Fotos (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
EXtremadura(s)
por Luís Graça
1. Casas caiadas, paradas, o silêncio escorrendo, liquefeito, pelas paredes; nas águas furtadas já não dormem as criadas e na antiga praça do paço da rainha, ah!, já não se ouve o frufru das sedas, corroídas pelo bicho da traça.
2. “Esquecei o que vedes”, diz um "aviso ao povo", apregoado pelo almotacé da cidade, poeta, negro, escravo liberto, enquanto, não longe, em Porto Novo, o mar é de labaredas, e os turistas, "voyeuristas", espreitam por ruelas e veredas e pátios e vãos de escada.
Com a globalização, veio a gentrificação, lamenta-se a menina do posto de turismo.
3. Há bonecas de porcelana, quiçá das Chinas dos mandarins, às janelas, e os dedos delas confundem-se com as rendas de bilros, as teias de aranha, as cortinas, os brocados de cetim, os deveres e os lavores femininos, as máscaras de Arlequim, as fantasias de antigos carnavais, as marcas (imateriais) do jejum e abstinência.
5. Dedos que teceram intrigas e redes, redes de pescadores, há muito perdidos nas colinas do alto mar. Ou dedos que fiaram outras redes, clientelares, sociais, clandestinas, sob os portais, os corredores e as esquinas dos paços, dos passais, das rodas e das celas conventuais, dos passos perdidos, das antecâmaras reais.
6. O silêncio não pára ou só vai parar a um metro do chão, na barra azul dos moinhos de vento, mais a sul, entre pomares e vinhedos e, agora, campos de abóboras e estufas, quentes e frias.
2. “Esquecei o que vedes”, diz um "aviso ao povo", apregoado pelo almotacé da cidade, poeta, negro, escravo liberto, enquanto, não longe, em Porto Novo, o mar é de labaredas, e os turistas, "voyeuristas", espreitam por ruelas e veredas e pátios e vãos de escada.
Com a globalização, veio a gentrificação, lamenta-se a menina do posto de turismo.
3. Há bonecas de porcelana, quiçá das Chinas dos mandarins, às janelas, e os dedos delas confundem-se com as rendas de bilros, as teias de aranha, as cortinas, os brocados de cetim, os deveres e os lavores femininos, as máscaras de Arlequim, as fantasias de antigos carnavais, as marcas (imateriais) do jejum e abstinência.
5. Dedos que teceram intrigas e redes, redes de pescadores, há muito perdidos nas colinas do alto mar. Ou dedos que fiaram outras redes, clientelares, sociais, clandestinas, sob os portais, os corredores e as esquinas dos paços, dos passais, das rodas e das celas conventuais, dos passos perdidos, das antecâmaras reais.
6. O silêncio não pára ou só vai parar a um metro do chão, na barra azul dos moinhos de vento, mais a sul, entre pomares e vinhedos e, agora, campos de abóboras e estufas, quentes e frias.
Indiferentes ao filme da história ao vivo, fiadas de pequenos nepaleses encavalitam-se em caixotes para apanhar a pêra rocha que é exportada "by air". Os Himalaias ali tão longe!
À entrada, fora das muralhas, o cemitério, cofre forte de segredos, aqui onde se acabam todos os medos. E os heróis da última batalha que não tiveram sequer honras de mortalha. E os búzios e o cavername das caravelas e naus naufragadas no Porto das Barcas do inferno. E as façanhas dos soldadinhos de chumbo das tropas coloniais que ficaram por contar, trepando a rampa da praia de Paimogo acima.
7. Valha-te a brisa do mar que te faz algum refrigério na canícula do fim de estação da tua civilização. Pedes uma moreia frita no bar da Peralta. E contornas o Montoito e a Atalaia onde o guarda-mor da saúde decretou o cordão sanitário.
8. Casas paradas, caiadas com a mesma cal viva das valas comuns da última guerra e da epidemia da cólera de Deus que se lhe seguiu.
Pelos claustros do convento, agora transformado em palácio do povo, entre suspiros, sussurros e zunzuns, esquivam-se padres e frades, cavaleiros de Deus, noctívagos, e outros trânsfugas, infiéis, pecadores, hereges, proscritos, pederastas, mulheres da vida, esbirros do intendente, iluministas e iluminados, refractários e desertores, penitentes, almas penadas, danadas, poetas de botequim malditos, taberneiros, tocadores de rabeca, quiçá bruxas e duendes e peregrinos do caminho de Santiago.
À entrada, fora das muralhas, o cemitério, cofre forte de segredos, aqui onde se acabam todos os medos. E os heróis da última batalha que não tiveram sequer honras de mortalha. E os búzios e o cavername das caravelas e naus naufragadas no Porto das Barcas do inferno. E as façanhas dos soldadinhos de chumbo das tropas coloniais que ficaram por contar, trepando a rampa da praia de Paimogo acima.
7. Valha-te a brisa do mar que te faz algum refrigério na canícula do fim de estação da tua civilização. Pedes uma moreia frita no bar da Peralta. E contornas o Montoito e a Atalaia onde o guarda-mor da saúde decretou o cordão sanitário.
8. Casas paradas, caiadas com a mesma cal viva das valas comuns da última guerra e da epidemia da cólera de Deus que se lhe seguiu.
Pelos claustros do convento, agora transformado em palácio do povo, entre suspiros, sussurros e zunzuns, esquivam-se padres e frades, cavaleiros de Deus, noctívagos, e outros trânsfugas, infiéis, pecadores, hereges, proscritos, pederastas, mulheres da vida, esbirros do intendente, iluministas e iluminados, refractários e desertores, penitentes, almas penadas, danadas, poetas de botequim malditos, taberneiros, tocadores de rabeca, quiçá bruxas e duendes e peregrinos do caminho de Santiago.
Como é vasto e triste o zoo humano. E não há albergarias para todos. Muito menos senhas de racionamento e vitualhas.
9. A calçada, outrora portuguesa, está agora gasta pelos cascos dos cavalos dos invasores... Picam-se os brasões dos solares da mui antiga nobreza, corta-se rente a árvore genealógica dos velhos senhores e arrasados e salgados são, até às fundações, os seus doces lares.
10. Um estranho cheiro a incenso, mirra, algas, maresia e enxofre sobe pelos ares, do lado da praia de Porto Dinheiro. Arde a Extremadura, do Atlântico ao Tejo.
Violadas as filhas, raptadas as servas, acorrentados ao pelourinho os criados, que vão ser vendidos como escravos na feira do gado do Rossio, passados a fio de espada os primogénitos, fundido o ouro e a prata dos palácios e igrejas, postos os novos deuses nos altares, pergunta a jovem guia do centro interpretativo da batalha do Vimeiro, "o que é pior, se a triste e vil desonra do presente ou o silêncio premonitório do futuro".
11. Por ti, nada antevês de bom augúrio. Não sabes que lugar é este, sem memória nem glória, à beira da estrada do Atlântico Oeste da tua infância revisitada, o mar do Cerro em frente, as linhas de Torres de alta tensão. Numa tabuleta lês: "A guerra, o mal absoluto".
12. Não há mais quem cante o cante dos poetas, a doce cantilena das Naus Catrinetas, o fero cântico dos últimos guerreiros do Império, ou até a última oração, de raiva, lamento e impropério, em canto chão, que é devida aos bravos que pela Pátria deram a vida.
"Que pátria, minha querida ? Ninguém morre pela pátria, morres pelos teus, que te estão mais próximos, a família, os animais de estimação, os bois, as leiras, jeiras ou courelas, os pomares, as vinhas, a casa, os vizinhos, os amigos, os camaradas. Sobretudo os camaradas. E matas, para não morreres".
"É doce morrer pela pátria, diz o meu capitão".
"É doce a guerra, meu amor, mas é para quem não anda nela".
"Mas tu deves cheirar a pólvora, meu soldadinho, e eu a incenso".
13. Fora de portas, num atalho ou trilho que leva ao monte das forcas, compras o último pão de centeio, puro, duro e escuro, e a última boroa, já bolorenta, de milho, à última padeira de Aljubarrota que ainda estava viva, à hora do pôr do sol. Padeira, precisa-se, dão-se alvíssaras. E artilheiros, que saibam ler e escrever, por causa do manual de instrução.
Padeira, viandeira, de peito farto, mãe coragem, altiva, que nem sempre o que parece é, a vitória ou a derrota, medindo forças no tribunal da história. Não há tropa que caminhe para o combate com o estômago vazio.
14. Águas paradas do Rio Alcabrichel, tingidas de verdete e de sangue, no fim de tarde de todas as batalhas. “Pour Monsieur Junot, c’était encore trop tôt!”, manda dizer o ajudante de campo, enquanto sobe para a carruagem do comboio que o levará ao inferno.
"O arco de triunfo, espera-te, idiota!, para que no alto, no pau da bandeira, te enforquem os milhares de homens que tu mandaste para a morte, em fila, organizados!".
As freiras improvisaram um hospital de campanha com bandeira branca e bufê. Que quadro idílico, patriótico, humanitário, que ternura!...
Saqueada a cidade, enchem-se as tulhas, despejam-se as talhas, ainda a guerra é uma criança, e quem não viu não crê, como são Tomé, acrescenta o enviado especial da TV em apontamento de reportagem. Teve o seu momento de glória, acabando por ser vítima do fogo amigo.
15. O último terno de cornetins da fanfarra do exército dizimado toca a silêncio, enquanto te despedes na parada, em ruínas, do quartel. Uma despedida que te destroça o coração, como todas as despedidas em tempo de guerra.
Em boa verdade, nem todos os que vão à guerra são soldados. Mas em todas as guerras só os soldados mortos não falam. E o silêncio é, afinal, a única linguagem universal que tu conheces, na Torre de Babel. [1]
Lourinhã, Vimeiro, fim de verão, agosto de 2014. Revisto
[1] Périplo pelas terras da Lourinhã, em 15 passos, entre a Praia de Paimogo e a Praia de Porto Novo, fim de verão, 2014. Aqui desembarcaram tropas luso-inglesas que derrotaram Junot, general de Napoleão, na batalha do Vimeiro, em 21 de agosto de 1807, depois da Roliça (a 17).
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Nota do editor:
Último poste da série > 23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20088: Manuscrito(s) (Luís Graça) (169): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte I - O rio Grande...
9. A calçada, outrora portuguesa, está agora gasta pelos cascos dos cavalos dos invasores... Picam-se os brasões dos solares da mui antiga nobreza, corta-se rente a árvore genealógica dos velhos senhores e arrasados e salgados são, até às fundações, os seus doces lares.
10. Um estranho cheiro a incenso, mirra, algas, maresia e enxofre sobe pelos ares, do lado da praia de Porto Dinheiro. Arde a Extremadura, do Atlântico ao Tejo.
Violadas as filhas, raptadas as servas, acorrentados ao pelourinho os criados, que vão ser vendidos como escravos na feira do gado do Rossio, passados a fio de espada os primogénitos, fundido o ouro e a prata dos palácios e igrejas, postos os novos deuses nos altares, pergunta a jovem guia do centro interpretativo da batalha do Vimeiro, "o que é pior, se a triste e vil desonra do presente ou o silêncio premonitório do futuro".
11. Por ti, nada antevês de bom augúrio. Não sabes que lugar é este, sem memória nem glória, à beira da estrada do Atlântico Oeste da tua infância revisitada, o mar do Cerro em frente, as linhas de Torres de alta tensão. Numa tabuleta lês: "A guerra, o mal absoluto".
12. Não há mais quem cante o cante dos poetas, a doce cantilena das Naus Catrinetas, o fero cântico dos últimos guerreiros do Império, ou até a última oração, de raiva, lamento e impropério, em canto chão, que é devida aos bravos que pela Pátria deram a vida.
"Que pátria, minha querida ? Ninguém morre pela pátria, morres pelos teus, que te estão mais próximos, a família, os animais de estimação, os bois, as leiras, jeiras ou courelas, os pomares, as vinhas, a casa, os vizinhos, os amigos, os camaradas. Sobretudo os camaradas. E matas, para não morreres".
"É doce morrer pela pátria, diz o meu capitão".
"É doce a guerra, meu amor, mas é para quem não anda nela".
"Mas tu deves cheirar a pólvora, meu soldadinho, e eu a incenso".
13. Fora de portas, num atalho ou trilho que leva ao monte das forcas, compras o último pão de centeio, puro, duro e escuro, e a última boroa, já bolorenta, de milho, à última padeira de Aljubarrota que ainda estava viva, à hora do pôr do sol. Padeira, precisa-se, dão-se alvíssaras. E artilheiros, que saibam ler e escrever, por causa do manual de instrução.
Padeira, viandeira, de peito farto, mãe coragem, altiva, que nem sempre o que parece é, a vitória ou a derrota, medindo forças no tribunal da história. Não há tropa que caminhe para o combate com o estômago vazio.
14. Águas paradas do Rio Alcabrichel, tingidas de verdete e de sangue, no fim de tarde de todas as batalhas. “Pour Monsieur Junot, c’était encore trop tôt!”, manda dizer o ajudante de campo, enquanto sobe para a carruagem do comboio que o levará ao inferno.
"O arco de triunfo, espera-te, idiota!, para que no alto, no pau da bandeira, te enforquem os milhares de homens que tu mandaste para a morte, em fila, organizados!".
As freiras improvisaram um hospital de campanha com bandeira branca e bufê. Que quadro idílico, patriótico, humanitário, que ternura!...
Saqueada a cidade, enchem-se as tulhas, despejam-se as talhas, ainda a guerra é uma criança, e quem não viu não crê, como são Tomé, acrescenta o enviado especial da TV em apontamento de reportagem. Teve o seu momento de glória, acabando por ser vítima do fogo amigo.
15. O último terno de cornetins da fanfarra do exército dizimado toca a silêncio, enquanto te despedes na parada, em ruínas, do quartel. Uma despedida que te destroça o coração, como todas as despedidas em tempo de guerra.
Em boa verdade, nem todos os que vão à guerra são soldados. Mas em todas as guerras só os soldados mortos não falam. E o silêncio é, afinal, a única linguagem universal que tu conheces, na Torre de Babel. [1]
Lourinhã, Vimeiro, fim de verão, agosto de 2014. Revisto
[1] Périplo pelas terras da Lourinhã, em 15 passos, entre a Praia de Paimogo e a Praia de Porto Novo, fim de verão, 2014. Aqui desembarcaram tropas luso-inglesas que derrotaram Junot, general de Napoleão, na batalha do Vimeiro, em 21 de agosto de 1807, depois da Roliça (a 17).
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Nota do editor:
Último poste da série > 23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20088: Manuscrito(s) (Luís Graça) (169): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte I - O rio Grande...