Butelo com casulas (Trás-os-Montes), da Chef Alice Carneiro
Favas suadas (Lourinhã / Estremadura), da Chef Alice Carneiro, segundo receita de Maria da Graça (1922-2014)
1. O que é que vamos comer hoje ?...
Obrigados a ficar em casa, com os restaurantes todos fechados, por todo o lado, devido à pandemia do "cornovírus" [, novo coronavírus COVID-19...] , esta deve ser uma pergunta que muitos dos nossos leitores começam a fazer, compulsiva e repetidamente...
E os bens essenciais, nomeadamente o pão, os iorgurtes, as frutas,os legumes, o peixe, a carne...começam a escassear no frigorífico e na despensa...Nem todos tiveram tempo (nem dinheiro...) para encher as "arcas frigoríficas", preparando-se para o "estado de emergência", que nos foi imposto, ironicamente, no "Dia do Pai", 19 de março...
É uma pergunta complicada (e que vai começar a ser mais angustiante, nos próximos tempos...) para os pais, que têm ainda filhos menores em casa, para os casais idosos (que não podem nem devem sair de casa, nem sequer para fazer compras...), para quem vive sozinho, mas também para os heróis dos dias de hoje que cuidam de nós e nos protegem (a começar pelos profissionais do SNS, proteção civil, forças de segurança, etc.)... Enfim, uma pergunta complicada para a generalidade dos portugueses e das portuguesas em "tempo de guerra"...
Haveremos de "sair desta"... Mas até lá, é tempo de começar a puxar pela imaginação e "fazer das tripas coração"... Muitos de nós nascemos na "época da fome"... Refiro-me aos nossos pais (nascidos por volta dos anos 20 do séc. XX) mas também à nossa geração, a nós, ex-combatentes da guerra colonial (nascidos nos anos 40). Quem de nós, crianças, bebia leite de vaca, pasteurizado ? E quem comia queijo ? E os iorgutes ? E os ovos ? E o pão de trigo ? E o peixe fresco, tirando a "sardinha para três" e o "bacalhau a pataco" ?... Par não falar das "guloseimas"...
Lembro-me do meu pai contar que, quando regressou de Cabo Verde, em setembro de 1943, depois de "vinte seis meses a engolir pó", no Lazareto, Mindelo, ilha de São Vicente, encheu a barriga de uvas: estávamos em plena época das vindimas!...
E nós próprios, na Guiné, durante a nossa "comissão de serviço militar"... A pergunta "o que é que vai ser hoje o tacho?", era recorrente, depois de uma noite emboscados, ou de sentinela, ou no regresso de um patrulhamento ofensivo, ou no decurso de uma operação no mato, de dois ou até três dias, a "rapar fome e sede"...
Sonhávamos, acordados, com água, com comida...E no quartel, vingávamo-nos com os petiscos... Quem tinha messe, como os oficiais e sargentos, sempre comia um pouco melhor do que a generalidade das praças... A verdade é que se gastava uma boa parte da energia a resolver o angustiante problema da "bianda": onde comprar (ou "roubar"...) um leitão, um cabrito, uma galinha, uma vaca ?... Um ou outro caçava ou arranjava caça: lebres, galinhas do mato, gazelas... Que o peixe da bolanha, esse, era intragável...
Estas lembranças vêm.nos à baila, agora que a nossa dieta alimentar é condicionada pela falta de recursos, como os "frescos"...tal como na Guiné há 50 anos atrás. A época da lampreia e do sável já se foi, porque não podemos ir comê-las aos sítios do costume... Mas há "alternativas"...
Talvez por isso não seja má ideia de passarmos a comer também "com os olhos"... Daí as duas "sugestões" que aqui hoje deixamos, dois pratos da Chef Alice Carneiro, natural de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses:
(i) Favas suadas, segundo receita da minha mãe, Maria da Graça (1922-2014), que a Chef aperfeiçoou e aprimorou;
e (ii) Butelo com casulas, um típico prato do nordeste transmontano, que eu acho apropriado para combater o "cornovírus"...
Confesso que as "favas suadas" são um dos meus 10 pratos favoritos... Um pequeno segredo: as favas devem ser frescas, compradas na hora... mas só descascadas um hora antes de irem para o tacho... A receita é conhecida, não veio entrar em pormenores... Estas foram compradas no passado sábado, dia 14, no mercado municipal da Lourinhã... a última vez que saí para ir às compras... Só as fizemos a meio da semana, e deram para três refeições!... No dia seguinte, continuam a saber tão bem ou melhor do que no dia em que são feitas... O meu filho, que me veio "rebastecer" com alguns géneros (e com quem falei à distância de 10 metros, da varanda do 3º andar para a rua...), ainda levou para Lisboa duas doses...
Já o "Butelo com casulas" eram, até há uns anos, uma novidade para mim... E hoje, confesso, sou também fã...
Como explicar o que é o butelo e as casulas ? Nada melhor do que ir ao dicionário:
butelo | s. m.
bu·te·lo |ê| (origem obscura)
substantivo masculino
[Portugal: Trás-os-Montes] [Culinária] Enchido grosso, feito com carne e ossos partidos do espinhaço e das costelas do porco, envoltos na bexiga ou no bucho do animal.
"butelo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/butelo [consultado em 23-03-2020].
casula | s. f.
(latim casula, -ae, cabana, túmulo, diminutivo do latim casa, -ae, cabana, casebre)
substantivo feminino
1. [Liturgia] Vestimenta sem mangas nem gola que os padres põem sobre a alva e a estola. = PLANETA
2. Pequeno vão.
3. Poro.
4. [Marnotagem] Cadeirinha de marnoto.
5. [Regionalismo] Vagem verde de feijão.
6. [Portugal: Trás-os-Montes] Vagem seca do feijão. (Mais usado no plural.)
7. [Portugal: Trás-os-Montes] [Culinária] Vagem de feijão, colhida ainda verde e cortada em pequenos pedaços que secam ao sol e que, depois de demolhados, são cozidos e usados na alimentação (ex.: butelo com casulas). [Mais usado no plural.]
"casula", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/casula [consultado em 23-03-2020].
2. Eu sei que estes são produtos sazonais ou regionais e nem sempre fáceis de obter: por exemplo, o butelo e as casulas. Mas não quis deixar de mandar estas duas sugestões para os nossos "vagomestres' que, sem ofensa, continuam falhos de inspiração ou, mais provavelmente, andam preguiçosos... Afinal, tão "cansados da guerra" como os "operacionais"...
Eu sei que "vagomestre" não é Chef... De qualquer modo, são mais dois pequenos contributos para a construção do roteiro gastronómico da Tabanca Grande...
Eu sei que "vagomestre" não é Chef... De qualquer modo, são mais dois pequenos contributos para a construção do roteiro gastronómico da Tabanca Grande...
Os tempos que estamos a viver não são fáceis: lá teremos que voltar a comer "estilhaços de frango congelado" e "esparguete de cavala"...
De qualquer modo, procurem alimentar-se bem (,adaptando a "dieta mediterrânica" às circunstâncias), e fazer algum tipo de exercício (na varanda, na sala, na garagem...), e sem nunca descurarem a proteção contra o "cornovírus"...
CORONAVÍRUS COVID-19
Vídeo da OMS- Organização Mundial da Saúde que explica como surgiu o vírus, como se propaga e quais as medidas de proteção. Legendado em português. Duração: 4' 49''. Alojado no Yiou Tube > Direcção-Geral de Saúde________
Nota do editor:
Último poste da série > 5 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20527: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (2): o elogio do arroz de lingueirão do "100 Pratus - White Sand Club", restaurante e bar de tapas, Praia da Areia Branca, Lourinhã