quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18367: Fotos à procura de... uma legenda (101A) : A técnica de construção da estrutura superior das moranças fulas... (Cherno Baldé / Luís Graça / António Rosinha / Armando Tavares da Silva)



Desenho manual da fase inicial de construcao de uma palhota
Infografia: Cherno Baldé (2018)




Foto nº 1


Foto nº 2

Foto nº 3


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (1968/69) > Candamã > Reconstrução de moranças, depois do ataque de 30/7/1969. Fotograma de "slides", do Henrique Cardoso, retiradas, com a devida cortesia, do seu vídeo, disponível aqui, no You Tube / Henrique Cardoso.

Fotos: © Henrique Cardoso (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 4

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > Madina Xaquili > Junho de 1969 > A morança que foi destinada ao Fernando Gouveia quando foi destacado para Madina Xaquili, para reforçar o sistema de autodefesa.

Foto: ©  Fernando Gouveia  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Comentário de Cherno Baldé ao poste P18357 (*):

Quero desafiar a capacidade de observação dos antigos combatentes com a seguinte questão:

- Quem sabe ou quem é capaz de descrever a técnica que os Fulas do campo usavam na construção daquelas casas (palhotas) redondas onde viviam? Quem acertar dou um preéio.

 PS: Nas imagens vemos algumas casas (palhotas) com a estrutura já pronta, faltando cobrir com a palha [Fotos nº 1 e 2]

2.  Comentário do nosso editor LG [Tabanca Grande]:

Cherno, é um bom desafio...Mas eu não me atrevo a ser o primeiro a tentar responder-te... 

Passei algumas semanas em tabancas em autodefesa, sobretudo no tempo das chuvas... A (re)construção das moranças, a mudança do colmo, etc., era feita no tempo seco... E o tempo seco era o das grandes operações, quando íamos aos 'santuários' [ou 'zonas libertadas']  do PAIGC, uma vez por ano...



3. Comentário de António Rosinha:


Respondendo à pergunta sobre a técnica dos fulas na construção das cubatas redondas e o colmo de palha no telhado, não sei bem a que se refere o Cherno, sei que são abrigadas contra o calor, o frio e os ventos de qualquer direcção.

Com aquele telhado que fica a aba a 1 metro do chão, temos uma climatização o ano inteiro.

Mas já vi jovens cooperantes suecos a fazer adobe e a construir,  com esses tijolos, uma escola nos arredores de Bissau, e os guineenses sentados à sombra dos mangueiros a ver aquela "novidade", adobe.

Também já vi japoneses a fazer arroz numa bolanha de Bafatá, e balantas e fulas a assistir àquela novidade agrícola, o arroz.

Acho que os suecos e os japoneses já foram todos embora e os guineenses não continuem sentados.


4. Resposta do Cherno Baldé:

Caros amigos Luis e Rosinha,

A última imagem do Post mostra uma armadura circular feita de canas de bambu enrodilhadas e suportada por paus à volta com um diâmetro de mais ou menos 4/5 metros (onde os dois rapazes estão encostados) [Foto nº 2] . É este o sítio onde se começa a montagem/construção das estruturas que vão servir de cobertura às casas (Palhotas).

Para começar, escolhem as melhores canas de bambu e encostadas uma a uma a volta da estrutura circular, vão cruzá-las no meio do círculo onde serão atadas, formando desse modo a parte que, quando invertida ou levantada para cima , vai constituir o topo da casa, chamada de cabeça.

Assim, mais de metade desta estrutura de cobertura de colmos é colocada ainda no chão e amarrada com cordas de ramos de palmeira (ráfia), antes de a levantar, colocando a parte que estava em baixo para cima, e fazer subir em cima das paredes redondas (ou outra estrutura qualquer de Kirintins) que servirão de base de apoio à cobertura feita de palha ou de folhas de cibes, conforme as regiões do país e a disponibilidade da palha de cobertura que se podia encontrar na orla das bolanhas, que é cada vez mais rara.

À primeira vista parece simples, da mesma forma que, aos olhos do leigo, parece simples matar uma galinha e dividi-la em partes, mas os mais novos tinham que aprender com os mais velhos e respeitar os procedimentos e o ritual subjacente, sem o qual o trabalho não tinha o devido valor aos olhos da comunidade e dos seus valores.

Se calhar, todos acham que sabem fazer o trabalho elementar de matar uma galinha é de a dividir em diferentes partes!?

Nada mais errado. Da forma como os metropolitanos matavam galinhas no quartel, nenhum Homem grande Fula aceitaria consumi-la. Primeiro por razões religiosas sim, mas também porque não correspondia às normas locais de procedimento e de respeito à vida do animal.

Uma casa que fosse construida sem respeitar as regras ancestrais, também podia ser rejeitada pelos mais velhos e transformar-se num trabalho inglório.

Tenho a quase certeza que o "alfero Cabral",  de Missira, sabia esfregar mamas de Bajudas, mas não aprendeu a arte de matar uma galinha ou da construção de uma bela palhota, palhota de receber hóspedes ilustres, como aquela que reservaram ao Fernando Gouveia em Madina Xaquili ou ao Luís Graça em Saré Ganá com os respectivos mobiliários, sem esquecer a "turpeça" do chefe.


4. Comentário de Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno: sim, a cobertura ou cabeça da habitação em forma cónica é montada ao nível do solo à volta da estrutura circular de bambú que se vê na imagem do lado direito e onde estão encostados os dois rapazes [Foto nº 2].

As canas de bambú serão atadas no meio, mas penso que esta operação não será feita ao nível do chão, pois, de contrário os rapazes não chegariam ao topo onde as pontas das canas irão ser atadas.
Mas acrescenta que esta estrutura é ”levantada ou invertida”, fazendo crer que esta fase da construção pode ser realizada de 2 maneiras. Em qualquer caso isto obriga a levantar a estrutura alguns metros acima do solo, para se poder construir por baixo as paredes da habitação. E isto, como é que é feito? Não será preciso mais gente?

Agradeço estes esclarecimentos.


5. Resposta do Cherno Baldé:

Caro Armando,

Obrigado pelo interesse sobre o assunto.

O topo da cobertura das casas que estão a ver, estavam no chão e no centro da estrutura circular, mas invertidas e na posição contrária daquela que se ve nas imagens. Mais de metade desta cobertura em canas de bambu deve ser montada no chão, em posição invertida, antes de se colocar em cima da parede da casa. Para a colocar, o indivíduo que estava a montar e amarrar as canas  precisava do apoio de um número determinado de pessoas para colocá-la em cima da parede, dependendo do tamanho da casa em construção.

A fase seguinte consistia em meter mais canas de bambu, agora de baixo para cima e fechar todos os espaços vazios. É isto que o rapaz da primeira imagem { Foto nº 1] está a fazer, estando em cima da cobertura a fim de prender solidamente com as cordas de rafia fabricadas a partir de ramos de palmeiras.

Espero ter ajudado a compreender o procedimento,


 6. Nova pergunta Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno:

Peço desculpa mas ainda não compreendi bem o procedimento. Invertidas significa que a parte de cima (ou de fóra)  é a que vai ficar da parte interior da habitação? O atar da extremidade das canas de bambú é feito quando estas se encontram ao nível do chão (no plano do chão)? Qual a utilidade da estrutura circular? Como é que ela é utilizada na momtagem das estruturas de cobertura? Eu pensava que esta estrutura servia para nela se encostarem as canas de bambú de modo a serem atadas no topo.

Abraço

7. Resposta  final do Cherno Baldé:

Caro amigo Armando,

Tenho umas fotos que vou tentar recuperar e enviar-te via  Blogue da Tabanca Grande, pois acho que não consegui explicar convenientemente, mas com a imagem será mais facil. Se quiseres, poderás indicar um contacto de e-mail para poder enviar-te directamente, caso consiga recuperar a tal imagem que tinha numa máquina fotográfica [, vd infografia acima]. (**)

Um abraço,
Cherno Balde

_____________

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Armando, o "boneco" que o nosso amigo e "mano" Cherno nos enviou é suficientemente didático, elucidativo... O ser humano é inventivo, criativo, tem sempre uma solução concreta para uma problema concreto.. Até para a morte, arranja soluções...provisórias/definitivas...

Agradeço as preciosas contribuições de todos... Eu eu, com quase 2 anos na Guiné, a viver e a lutar com os fulas, que me unca me "apercebi" do raio da ténica de construção do "telhado" cónico das palhotas onde fiquei não pouycas vezes...

Devia ter sido mais "observador participante", a G3 numa mão e o caderno de notas na outra...

Mantenhas... Luís

Anónimo disse...

Caro Cherno,
Muito obrigado pelos esclarecimentos, pelo elucidativo esquema da montagem inicial da cobertura e pela paciência demonstrada. Agora tudo está esclarecido!
Quando eu escrevi que a operação de atar as canas de bambú "não será feita ao nível do chão, pois, de contrário os rapazes não chegariam ao ao topo onde as pontas das canas iriam ser atadas", estava a escrever uma incongruência da qual não reparei: é precisamente o facto de as pontas das acanas serem atadas ao nível do chão, que facilita a operação de as atar.
Já agora uma pergunta: este processo de construção é igualmente utilizado por outras etnias além dos fulas?
Abraço
Armando

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já agora uma outra pergunta: quem eram, no nosso tempo, os melhores construtores de casas ?

Cherno Baldé disse...

caros amigos,

Que eu saiba, o processo é o mesmo, pois na verdade, ninguem pode determinar claramente quem é o autor ou proprietario intelectual da tecnica e, pode ser mesmo uma tecnica milenar dos tempos faraonicos, nao sei. Certo certo é que nao sera dos Fulas, pois estes, nao tendo uma vida muito sedentaria até ha pouco tempo, nao tinham tempo e nem lhes interessavam construcoes mais ou menos solidas, mais ou menos duradouras pois, no dia seguinte tinham que bandar para outras paragens atras dos seus animais, principal e unico objecto da sua existencia. Ate a independencia, os desgracados dos Fulas, agarrados aos seus habitos ancestrais, nem arvores fruteiras tinham nas aldeias onde habitavam com o pretexto de que dai ha pouco teriam que mudar de sitio. A Guerra contribuiu muito para a sua sedentarizacao e mudança de mentalidades. A origem devera ser procurada algures no Sahara, de onde se pensa que vieram alguns dos primeiros habitantes ou dos mais antigos como os Banhuns, os Badjaras, Padjadincas e outros.

Sabe-se que antigamente todos os povos mais ou menos sedentarizados utilizavam essas construcoes conicas, muito economicas e de construçao rapida, hoje diriamos amigas da natureza. Mais tarde, com a chegada dos europeus, os povos costeiros, mais abertos a inovaçao, adoptaram o modelo quadrado, caso dos Bijagos, Nalus, balantas, papeis, manjacos etc.

Relativamente a questao do Armando, nao sera facil de dizer, mas certamente que os balantas se destacam como os grandes trabalhadores e mestres de obras, na actualidade, e penso que sempre foi assim. Os registos coloniais ja os classificavam de "Muito trabalhadores, mas um pouco velhacos", a realidade dos ultimos 50 anos nao é muito diferente. Dizem que o balanta quando nasce so quer ser tropa ou entao pedreiro. Claro que nao é verdade, tudo é relativo e circunstacial.

Todavia, se atendermos que sao o meio e as circunstancias que fazem o homem, entao acreditamos que as coisas podem evoluir. Hoje, sobretudo na Europa, podemos encontrar Fulas que trabalham em obras de construçao civil o que era impensavel até 1980, antes de comecar o exodo para a Europa. Os mandingas e seus sobrinhos beafadas ainda continuam relutantes e sonham com o regresso dos tempos do imperio mandinga.

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

PS:
Se quisermos falar somente das casas redondas, diria ainda que os Futa-Fulas (originarios do Futa-Djalon ou Futa-Toro), sao os que maior atencao e esmero se permitem na construcao e embelezamento das casas e muito superiores em cuidados de ordenamento, de limpeza e de higiene, individual e colectivamente. Existem caracteristicas proprias e muito diferentes entre aldeias ou moranças de Fulacundas (Fulas pastores ou agricultores do antigo imperio de Gabu -Fulas-Forros e Pretos), de Mandingas ou de Futa-Fulas. Estes ultimos formavam a classe aristocratica ou nobre dos Estados Teocraticos dos dois Futas (na actual Guiné Conakri e no Tekrur do Senegal). Eram quase todos letrados e muito cultos e, durante muito tempo eram os Mestres (Tchernos) e os Padres (Almames), os verdadeiros proselitos e divulgadores da fé islamica entre as populacoes, em resultado do Pacto Comum celebrado para a conquista do imperio Mandinga de Gabu na segunda metade do Sec. XIX.

Cherno

Valdemar Silva disse...

Obrigado Cherno Baldé.
Estamos sempre a aprender, evidentemente para quem gosta de aprender/saber mesmo que seja como se faz uma simples cubata e, depois, um pouco da história dos seus construtores.

Abraço
Valdemar Queiroz Embaló