanto a pesca, parece revestir-se de interesse a execução de um plano de desenvolvimento desta indústria, pois as riquezas de bancos relativamente próximos, recomenda tal desígnio. De resto, a atividade das populações nativas neste setor é primitivo e insuficiente”.

Um soberbo palmar no parque do Cantanhez, 
Tirado do site www.ideiasoltas.no.sapo.pt, com a devida vénia

A indústria apresenta-se como uma grande nebulosa, mas há expetativas quanto à bauxite e ao petróleo, fala-se no contrato com a N. V. Billiton Maatschappij para pesquisar e explorar minérios de alumínio em Angola e na Guiné. Após pesquisas, confirmaram-se depósitos de bauxite na região do Boé e outras, com um teor de minério inferior. Em 1958, a Esso obteve o direito de pesquisar e explorar jazigos de carbonetos de hidrogénio, rescindiu contrato em 1961, o trabalho de Nunes Barata não avança as razões da rescisão. Em termos de import-export, vem aí uma novidade: “A Guiné, como não consome tudo quanto importa, faz a reexportação para os países limítrofes de enorme quantidade de tabaco, uísque e tecidos. Daí o volume impressionante de invisíveis que alimentam as casas de câmbio de Lisboa, que os aproveitam para pagamento de transações com Tânger”.

Para se entenderem as propostas de Nunes Barata, convirá não esquecer que o regime de Marcello Caetano apostara no planeamento como matriz do desenvolvimento, era esse o papel nevrálgico do Estado, tanto na metrópole como no Ultramar. Assim se percebe melhor o esquema de um plano de estudo sobre a situação económico-social da Guiné, mostrar o país no seu relevo, clima, solos, cursos de água, vegetação e fauna, etc; a sua população e o mosaico étnico, alimentação, saúde e ensino, para tomar o poço das necessidades; diagnosticar a ação da população branca para perceber as possibilidades de povoamento; deter um quadro das infraestruturas – todos os tipos de transporte, levantamento do equipamento social e fontes de energia; definir o desenvolvimento agrícola através da investigação científica, da agricultura e os elementos de apoio as programas de desenvolvimento, a silvicultura e as pescas; enquadrar as possibilidades do subsolo, da criação de indústrias agroalimentares, entre outros. E depois definir as condições e política de desenvolvimento económico à luz dos Planos de Fomento já existentes, definir medidas para a existência de elites associadas à política de desenvolvimento, montar uma administração ao serviço desse desenvolvimento, com aparelho estatístico, serviços modernos de assistência técnica (e aí o autor enumera exaustivamente a agricultura, a pecuária e as florestas, mas também as indústrias extrativas e as energias). E tece um apanhado de considerações sobre as quais vale a pena refletir: “No capítulo das despesas sociais justifica-se uma conveniente dotação dos serviços em quadros de pessoal e meios técnicos e o prosseguimento nos pequenos melhoramentos para o bem-estar dos agrupamentos nativos, na política de saúde e assistência e, sobretudo, na instrução pública. Penso que haveria todo o interesse em valorizar o percurso Bissau-Mansabá-Bafatá-Gabu. Esta estrada parece-me a grande linha de penetração para o interior. Por ela circula já hoje o maior trânsito da Guiné. Um segundo trajeto que haveria a cuidar é o de Bissau a São Domingos e Praia de Varela. Justificariam esta atenção não só razões económicas mas ainda motivos de segurança e, sobretudo, turísticos.
A Guiné é uma terra favorecida pelo mar. Aproveitar o dote natural dos rios e dos canais, nos problemas de circulação, será ainda um ato de economia e de inteligência”.

Nunes Barata assina o seu trabalho em Novembro de 1962, depois de enumerar uma criteriosa bibliografia consultada. Estes ideais de desenvolvimento nunca serão postos em prática, a guerra está a chegar, o território ficará desarticulado, Spínola intentará um plano de desenvolvimento, rasgará as estradas à sombra da tal poderosa custódia militar. E quando chega a independência, os dirigentes do PAIGC não podiam ignorar a situação calamitosa em diferentes regiões. Foram voluntaristas, ingénuos e deixaram-se ludibriar por muita gente corrupta, puseram em lugar de responsabilidade gente incompetente. Ao caos da guerra juntou-se o ilusionismo de tudo para a frente. E assim aconteceram as amargas deceções até ao próximo presente.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Junho de 2016 Guiné 63/74 - P16161: Nota de leitura (844): Boticas e beberragens: a criação dos serviços de saúde e a colonização da Guiné, por Philip Havik (Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16021: (In)citações (88): Reflexão sobre o inicio da decadência nacional (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)

1. Texto do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviado ao Blogue em mensagem de 8 de Abril de 2016, subordinado ao título:

Reflexão sobre o inicio da decadência nacional

O texto que segue não é da minha autoria, e o que faço é apenas juntar umas pontas. Também não sou salazarista, por várias razões, embora não possa negar-lhe algumas obras que levou a cabo, de que destaco, apesar de um reduzido quadro fiscal, a recuperação para o património público de empresas como a CRGE, os TLP, e a Carris, que a 1.ª República havia vendido aos ingleses durante o fervor revolucionário e desbaratador. Esta última frase faz lembrar-me de algo que acorre ao meu espírito, que de tão massacrado, não consegue identificar. Estabilizou as finanças, embora mantendo uma economia simplória que marcou uma "décalage" relativamente à Europa.
Quero ainda dizer que eu sou saudosista, e posso esclarecer, que ainda não se me esgotou a memória dos tempos em que Portugal registava progressos, e não tinha nem parecenças com as condições hoje aparentemente disponíveis. Assim, só por grande absurdo de gestão colectiva, é que dispondo de condições o país regride. Constato isso, mas não me atrevo a balbuciar as soluções, porque tenho a noção da minha falta de competência, todavia nunca demonstrada, ao contrário das sucessivas demonstrações de políticos cá da praça, devidamente acolitados por grandes cabeças das economias e finanças, que ao longo dos anos já disseram coisas e o seu contrário. Eles "andem" aí e, aparentemente, de boa saúde, com bons ares, e o dom da palavra fácil.

Vamos ao que interessa:
"A evolução autonómica do ultramar;
Só em desespero de causa e com total desprezo das populações nativas, dos colonos e dos superiores interesses de Portugal se poderia caminhar de imediato no sentido da descolonização outorgada, sem garantias, sabendo-se que os respectivos territórios iriam ser, como foram após a expulsão dos colonos, campos de batalha e as respectivas tribos postas umas contra as outras, avivando-se ódios ancestrais que levaram séculos a fazer esquecer e a superar. Havia antes que estar preparado para o "momento de compromisso negociador", na expressão de Salazar. Era por isso que Salazar fora bem claro ao dizer na entrevista à revista Life, de Maio de 1962; "O facto de um território se proclamar independente é fenómeno natural nas sociedades humanas e, por isso, representa hipótese sempre admissível, mas em boa verdade não se lhe pode nem deve marcar prazo". No entanto ia-se progredindo, até constitucionalmente, no sentido autonómico.
(Revista Ultramar, n.º 11, 1963 n.º 43 e 44 colaboração do autor, Álvaro da Silva Tavares).

Antecipar a descolonização seria um crime tanto maior quanto, se para os outros a expansão ultramarina não passou duma ambição de engrandecimento e de rivalidade entre eles, para Portugal ela constituiu a base da própria independência nacional, o que, por isso mesmo conduziu ao já referido relacionamento entre colonizadores e colonizados. Lembra ainda o Dr. Amorim de Carvalho "o inegável progresso social e cultural na auto-determinação da Guiné portuguesa, de Angola e de Moçambique, que se imprimiu durante o governo de Marcello Caetano, o qual levaria necessariamente ao resultado seguinte; far-se-ia um pouco mais tarde o que o General Spínola queria fazer mais cedo, o que os militares estupidamente impediram". E desenvolvendo o tema, argumenta que "uma independência antecipada pela qual a maioria negra tribal vota, é, no seu íntimo, a liberdade das suas crenças e tradições tribais". (...) Assim, da aplicação falsa do voto democrático numa determinação decidindo a independência, passa-se a uma nova fraude: a que faz prevalecer a cor da pele sobre a noção democrática e humana da terra de todos (Jacques Binet)".

E Amorim de Carvalho, depois de recordar os três caminhos possíveis (simultâneos ou sucessivos) para a auto-descolonização - a mestiçagem, o crescimento demográfico da etnia branca e a promoção da evolução das etnias pela formação de uma consciência nacional na multirracialidade, ajudando-as a realizar a síntese das suas tradições e da contribuição ocidental - demonstra que a tese de Marcello Caetano - a autonomia progressiva - se ajusta à da auto-descolonização (pouco importa que não tenha usado o termo), tendente para uma unidade nacional, tal como a via Norton de Matos. (...) Chegado que fosse esse momento, que efectivamente se verificou com o derrube do muro de Berlim e a derrota, tanto do ponto de vista político como económico da União Soviética, a negociação tornar-se-ia viável. (...) Daí decorreria o "momento negociador" - ou o resultante da guerra por tentação da União Soviética, ou o que decorreria da paz por derrube do regime comunista. Em qualquer caso, era esse o momento, se outro não surgisse antes, por que haveria que aguardar, "aguentando". Trágico foi que Portugal não tivesse sabido ou podido esperar pelo"momento de compromisso negociador"."
Extraído de "A Entrega do Ultramar Português", de Álvaro da Silva Tavares, que foi Governador da Guiné e Governador-Geral em Angola.

Aqui vos deixo estas ideias para conhecimento da Tabanca, e para eventuais reflexões sobre a matéria, condições muito diferentes das que são apresentadas para justificar a descolonização e os tumultos iniciados em Abril/74, que persistem até hoje e não se lhes vislumbra o fim.

JD
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16005: (In)citações (87): Breve interpretação sobre a entrega do Ultramar Português (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)