Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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domingo, 28 de outubro de 2007
Guiné 63/74 - P2225: Antologia (65): Tribulações de um balanta, um conto de Fernando Rodrigues Barragão (1951) (A. Marques Lopes)
BARRAGÃO, Fernando Rodrigues
Tribulações de um balanta / Fernando Rodrigues Barragão
In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.- vol. 6, nº 22 (Abr. 1951), p. 399- 404
1. Mensagem do A. Marques Lopes, de 25 de Outubro:
Caros camaradas:
Neste período em que a guerra colonial e as guerras de libertação das
ex-colónias portuguesas têm estado em algumas parangonas ("Prós e Contras" e "A Guerra"), em altura em que muitos, e jovens, já viram "As Duas Faces da
Guerra", tão especial para nós que estivemos na Guiné, dou-vos a conhecer
este texto, que muito me espantou.
Na Guiné, sabemos, havia a Casa Gouveia (CUF), que explorava os seus
naturais na mancarra e no coconote, os comerciantes libaneses (Taufik Saads
e outros...) que os exploravam pelo comércio. Mas este texto fez-me lembrar
o Landorf, nazi fugido da Alemanha, que tinha um comércio em Geba e actuava como o "caixeiro" deste texto.
E o meu grande espanto vem do facto de isto ter sido publicado no "Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa", Volume VI, nº 22, de Abril de 1951, relatando
as agruras de um balanta esfaimado e a forma como um comerciante branco se aproveitou disso para o explorar. Frisa a submissão dos mais velhos, por
força da tradição secular, e os desejos de liberdade deste balanta jovem
face à exploração a que era submetido.
O autor é Fernando Rodrigues . Do descobrimento aos dias de hoje. Encontrei o texto no blogue Senegâmbia (Boletim Cultural da Guiné-Bissau e regiões vizinhas - Senegal, Casamansa, Gâmbia, Guiné-Conakri e Cabo Verde) que recomendo.
Abraços
A. Marques Lopes
2. Tribulações de um balanta, por Fernando Rodrigues Barragão
Com o olhar morto, sem simpatia nem rancor, olhou a companheira estendida a um canto.
Acabara de sová-la. De sová-la ferozmente, numa ira súbita que não explicaria. Nem o álcool pode ser acusado. Há muito que não bebe. Onde o dinheiro?
Mas sovara-a. Por nada. Talvez porque a fome o aperta num círculo de fogo. Talvez porque a desordem que lhe vai no espírito se sinta acalmada depois de uma violência qualquer.
Ele sabe que o arroz, todo o arroz da sua colheita farta, se esgotou de repente. Sabe porque o não vê e sente no estômago a sua falta. Mas não compreende.
Por mais voltas que dê, pensando e pensando, não compreende. Servindo-se de pequeninas pedras, fez as suas contas. Mas, a meio já a confusão era tanta que as repetiu. E foi repetindo, vezes e vezes, até desistir.
Só então, entrando em casa, abruptamente sovou o primeiro ser que encontrou.
Os gritos da mulher, rasgando a quietude da «morança» e ecoando longe, mais o enfureceram. E a impunidade - que os vizinhos são sempre surdos - deu-lhe asas e forças.
E agora, olhando aquele corpo estendido, parou. Parou e ficou atónito sem saber o que fazer das mãos calosas que o escaldam. Rosnou qualquer monossílabo a meia voz e saiu.
Cá fora, o sol, a pino sobre a tabanca, empresta-lhe bafos de forno. E põe centelhas em todas as coisas. Pinta de cores gritantes as raras ervas, o colmo fumegante, o chão poeirento e vermelho. Longe, nas «bolanhas» desertas, flutuam vapores ténues e ágeis.
Bovinos famintos e sedentos mugem desoladamente. Um porco, vestido de crostas, refocila o chão ressequido. Crianças nuas amodorram nas raras sombras. Voejam, no ar parado, moscardos zumbidores. Nada mais.
Sob o sol impiedoso, a tabanca tem o ar fanado e triste das coisas mortas. Das coisas irremediavelmente mortas. Uma dor morrinhenta, constante e má, aperta-lhe o estômago e provoca tonturas.
Por momentos, uma indecisão suave e embaladora, leva-o a vacilar. Depois, um repente atira-o para a vereda, dura de muitos passos, que leva à loja. O caixeiro, gordo e vermelho, fuma tranquilamente. Tem uma camisa leve, de estreitas riscas azuis, enxovalhada e suja, e barba de muitos dias.
Quando Clodjê entrou, atirou-lhe um olhar indiferente e interrogou-o com um gesto de cabeça, violento como uma agressão. Clodjê, as mãos apoiadas no balcão, um esgar de dor a contorcer-lhe o rosto ossudo, não respondeu de pronto. Passou o olhar pelas prateleiras desconjuntadas, pelos panos garridos, por toda a loja.
Depois, de jacto, como se procurasse ver-se livre das próprias palavras, atirou:
- Arroz. Empresta. A fome é muita.
O outro teve um sorriso calmo. Chupou, deliciado, uma fumaça funda e semicerrou os olhos numa concentração grave.
- Já não empresto mais. Acabou. Acabou tudo.
Clodjê demorou a perceber. Apenas as últimas palavras lhe ficaram a martelar os tímpanos, repetidas, até ecoarem, surdas e átonas, no cérebro nebuloso.
- Fome é dor cansada. Tem paciência ...
E a sua voz chorosa, suplicante, tinha o som morno de melodia estranha. E aflitiva.
De novo a dor, funda e funda, roía-o. As pernas, que a fome tornara frágeis, tremiam. Todo ele tremia no receio da recusa, na perspectiva angustiosa de ter de internar-se no mato para devorar o que quer que fosse.
Foi só quando deitou a ponta pela janela que o caixeiro ditou as condições. Sem pressas. Sem interesse. Eram uns chatos. Arroz, arroz. Que diabo faziam às brutas colheitas? Vendiam ? Pagavam os empréstimos ? Bom. Mas porque não lavravam mais ? Sim, porque não lavravam? Não tinham? Lérias! Ralaços! Bêbados!
Resmungava, sonolento e acalorado, arrastando os chinelos de manufactura indígena. E, cínico, saboreava o seu poderio sobre aquele pequeno feudo que esmagava. Repetiu as condições. Pagamento a dobrar, uma galinha de gratificação por cada «bushel» [1] de arroz, promessa de compra de aguardente.
Clodjê hesitou. Voltava a ter de lavrar só para pagamentos ... Recuou até à rua, procurou pedrinhas, embrenhou-se em cálculos. Para comer e semear ... duas, quatro ... talvez vinte «bushels». As vinte pedrinhas comprimiam-se sob a sua mão trémula. Contou mais vinte e juntou-as. Era já um montículo considerável que o tornava atónito e derramava calafrios nas costas em arco.
Devia ainda - recordou de súbito - a manta que comprara nas chuvas para não esticar de frio. Mais duas pedras engrossaram a soma. Teria de vender algum, para arranjar dinheiro. Quanto?
Balançou, na mão em concha, quatro ou cinco pedras. Olhava, besta de pasmo, para o caixeiro sorridente e para a sua mão hesitante. Depois, atirou-as para junto das outras. Passou as mãos no monte e olhou em volta. Tinha o ar torvo e pânico de animal encurralado. O caixeiro ria e o pretito, praticante de balcão, gargalhava com pequeno gritos sincopados e histéricos.
Clodjê fitou-o. Era um garoto enfezado e petulante, rescendente a perfume. O riso alvar e ruidoso, doeu-lhe. E uma raiva funda, dolorosa como a fome, mais dolorosa que a fome, cresceu e toldou-lhe o olhar. Os seus músculos, longos como cordas, desenharam-se sob a pele suada. Um formigueiro estranho, como coceira de sarna, esquentou-lhe o sangue em ondas grossas que subiram até à garganta.
Depois, inexplicavelmente, deixou escapar um riso gutural, forçado, que mais parecia um soluço. Resolveu-se a contar as pedras. Eram muitas. O desânimo tomou conta do seu corpo, machucou-lhe os ombros e atirou a cabeça de encontro ao peito opresso.
Não. Não dava jeito. Mal acabasse a colheita ficaria, de novo, a braços com a fome. Para as chuvas ainda faltava um tempo comprido. Luas e luas viriam antes que chegasse o tempo da sementeira. E todos os dias tiraria arroz para comer. Sabe que é assim. Quem passa fome com arroz em casa?
Quando a «bolanha» tivesse água, já pouco haveria para semear. E só para pagamentos eram aquelas pedras todas. Não. Não dava jeito!
O caixeiro viera até à porta e acendera outro cigarro. E ficou-se a sacudir a caixa de fósforos, compassadamente, com um solo de massas em rumba idiota. Clodjê dispersou as pedras com um pontapé distraído e deu alguns passos. Mantinha ainda o queixo colado ao peito. Os braços tombados balouçavam rente ao corpo, ao abandono.
No largo, o sol irisava o chão de pequenas centelhas faiscantes. E a tal ponto, que dir-se-ia que o solo havia sido tauxiado de seixos. O ar, morno. e irrespirável, vinha em lufadas. Um cajueiro, em frente, parecia vergar sobre o braseiro.
O rio, ao fundo, corria calmo, barrento e sujo, sob o mangal enorme e compacto. Duas garças olhavam as águas estupidamente. Sob o peso da perspectiva atroz, Clodjê caminha quebrado, os nervos tensos, o espírito alvorotado e confuso. Nos olhos parados, uma luz baça de melancolia. E fome!
Mas não. Não pode receber o empréstimo. Ficará, daqui a pouco quase sem semente. Terá uma colheita pobre, de míseras espigas que a loja absorverá. E aquela história das galinhas, dadas assim sem mais nem quê, turva-lhe, mais e mais, o raciocínio lento e emaranhado.
Sob o cajueiro imóvel, estaca de chofre, agarrado por uma ideia súbita que o sacode. E se, de noite, entrar no armazém? Deve ser fácil. Os portões enormes, seguros por um cadeado pequeno e ridículo, serão fraco obstáculo. Mas logo, volumoso e quente, cresce um receio. E a tal ponto o sufoca - esse receio pueril.- que sacode, angustiado, a cabeçorra enorme. O lojeiro queixar-se-á no Posto. E os trabalhos virão. Ainda há pouco pediu o empréstimo. Será o primeiro a ser procurado, ele sabe. E teme.
O lojeiro aumentará - tem a certeza - a quantidade do roubo. Quando o Encanha roubou, uma vez, dois cabazes de arroz, aquele «branco» cachorro foi ao Posto dizer que lhe faltavam dois sacos. E Encanha, que confessou, pagou mesmo dois sacos. O Chefe não acreditou na história dos dois «balaios»[2]. Ladrão não merece confiança. Ninguém mais ouve suas razões.
E se... Ah! Assim, sim. Porque só agora se lembra desta saída? Os olhos brilham. Os seus músculos relaxam-se. Uma avalanche de calma derrama-se sobre ele. Deixa de notar a luz hílare da tarde, as crianças que amodorram, o calor asfixiante que esmaga os homens e as coisas.
Agora, só tem olhos e sensibilidade para a ideia que lhe surgiu e se impõe. Um riso sereno rasga-lhe o rosto cansado. Irá ao Posto queixar-se do lojeiro. Contará aquela conversa das galinhas e da «cana» [3] . Não se deixará roubar. O Posto fará justiça. Quem sabe se até aquela história do pagamento a dobrar não é malandrice?
Pronto, irá ao Posto. Pelo caminho do mato, andando teso, chegará ao cair do sol. Exultava. De soslaio, olhou a loja. Pachorrento, o caixeiro coçava o peito cabeludo e bocejava alto, roído de preguiça. O aprendiz. de olhos vermelhos, efeminado e parvo, afagava a carapinha perfumada e piolhosa.
Sente que os odeia. Com ódio frio e lúcido que tem anos e anos e que geraçôes acumularam. Tem agora o passo rápido e elástico, o andar felino das horas boas.
Sob a calabaceira [5] enorme, dormitam quatro «grandes» [4]. Urna necessidade imperiosa de dar largas à íntima satisfação, leva-o até eles.
Sincopadamente, narra a ideia feliz e o intento inadiável. Riem-lhe os olhos, de novo brilhantes, e a boca sequiosa. Todo ele se distende e crispa em gargalhadas sonoras que anavalham a paz morna da tarde.
Mas os velhos não acompanham a sua alegria ruidosa. Ficam a olhá-lo, incrédulos e pasmados, levemente curvados em atitude hostil. O velho Ranga Inteque, indolentemente - que o calor pesa nos homens e esmaga-os - sacode a cabeça, branca e branca como se, sobre ela, houvesse poisado toda a sumaúma que o vento arrancou dias atrás, E baixo, quase em murmúrio - que o silêncio fechou o mundo e deu à tabanca o ar triste das coisas mortas - sentencia:
- Que tem o Posto com a tua vida? Branco de loja é «branco» mau, tu sabes ? Não, tu não irás.
Nada mais. Recuou para o silêncio, fechou os olhos e, serenamente, aspirou o tabaco que picara. Clodjê olhou-o atónito. O velho parecia ignorá-lo. Bem encostado ao tronco da árvore, fechara-se num mutismo de morto. Olhou os outros. Guardavam também um silêncio opressivo e tácito. Como se dormissem, tinham as pálpebras caídas, o corpo imóvel, a respiração compassada. Lentamente, recompôs-se da surpresa. Teve um leve erguer de ombros, e seguiu.
Os velhos não o compreendiam. Não podiam sentir a sua sede de libertação, a sua ânsia de .justiça. Pesavam, neles, séculos de fatalismo e de muda resignação. Não se habituariam, jamais, a contar com as autoridades.
Entrou em casa, atirou para os ombros a manta garrida, agarrou no terçado [6] e saiu de novo. A tarde em meio, animou-o. Chegaria antes da noite. Atravessou a tabanca, contornou a vedação e rumou direito às «bolanhas». Depois delas, quando passasse a prancha sobre o rio, a vereda abrir-se-ia no matagal.
O restolho queimava-lhe os pés. Dir-se-ia que, momentos antes, uma queimada gigantesca varrera a planície dourada. De longe em longe, minúsculos tufos de vegetação raquítica e amarelada faziam negaças aos bovinos infelizes. Do rio negro de lama subia um gemer monótono de remos.
De súbito, uma ameaça de vómito levou-o a contrair-se. Ondas de fogo, volumosas e coleantes, sobem-lhe do estômago revolto e enovelam-se na garganta. Em momentos, o sofrimento cavou sulcos profundos e estampou, nos olhos sem brilho, o estigma da derrota.
Acocorado, aperta a mãos ambas a cabeça que parece estalar a cada pancada que o peito recebe. Por momentos, tem a impressão que o velho Ranga, sereno e indiferente, está mesmo ali, falando naquela voz ciciada e fria que todos acatam. Sente agora que é mau escutar os «grandes».
O Posto é longe, muito longe, lá do outro lado do mato. Não chegará. Nem hoje. Nem nunca. O velho disse. E ali a dois passos, quase junto de sua casa, os armazéns abarrotam. Todos foram à loja e aceitaram. Nos outros anos foi ele também? Porque não aceitar agora?
Vida de negro é vida cansada. E lojeiro branco mau ... Os armazéns estão perto. Mas talvez o caixeiro já não o atenda. Esquecido de tudo, num esforço violento que arranca lágrimas, retrocede. E caminha agora aos sacões, como um cavalo mal ferrado em rumo à manjedoura. Uma névoa translúcida parece aureolar as copas e as casas, como se o mundo se houvesse fechado numa rodoma de vidro levemente embaciado. E uma pontada aguda e cáustica raspa-lhe o estômago.
Quando, trôpego e sem fôlego, entrou no estabelecimento, o caixeiro sorriu e teve uma piscadela cúmplice para o negrito perfumado e imbecil que o acolitava.
Fernando Rodrigues Barragão
_________________________
Notas de A.M.L. / L.G.:
[1] O “bushel” é uma medida de capacidade usada para os cereais, equivalente a, mais ou menos, 35 litros; ou, como medida de volume, equivalente a cerca de 27 quilos. (AML)
[2] O “balaio” é um cesto de palhinha ou verga. (AML)
[3] Aguardente de cana (LG)
[4] Homens grandes (LG)
[5] Baobá, embondeiro (LG)
[6] Uma espécie de espada curta e larga; catana (LG)
quarta-feira, 24 de janeiro de 2007
Guiné 63/74 - P1458: Bombolom XV (Paulo Salgado): Contos mandingas, de Manuel Belchior, ou a sabedoria dos guineenses
Guiné > Região do Oio > Farim > Olossato > O Alferes miliciano Salgado, em cima do capô dum GMC, e devidamente assinalado por um círculo a vermelho. Fazia parte da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), e era seu comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé. O Olossato fazia parte do chão mandinga.
Foto: © Paulo Salgado (2005). Direitos reservados.
Mensagem do Paulo Salgado (1), ex-alf mil Alferes miliciano da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que teve como comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé, hoje coronel na reforma (2)
Meu Caro Luís Graça,
Camarada e Tertuliano:
Não é demasiado: os nossos contributos - de todos os tertulianos, com muitos e diferentes pontos de vista - não existiriam, não cresceriam, não ganhariam voz e dimensão, não fora o teu trabalho, a tua paciência, a tua sagacidade, o teu sentido de independência face às saborosas e dignas diferenças de ideias sobre a guerra (ultimamente tem sido produzida matéria de discussão, onde eu pretendo dar a minha achega, como já fiz anteriormente, pelo menos uma vez).
Quero - uma vez mais (põe isto blogue, por favor) - dar-te um abraço de muita consideração.
Comecei assim este meu contributo - que, julgo ter esse direito, deverá a continuar-se a chamar bombolom - para, uma vez mais, e da minha parte dar destaque a aspectos que, tendo muito que ver connosco (ex-militares na Guiné), se afastam, a maior parte das vezes, do que foi a guerra, como a vivemos, como a julgámos e julgamos, hoje.
O meu contributo de hoje é trazer uma história contada pelo historiador e cientista (por que não?!) Manuel Belchior, que escreveu várias obras sobre África e, em especial, sobre a Província da Guiné (era assim, lembrais-vos todos).
A sentença da lebre ajuda-nos a compreender, através da intervenção de animais e humanos (em comunhão de linguagem e de partilha de dúvidas) como os homens se comportam, como existem, em toda a parte, em qualquer latitude ou longitude, os ladinos, os malteses, os indiferentes, os acomodados, os sacrificados.
Sendo possível publicá-la, seria interessante, pois serviria para nós meditarmos um pouco sobre a natureza humana, e, em especial, relembrarmos como é grande a alma dos guineenses, ou dos alentejanos, ou dos transmontanos (que sei eu?) na sua sabedoria popular.
Paulo Salgado
PS - Voltaremos a contos e estórias (de guerra, serão algumas)
_________
A sentença da Lebre
In: Contos Mandingas, de Manuel Belchior (1971) (3)
(com a devida vénia, ao autor e à editora).
Certo crocodilo abandonou as margens do rio em que habitava e resolveu partir em guerra contra os animais da floresta. Porém, bem depressa viu quão infeliz havia sido a sua decisão e quão pouco preparado estava para viver e lutar num meio que não era o seu, pois somente por milagre escapou de ser reduzido a cinzas por uma grande queimada e, ainda meio tonto e chamuscado, estava a ser atacado por um bando de jagudis (*) que não lhe poupavam as sua valentes bicadas, quando foi salvo por um moço pastor ao qual angustiosamente pediu:
- Por quem és, tira-me deste lugar onde a morte me espreita e leva-me para o rio de onde nunca devia ter saído. Anda, faz-me esse favor, que te serei eternamente grato.
- De boa vontade o faria – disse-lhe o moço – se isso não fosse tão perigoso para mim. Agora que te vês em perigo, pedes com muito bom modo e tudo prometes; mas que sucederá, quando chegados ao rio, eu te soltar, ficando, assim, completamente, à tua mercê?
O grande lagarto lamuriou, afirmando que isso que isso era impossível, que não tinha tanta maldade e ingratidão, e de tal maneira o medo da morte o tornou eloquente e o fez parecer sincero, que o rapaz, comovido, se deixou convencer. Por sugestão do próprio crocodilo, o pastor amarrou-lhe as mandíbulas com uma corda feita de casca de árvore, e ligando-lhe solidamente o corpo a uns paus, pô-lo à cabeça e assim o transportou.
Quando atingiram as margens do rio e o rapaz se preparava para o depositar no solo, o crocodilo pediu-lhe que entrasse na água porque o seu estado de fraqueza era tal, que não poderia, por si só, transportar-se até lá. O moço concordou e, ao dar-lhe a água pelos joelhos, quis parar, e novamente o crocodilo lhe pediu que fosse um pouco mais longe até a água dar-lhe pelas coxas e também mais uma vez o pastor lhe fez a vontade.
Quando, por fim foi descarregado e se viu completamente solto, com as mandíbulas desamarradas e a meio do rio onde as vantagens eram todas suas, o jacaré agradeceu efusivamente ao rapaz o enorme favor que lhe prestara; mas disse-lhe que, apesar de tudo quanto lhe havia prometido, ia comê-lo porque devorar as pessoas e animais que estavam ao seu alcance era uma lei natural a que não podia faltar sem incorrer no desagrado dos seus antepassados que nunca tinham feito outra coisa. Decerto dissera que pouparia o seu salvador – mas que promessas não se fazem quando se está à beira da morte?
Bem argumentou o pobre pastor, falando de injustiça, mas o crocodilo não saía da sua e, certo que todos compreenderiam que o levava a obedecer a uma lei fatal que não lhe deixava margens para sentimentalismos, aceitou a proposta do rapaz para que fossem ouvidos os três primeiros seres que chegassem ao rio.
- Se todos forem da tua opinião – dizia o pastor – então terei de confessar que fui um parvo e a culpa de ser comido é inteiramente minha.
O primeiro animal que veio beber água ao rio foi um cavalo. Ouviu atentamente o que lhe disseram as duas partes em litígio, e por fim, sentenciou:
- O rapaz não tem razão; não há promessa que valha quando ela vem contra um costume que sempre existiu e há-de existir. É da natureza do crocodilo comer os animais que puder. E dito isto, foi muito tranquilamente pastar.
A seguir apareceu uma velha que, depois de informada do que se passara, disse:
- Como ousas tu, rapaz, falar de injustiça e de ingratidão? Pois não é verdade que todos os homens são uns ingratos? Olha para mim e vê como estou mal vestida e maltratada. No entanto, já fui nova e bonita e o meu marido prometeu que gostaria sempre de mim. Mas agora, que tomou novas mulheres, não me liga a menor importância (**). Se tu chegares a casar, serás como ele. Portanto, como os homens não dão mais valor às promessas que fazem do que o crocodilo à sua, a minha opinião é que deves ser comido.
Finalmente surgiu a lebre. O rapaz, amargurado pelos pareceres anteriores, quando acabou de expor a questão, disse:
- Tu és o último dos três seres que consultámos e também a minha última esperança. Os outros dois deram razão ao crocodilo e disseram que aquilo que eu penso ser uma ingratidão é coisa perfeitamente natural. Diz-nos a tua opinião.
A lebre ouviu muito bem aquilo que ambos disseram, mas afirmou que nada entendera porque o seu ouvido já não era bom dada a sua avançada idade. Deste modo, se quisessem que ela pudessem julgar com segurança, tornava-se necessário virem até à margem. Assim fizeram, e a lebre, depois de ouvir novamente a exposição do caso, e antes de entrar no fundo da questão, recusou-se a acreditar que o rapaz tivesse podido transportar um crocodilo tão grande como aquele desde a floresta até ao rio. A menos que visse com os seus próprios olhos como o caso tinha sido possível, ela pensaria que estavam a rir-se de si. Se é facto que dava maçada fazerem novamente a caminhada até à floresta, ela contentava-se ver como o moço pudera pôr o crocodilo à cabeça sem que ele escorregasse.
Então, tanto o jacaré como o rapaz se prestaram a uma pequena demonstração em que o primeiro foi novamente amarrado e posto nas melhores condições de ser transportado.
Quando viu o anfíbio bem ligado e à cabeça do moço pastor, a lebre perguntou a este:
- Há algum tabu a respeito da carne de crocodilo? (***) Vocês gostam dela e costumam comê-la?
- Não existe nenhum tabu a tal respeito e todos nós gostamos dela.
- Então estou a ver que também para ti é uma lei natural comer o jacaré. Desobedeceste a ela por bondade quando na floresta o tiveste à tua mercê, e ainda por cima o salvaste. Se agora que ouviste as razões desse velhaco, que aumenta a sua ingratidão fazendo-a passar por coisa natural, ainda o poupares, deixarás de ser bom para seres simplesmente um imbecil. Já que ele voltoua estar em teu poder, leva-o para casa e come-o.
__________
(*) Ave de rapina muito conhecida em toda a Guiné, aparecendo nas povoações onde é poupada e até protegida porque faz desaparecer a carne dos animais em decomposição – aqui para nós, Lucinda: vi com os meus olhos, os jagudis comerem as placentas lançadas ao terreiro descampado do Hospital de Bissau!!! – não se admire.
(**) A mulher deste conto apresenta aqui uma queixa muito vulgar entre as esposas dos polígamos (os muçulmanos, os animistas, são polígamos.
(***) Alguns clãs não podem, por motivos religiosos, matar nem comer, o jacaré. Daí esta pergunta da lebre.
NOTA: A lebre representa, em muitas partes da África ocidental, a esperteza, a inteligência, a malícia salomónica, de resolver os assuntos.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. último post do Paulo Salgado: 11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani
(2) Sobre o Mário Tomé, vd. o seguinte post:
UDP > Textos > Guerra Colonial > Trocando Umas Ideias Sobre a Guerra Colonial, Mário Tomé, 29 de Setembro de 2003 (artigo publicado em Público de 29 de Setembro de 2003)
(...) "Grosso modo, Portugal, com 10 milhões de habitantes, fez um esforço de guerra em África cerca de nove vezes superior ao dos EUA, no Vietname, com os seus 250 milhões de habitantes. Portugal mobilizou para a guerra colonial mais de 800 mil jovens, teve 8 mil mortos, 112.205 feridos e doentes, 4 mil deficientes físicos e estima-se que cerca de 100 mil doentes de stress de guerra. 40% do OE destinava-se á Defesa. A isto há que acrescentar a sangria de milhão e meio de emigrantes entre 60 e 74.
"A Guiné estava perdida, reconhece o nosso historiador, ao considerá-la um mini-Vietname" (...)
(3) Manuel Belchior: Contos mandingas. Porto : Portucalense Editora. 1971. 336 pp. Vd. sítio Memórias de África. (Colecção Ultramar).
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