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terça-feira, 13 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.

(Continuação)



1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


11. Claro, havia a Semana Santa, a Páscoa, a ressurreição da carne, o supremo heroísmo de alguém que, depois do Natal, lá para março ou abril, iria morrer para te salvar. 


Morte anunciada, a de Jesus Cristo, o menino Jesus, o filho de Deus feito Homem, repetia, com candura, a tua catequista, que era linda de morrer, e tinha o mais belo sorriso do mundo, cabelos louros e olhos azuis, e o peito mais generoso das raparigas da tua aldeia, com a alvura da "Branca de Neve", um peito cintilante, com a castidade a transbordar pelas rendas de bilros, e por quem terás tido a tua primeira paixão, assolapada, paixão de um púbere, e que só podia ser de pura ternura, assexuada.



Lourinhã, c. 1950/60: traseiras da escola Conde Ferreira, para rapazes (à direita) e raparigas (à esquerda). Edifício infelizmente demolido pelo camartelo camarário, "em nome do progresso"... 

Em segundo plano, a igreja matriz da Lourinhã (séc. XVII) e a sua torrre sineira. Fazia parte do convento de Santo Anónio (fundado em finais do séc-XVI). Em primeiro plano, junto ao muro do recreio da ecola das raparigas, o urinol público... 

Foto: cortesia de Lourinhã Noutros Tempos,página do Facebook editada pela ADL Lourinhã - Associação de Desenvolvimento Local da Lourinhã




Castidade: ora cá está uma palavra que hás de pôr cedo no teu dicionário de menino. Tinhas de ser casto para fazer a tua primeira comunhão e mais tarde o crisma e receber os sete dons do Espírito Santo. Mas era difícil de explicar e perceber o que era isso de pecar por pensamentos, palavras e obras. O "Frasco do Veneno", que era teu primo, mentor e guarda-costas, sabia explicar isso, exemplificando, muito melhor que a tua catequista, a "Branca de Neve", ou  s senhora professora da 3ª classe.

12. Havia tudo isso, e não muito mais do que isso, nem sequer sabias o que era o desejo nem que o desejo era pecado, muito menos o que era o pecado, e muito menos ainda sabias operar a distinção, teológica, primordial, entre o pecado mortal e o venial, de que poderia depender a tua vida, eterna, ámen!

13. Havia, ao fim e ao cabo, tudo o que o calendário litúrgico ditava, o mesmo era dizer, no fundo, tudo o que a ordem natural das coisas te impunha, mais os cânones da santa madre igreja, católica, apostólica, romana, e as leis dos homens, desde o princípio do mundo, a ti e aos teus, aos da tua rua, aos da tua laia, da tua escola, da tua classe.

Desde o princípio do mundo, ou seja, não mais do que há cinco mil anos… Mas eras lá tu capaz de saber há quanto tempo Deus criara o mundo e o paraíso terrestre e as avezinhas do céu e os peixinhos do mar e os animais de quatro patas e os nossos pais Adão e Eva, e a maçã, e a árvore da sabedoria, e as hormonas do pecado, e os dez mandamentos!... Sabias lá tu o que eram as hormonas, mas que já as sentias, sentias!...

Cinco mil anos eram muitos números, era muita aritmética, para um menino só, mesmo para um menino aplicado como tu,  que sabia a tabuada, de cor e salteado, e repetia-a na ponta da língua, como o papagaio: "um vez um, um; dois vezes dois, quatro; três vezes três, nove; quatro vezes quatro, dezasseis"… e por aí fora até cem, que era dez vezes dez, os dez mandamentos e os cem castigos. 


Sabias tudo na ponta da língua, contar até cem, recitar os dez mandamentos, enumerar as catorze obras de misericórdia segundo são Mateus… Ah!, e os versos do Augusto Gil, batem leve, levemente como quem chama por mim [1]

14. Há dois mil anos, pobre de ti, condenado, ou ainda muito antes de ti, inocente, quando Jesus Cristo nascera e morrera para te salvar, e, com isso, sem seres tido nem achado, havias contraído uma gigantesca dívida, que terias de saldar, em vida, sob pena da danação eterna. "Mistérios", dizia-te a "Branca de Neve". "Mistérios": cá está outra palavra, ou palavrão,  que vais pôr no teu dicionário de menino.

15. Pobre de ti, minúscula criatura, obra sublime do Criador, podias lá tu entender, nas aulas da catequese da "Branca de Neve" e dos "Sete Anões", os estranhos desígnios de Deus Pai!... 

Mas Deus era Deus, e para mais Pai, e tinha um pau da lixa, que fazia doer o rabo, para te lembrar que quem dava o pão, dava também a boa educação, a disciplina e a santa religião. Ele só perdia a cabeça quando os calotes dos fregueses se acumulavam e não havia dinheiro em caixa para pagar ao viajante, o fornecedor de solas e cabedais, e aos empregados que à segunda feira não trabalhavam. Era o domingo dos sapateiros.

Um Deus Pai que era sapateiro e exímio jogador de damas, e sobretudo o teu herói, e te levava de motorizada a ver os jogos da bola nas aldeias vizinhas.


Lourinhã: princípios
dos anos 50. O poeta,
aos 3 anos, com a mana
(a mais velha de três).
Foto: © Luís Graça (2005)
Recordar-te-á, mais tarde, com enlevo, que quando nasceste tinhas uma cabeça grande, e só poderias vir a ser padre ou doutor. Falava em verso para os graúdos, que lhe achavam graça. A tua mãe, nem por isso, não lhe achava assim tanta graça, quando ele se punha a falar em verso.

16. Quando eras menino e moço, e inconscientemente feliz, e ainda vivias na casa dos teus pais, porque não podia haver ninguém conscientemente feliz, naquele tempo, no pós-guerra, a não ser talvez o Santo Padre, que estava em Roma, e que era o representante de Cristo na terra. Além da tua avó materna, Patrocínio (, Patxina, corruptela do seu nome, já que ninguém era capaz, na tua aldeia, de dizer palavras com mais de três sílabas). Na aldeia, era a Ti Patxina, ficará cega, mas sempre com o sorriso mais lindo de menina.

17. Sim, tu eras, inconscientemente, feliz, uma pobre alma sensível, que acreditava nos contos de fadas, princesas e mouras encantadas, potes de libras escondidos debaixo de terra, túneis secretos, tesouros de ouro do cu do besouro, gnomos e fadas, duendes e bruxas, lobisomens e vampiros, alminhas e almas penadas, anjinhos, amuletos, ferraduras, espanta-espíritos, santinhos e santinhas, diabos e diabretes, corujas, cavaleiros andantes, e sobretudo nas vozes dos espíritos a cochichar, por detrás das portas e armários dos casarões da tua aldeia… 


Que tremenda deceção a tua quando, mais tarde, já na idade da razão, as tuas primas te explicaram que era apenas... o bicho-carpinteiro a trabalhar!

Não, ainda não havia dinossauros nem a tua imaginação chegava a tanto! Havia só dragões a vomitar fogo. E o São Jorge, a cavalo, que os fulminava com a sua espada de aço.

18. Havia as festas, pois claro, do povo ou para o povo, mas primeiro estavam as santas obrigações e só depois é que vinham a brincadeira e as profanas devoções: primeiro as missas, o terço, as novenas, as procissões, a procissão do Domingo de Ramos e a procissão do Senhor Morto, tão morto como qualquer mortal, as opas roxas como no tempo da Santa Inquisição, as matracas que nos enchiam de terror divino, aos putos e aos crescidos, a bolsa lacrimal dos anjinhos, tão papudinhos, as c’roas de espinhos que pareciam ser mesmo a sério, cravados no coro cabeludo dos meninos e meninas...

Não sabias por que é que o pobre do Jesus Cristo tinha que morrer todos os anos, para depois ressuscitar ao terceiro dia. Nunca ninguém te explicou o mistério da vida, por que é que a vida era circadiana, um eterno retorno, e a seguir a um dia vinha outro dia, e a seguir à vida vinha a doença e a morte, o juízo final e o inferno ou o paraíso para sempre, ámen!...E ainda havia o purgatório, explicava-te a "Branca de Neve": o sítio onde se purificavam as almas antes de poderem entrar no paraíso.

19. E à frente do andor com o Senhor Morto, lá vinha a Madalena, mulher pública, púdica, arrependida, e depois santa, e a seguir a Mater Dolorosa, vestida com um manto roxo e com uma espada espetada no coração, que horror!, e o pálio com os padres, o vigário e os pregadores, o provedor e os restantes  irmãos da misericórdia, e todo os demais senhores  da tua aldeia, com caras patibulares, e, atrás o povo, nós e as nossas mães, e as lágrimas das nossas santas mães, as únicas lágrimas do mundo que eram doces e quentes, e verdadeiras, e verdadeiramente castas e santas. 


E só mais atrás é que vinham os pais dos meninos da tua rua, com os chapéus, bonés e barretes, na mão, as mãos calejadas do trabalho, e por fim o "Brutamontes", com uma chibata, a fechar o cortejo e a cantarolar.

O diabo em pessoa, esse tal de "Brutamontes". Mas a vida corria-lhe bem, por isso é que andava sempre a assobiar e a cantarolar.

20. Havia o ouro, o incenso e a mirra, os três reis magos, mais os seus camelos, e um deles era o pretinho da Guiné (, sabias lá tu onde era a terra dele!), havia o presépio, havia a água benta.

Ah!, o incenso, ligeiramente enjoativo das missas, e a pregação do pregador franciscano na Quaresma, que nunca mais acabava, e o povo a bocejar de tédio, e a fazer as contas à décima a pagar nas finanças, e à côngrua para o senhor padre vigário, e ao sulfato para sulfatar a vinha do Senhor…

Ah!, e a seca do terço mariano no mês de maio (que te perdoe a Nossa Senhora de Fátima, por invocares o seu nome em vão!)... Havia novenas na rua dos Valadas, com a santinha num nicho de madeira, a andar de casa em casa…

Havia, enfim, o sagrado e o pagão, a lavoura, os lavores, masculinos e femininos, o solstício do inverno e o solstício do verão, e tudo a isto, ou só a isto, se resumia o acanhado palco do teatro da vida que te coubera em sorte. Sorte pequena, nunca te calhou a grande. A grande só poderia ser o céu, no fim da vida, se até então vivesses na graça de Deus. 


E era a tua mãe quem,  numa velha máquina de costura, te fazia os lençóis, os lenços, as camisas e as cuecas e o resto da roupa, incluindo a domingueira, a de ir à missa. 

(Continua)
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[1] Balada da Neve, poema de Augusto Gil (1873-1929). No Livro de Leitura da 3ª classe(4ª edição, Porto Editora, 1958, p. 173, reimpressão, 2008)), o poema era amputado da segunda (e última parte)... E não era por acaso...


(...) Fico olhando esses sinais 
da pobre gente que avança, 
e noto, por entre os mais, 
os traços miniaturais 
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos... 
a neve deixa inda vê-los, 
primeiro, bem definidos, 
depois, em sulcos compridos, 
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador 
sofra tormentos, enfim! 
Mas as crianças, Senhor, 
porque lhes dais tanta dor?!... 
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza, 
uma funda turbação 
entra em mim, fica em mim presa. 
Cai neve na Natureza 
– e cai no meu coração.


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