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segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21331: A galeria dos meus heróis (37): Rosemarie e os seus dois maridos...IV (e última) Parte (Luís Graça)


Indochina > Dien Bien Phu > 1954 > Ao fim de um cerco de 55 dias, o exército francês, de 17 mil homens (quase dois terços dos quais  legionários), pede rendição, em 7 de maio,  às tropas do general Vo Nguyen Giap (1911 - 2013) . Foto, do domínio público, mostrando a marcha dos prisioneiros franceses.  

O luso-francês Antoine Ben Oliel, desta história,  teve a sorte de ter escapado a esta cena final, sendo gravemente ferido, logo no início da batalha, em 13 ou 14 de março de 1954.

Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons.


A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 
IV (e última) Parte (Luís Graça) *


(Continuação)


− Era violento, o Antoine ? – perguntei à Rosemarie, em 2018, o último ano em que nos vimos, estávamos os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de nós, na sequência da pandemia de Covid-19.

− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surmenage… Entendes ?

− Stress, como nós dizemos aqui.

Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…

− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.

− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, teria eu dois anitos.

O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E eu recordei-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia… 

− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie... 

Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…

− Mas também sobrava para si, não ?!...

Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!

− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.

− Era a minha sina!... Afinal, tive dois homens que me batiam.

Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era ciumento. Sugeri à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…

Qu'est-ce que ça veut dire ?

Referi o facto de ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada…  Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário. 

Na minha opinião,  a minha interlocutora nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.

− A minha mãe era uma santa – recorda ela.

− E o pai ?

− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.

− E a mãe, consentia ?!...

− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas. 

Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela,  como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.

− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!

Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….

E pormenorizava:

− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.

− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão  ? – perguntei eu.

− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!

E acrescentava:

− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.

Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.

−Os meus manos foram muito amigos dele!

Todavia, a  Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.

Jalousie, ciúmes! – achava ela.

O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o “Francês”. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine. 

Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida,  a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.

Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito comigo sobre a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…

− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo para aquele gajo!

Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.

Heuresement, felizmente! − exclamava.

Nunca soube nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de culpa "por não ter dado filhos ao Antoine". Talvez fosse “estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)

Em resumo, admito que ela terá tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu-me a entender que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.

Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…

Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não me escondeu, de resto,  que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…

Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir  de 1974... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!,  com uma carreira artística como fadista em França!...

Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada. 

Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...

− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.

Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património… 

Foi ela, a Rosemarie,  quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.

Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.

Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível  da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.

Sentindo a sua saúde piorar, o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.

Em 1997, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 66, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne.  Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.

Três anos depois, sem chegar a fazer os 70 anos, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.

No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos,  que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.

− Gente ingrata, des gens de merdre! –arrematou ela.

Os dois últimos anos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um  ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...  

−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-me a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!

Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.

Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Eu, pelo meu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.  Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estava esperançado que ela me arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.

Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E há menos de seis meses morreu, vítima de Covid-19, tendo sido cremada.
Só vim a saber da triste notícia através dos amigos da casa da Lagoa de Óbidos. Confesso que fiquei desolado...

Com a morte da Rosemarie, inesperada (e chocante para os seus amigos, como eu), apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto... 

Da última vez que a vi, no verão de 2018, parecia-me uma mulher finalmente feliz, reconciliada com ela e com a vida, liberta das sombras negras do seu passado. Era uma mulher sem rancores, que quis toda a vida amar e ser amada: despediu-se de mim, a cantarolar a Edith Piaff, "Non! Rien de rien, / Non! Je ne regrette rien. / Ni le bien, qu'on m'a fait, / Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"...

Sorriu quando lhe prometi esperar, "até aos seus cem anos", para então lhe publicar a sua "histoire de vie".

Estava determinado (e condenado) a respeitar a sua vontade: agora que ela partiu, ao quilómetro 82 da sua "estrada da vida" (aliás, mais 'picada' do que autoestrada...), deixo aqui a sua história. A sua "petite histoire"... Caberá aos leitores ajuizar se ela fica bem, ou não, na "galeria dos meus heróis".

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)


16 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)

(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia (...) a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá foram massacrados. (...)

Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses, em 13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phi,   ser ferido gravemente por um estilhaço de obus, que lhe desfigurou o rosto. Teve a sorte de ainda poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses depois, em maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)



25 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)


(...) Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos. (...)

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > Instrumentos musicais populares portugueses, dos anos 60: da esquerda para a direita, rabeca chuleira, viola amarantina, bombo e baqueta (em primeiro plano) e os ferrinhos (em segundo plano). Foto: Virgílio Pereira, s/l, s/d. Cortesia de Museu Nacional de Etnologia / Arquivo Virgílio Pereira (2020)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > A rabeca chuleira: fabricante Guilherme Almeida & Sousa Sarmento (Baião, 1873); proveniência: Santo Tirso (1962). Nº Inventário: NME BB 405


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Candoz, Quinta de Candoz  >  20 de outubro de 2012 >  Festa das bodas de ouro da Rosa (Carneiro) e do Quim (Barbosa) > Baile mandado > Tuna Rural de Candoz: Músicos: Júlio e João (violinos), Nelo, Luis Filipe, Miguel e Tiago (violas). Mandador: Joaquim Barbosa (Quim). O baile mandado é uma tradição que se está a perder... E que só os mais velhos sabem dançar. Neste caso, o mandador também participa na coreografia. Clicar aqui para ver o vídeo, alojado em  You Tube / Luís Graça


Vídeo (4' 08''): Luís Graça (2012).

Galeria dos meus heróis > A Rosemarie e os seus dois maridos... 

 Parte I

por Luís Graça


  Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a salto, escondida na mala do carro de um passador…

Foi assim que a Rosemarie começou o seu relato de vida: um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.

A salto !... Como se dizia então em francês ?!... Le saute, até há um filme que passou na televisão de cá…

Ah!, oui?!... Nunca vi.

− E no entanto a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille

Une balzacienne, uma mulher de 30 anos já feitos!...Nasci em 1937, mon chérie.

− Ah!, sim, uma balzaquiana, como dizemos nós…

Morto o Antoine [lê-se: "antu-ane"], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á libertado de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro… Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros. os filhos do primeiro casamento.

Libertou-se sobretudo de uma estranha relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.

− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou remediada em França… Enfim, tenho o meu pé-de-meia. 

Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido segundo marido. Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie, como ela repetia amiudadas vezes, com humor, sem azedume, quase sem rancor. E, no entanto, foi uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela.

Foi uma vida passada entre o Portugal dos sombrios anos 30, 40, 50, e a França gloriosa, da V República.

− Voltei à minha terra natal, para morrer… mas só aos 100 anos. E agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.

Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido  materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélio,  como légionnaire

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor,  fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França.  O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu "accent": não carregava suficientemente os "erres"...

L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.

Eu havia-a conhecido, há já uns bons anos, quando ela  andava perto dos 75,  conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.

− Quando tinha quinze anos, mon chéri,  eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.

Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente, tendo-me autorizado a publicar a sua história de vida que "até dava um filme” (sic), com uma única ressalva:

− Só depois de ser chamada ao Reino dos Céus!... (Como ela queria viver até aos 100, perdi a esperança de poder publicar a sua história em tempo útil!... Charmosa, tratava-me por mon chéri.)

Era “crente sem ser beata”… E agora que “Deus a chamou ao seu reino”, fica o caminho aberto para partilhar as suas confidências. De facto, acabou de morrer, estupidamente,  de Covid-19, logo no início da pandemia. Constou-me que foi por infeção hospitalar… Ia fazer 83 anos.

Sinto-me, de qualquer modo, à vontade para evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconheço se deixou herdeiros, mas deve ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.

Resta-me dizer onde a conheci. Foi na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão. Agora, professores reformados,  passavam cá mais tempo. A Rosemarie era  visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos. 

Nunca soube exatamente quais eram as suas afinidades mas, pelo que me apercebi das nossas conversas, haviam-se tornado amigos  desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.

Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezassete anos de diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:

− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos  verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como punhais'... Quem cantava isto ?...Ah!, o Francisco José,. um rapaz do meu tempo...

Estes nossos amigos franceses adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido,  em vida, e aclamado no Olympia de Paris.

Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado,  em que conheci a Rosemarie, rapidamente ganhei a sua confiança e até afeição. Falávamos ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos nossos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras.  Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só comigo.

Disse-lhe que estava muito interessado em conhecer a  histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.

Acabámos por criar laços afetivos, de empatia e até de amizade. Ainda nos encontrámos três ou quatro vezes e falámos ao telefone. Com tristeza soube da sua morte, vítima da pandemia do século. Tratava-me, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal. Nunca teve filhos, ao que eu saiba.

Era da região de Basto, ou Terras de Basto,  sendo os seus pais  oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.

− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas,  uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.

E acrescentava:

− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.

Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou  para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O mais longe era para o Porto,  para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.

− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.

E mesmo assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…

As raparigas não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de uma mestra particular ou uma “regente escolar”.

No caso da Rosemarie,  já era uma moçoila quando abalou para Chaves, em 1952,  como “criadita de servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…

Fidalgo ?! – indaguei eu, curioso.

− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada ou muito pouco.

Eu sabia que tinha casado, já depois de atingida a maioridade, que naquela época era aos 21 anos.

− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.

Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves,  casou com "o primeiro fils de putain, o primeiro filho da puta", que conheceu num baile, já em Resende, em 1961.  E que a “desonrou” (sic).

Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine,  de quem voltaremos a falar, mais à frente.

A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor. Para mim, era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais, obrigando-me a reformular ou repetir a pergunta…

Nascida em 1937, a Rosemarie casou aos 24, "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...

− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época.

E confidenciava, com graça:

− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é  que percebi o sentido que os padres, no confessionário,  davam à expressão 'comer a maçã'.

O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 7 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.

Não se atreveria naquele tempo, a  casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida”. Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda,  que tivessem a desdita de  ser mães solteiras.

− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.

À medida que se entusiasmava com a conversa,  Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pêlo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a  inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não me deixavam todavia de surpreender, talvez por sermos de gerações diferentes, eu já filho do pós-guerra e criado em ambiente urbano, ela bem mais velha do que eu.

Afinal, isto passava-se no meu país, ainda nos anos 50 e 60. E eu não podia deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem  duras.

− No meu tempo, as moças repudiadas,  ou fugiam  para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.

− A liberdade paga-se sempre  cara!... Não nos é dada, conquista-se  − avancei eu, usando  um chavão que é, de há muito, um lugar comum.

− Ah!, sim, veja o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.

− A sério?!... A tiro ?!... Agora percebo por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…

− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos,  para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas, ao bufete!”…

Os “bailes mandados” ? Explicou-me ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador',  no meio,  a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras…

Mas os feitios de ambos,  e  sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.

Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a  maior parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as dívidas.

− Mas como é que vocês se conheceram ? – quis eu saber, intrigado.

− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…

− Em Chaves ?...

− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de  meia e quis celebrar… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…

− A tuna ?

− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca. Juntavam-se a outras tunas, ali da região do  Marão e Montemuro,  de Baião a Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa,  dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.

− E tocava bem, o seu homem ?

− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a contradança… Já havia rádio,  mas pouca gente tinha rádio e telefone…  E a televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele tempo éramos umas atrasadas… 

− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria, miséria mesmo ?

− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier – começou-me a tutoyer, a tratar por tu, a que eu não respondi do mesmo modo, continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela,  até como estratégia defensiva enquanto entrevistador…

Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de granito, tosca,  o interior com paredes de tabique, um quarto para os  pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.

Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e Guiné. Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à pequena nobreza rural, decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo. 

− E porquê Resende, Rosemarie ? – perguntei-lhe eu.

Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou promessa de emprego,   numa empresa encarregue, já em 1964,  dos trabalhos preparatórios da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).

Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria  ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E,  também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.  

Depois da separação (de facto mas não de jure), a Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...

− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?

Ela contou-me tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos factos.

A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia bailes, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 15 anos,  ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de varapau”.

− Varapau ?...

− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens…Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.

− O seu irmão ?!...

− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. ´

− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, que eu já estou perdido... Estávamos a falar do baile…

− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente, mas naquela época  eu era uma raparigaça que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar…E, depois, como também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.

−…Até ao dia em que...?

− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...

− Um amor de perdição!... Mas como assim ?!...

− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!...Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo  em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?,  'desavergonhada'!...Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio…

− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!...  Não me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...

D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque,  era o que eu era nessa altura…

− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…

Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na força da idade, se bem que ele  fosse mais  velho do que eu… E deixa-me dizer-te  que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.

− E a tuna, os bailes, as tainadas?... – perguntei-lhe eu.

− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...

− Ficou, portanto,  o caldo entornado – comentei eu.

− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.

− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…

− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…

− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…

− Passaram-se os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!... Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…

− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…

Ah!, oui!... Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso, estúpido… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.

E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.

− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar  a vizinhança... Eu desculpava-me,  que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim,  uma vergonha para a minha família...  Até um dia em que bati com a porta e voltei para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… 

− E depois ?...

− Lá conseguiu arranjar um passaporte, meteu-se um barco e fugiu para o Brasil… Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando me quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, com mais de 50 anos…

− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…

− Se foi!... Dava para outro filme… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée

 (Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19431. A Galeria dos meus Heróis (20): - A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (III e última Parte ) (Luís Graça)


Luís Graça, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Guiné, Contuboel, junho de 1969



A Galeria dos Meus Heróis: A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento - III (e última) Parte


por Luís Graça


Continuação (*)



11. (...)Eis,  em resumo,  alguns excertos da longa conversa que eu tive, mais recentemente, com a Nucha, permitindo completar o “puzzle” do retrato do seu ex-companheiro e da narrativa sobre a relação de ambos, que terminou num já longínquo mês de junho de 2016:

− De qualquer modo, houve uma punição legal e uma reparação material…

− Ele teve uma pena suspensa, caricata, e foi obrigado a indemnizar-me por danos físicos e morais…

− De mal o menos…
− Se eu fosse uma verdadeira lutadora, ter-me-ia esforçado por provar que vivíamos juntos a maior parte do ano, em união de facto… Por uma questão de orgulho, não o fiz… Claudiquei!... Nunca me tinha visto num tribunal, com montes de gajos a despirem-me, mentalmente, de alto a baixo!

− Ias pôr em causa o teu autoconceito de mulher livre e independente ?!

− Posso estar a ser burra, mas assim foi-me mais fácil varrê-lo completamente da minha vida e das minhas memórias…

− Não reconheço esta Nucha…


− Sou uma mulher do Minho… de pêlo na venta e nas pernas!... Nisso sou uma cópia da minha mãezinha, que era capaz ser má como as cobras, quando lhe pisavam os caules!

− Que disparate!

− Portanto, tecnicamente não houve violência… doméstica! Não éramos um casal, o juiz deve pensado que eu era um cabra, julgou o caso como uma simples agressão corporal…

−… na cama!

− Foi tudo muito sórdido!... Ele [o Vaz C…] tinha massa, arranjou um advogado, conhecido aqui na praça, que lhe deve ter levado umas massas valentes, mas limpou-lhe a barra, que era pesada…

− E inverteram-se os papéis, não ?!

− Sim, às tantas, eu é que era a má da fita, a fria e astuta Eva que ludibriou o pobre e indefeso Adão!... Tive de reconstituir não sei quantas vezes a cena dessa maldita noite!...

− Vais ter que me contar, desta vez, essa cena com todos os pormenores escabrosos… Os amigos têm direito à verdade…

− Poupa-me, por favor!

− Como é que eu posso defender-te quando as pessoas vêm insinuar que fizeste uma cena de teatro só para provocar o teu ex ?


− Foi o que o advogado dele procurou demonstrar perante o juiz, passando da defesa ao ataque… A minha advogada era uma jovem, minha conhecida, que estava mais atrapalhada do que eu!...

− Sei as coisas muito por alto, da primeira vez que falámos ao telemóvel, ainda estavas muito transtornada...

- Sabes, ele era um tipo misterioso… Deixa-me falar dele como sendo um fantasma do passado!... Pensava que o conhecia minimamente, que estupidez a minha!...Vivi com um animal estranho, durante oito anos, se não foram oito, anda por lá perto, com muitos intervalos pelo meio entra a casa da Foz e a rua da Alegria…


− Ele falou-me em tiros de G3, deu a entender que andou na guerra colonial… Não quis aprofundar o assunto, seria indelicado da minha parte...


− Sim, ele esteve na Guiné, entre 1963 e 1965, se não erro… Não sou boa em datas. Regressou com 25 anos e só depois é que acabou o curso de engenharia, faltava-lhe um ano ou coisa assim… Deve ter apanhado a crise estudantil de 62… Não te sei dizer.

− Nasceu portanto em 1940 ou por aí…

− Sim, ele era mais velho do que eu uma boa dúzia de anos… Eu sou de 1952.

− Falava-te da guerra ?

− Pouco ou muito raramente... Sim, quando fomos à Guiné, ou melhor, à ilha de Orango, no arquipélago dos Bijagós… Fomos de avioneta, diretamente de Dacar para Orango… Em rigor, não estivemos na parte continental da Guiné-Bissau. Nesses dias, que adorei, vi os estranhos hipopótamos que vivem tanto em água doce como salgada, e que vão desaparecer com a subida do nível do mar, daqui a algumas décadas… Sim, nesses dias, ele falou-me por alto de algumas recordações do tempo da Guiné… Tinha estado em Bubaque, em 1964, numas curtas férias…


− Mas nunca te falou em episódios de guerra ?!... De um prisioneiro que terá tentado fugir e que foi abatido à queima-roupa...


− Não... Acredito que não deve ter sido fácil para ele. Mas eu também não queria saber nada sobre esse passado obscuro. E muito menos da merda da guerra!... Às vezes apanhava-o a falar...sozinho!

− Deve ter tido também um divórcio litigioso… E deve ter havido, aí, no passado dele, mais episódios de violência doméstica, não ?!

− É bem possível, mas era assunto tabu entre nós. Nunca falámos da ex-mulher dele.

− O passado de cada um de nós é sempre uma caixinha de Pandora.

− E eu que o diga, meu amigo!

− Percebi que também perdeu os pais, ainda relativamente cedo…

− Sim, num estúpido acidente automóvel, nas vésperas de Natal quando iam para Viana do Castelo. Há uns trinta e tal anos. Ele é que ia a conduzir. Os velhotes iam atrás. Ficaram esmagados pelo embate de um camião TIR, que ficou sem travões…


− Não o amavas assim tanto…

− Vamos lá a ver: habituámo-nos à companhia um do outro. Tínhamos, de facto,  algumas coisas em comum. Por exemplo, éramos cinéfilos, adorávamos o cinema italiano do pós-guerra... Ele era um gajo culto, para os padrões burgueses do Porto… Gostava de ir ao teatro, gostava de ouvir um bom concerto sinfónico, etc. Mas, amor, amor… É uma palavra demasiado forte que eu não gosto de pronunciar em vão… Andei toda a vida à procura do grande amor da minha vida, como quem joga no Euromilhões… Desisti, comecei a jogar à raspadinha, ou seja, ao Centimomilhões!

− Somos utópicos…

− Somos mas é
 estúpidos, pelo menos nós, as mulheres, somos mais estúpidas do que vocês…

− Não digas isso, estás ainda magoada ao fim deste tempo todo.

− O meu sexto sentido, a minha inteligência emocional, falhou desta vez… Aliás, tem falhado mais vezes. Afinal, nunca acertei com os gajos que passaram pela minha vida, ou pela minha cama, que são coisas que deveriam ser diferentes!

− Não, quando se tem vinte anos!... 


− Sim, nessa altura o sexo era tudo… E ainda não havia, felizmente, a Sida!.... Mas já tínhamos a pílula, ao menos… Nós, as mulheres!... E vocês, homens, esfregaram as mãos de contentes... Lembras-te ? Dizíamos que era o "amor livre"!...


− Mas, afinal, ainda o odeias, ao último ex ?


− Se queres que te seja franca, tenho-lhe um pó danado, só consigo fazer o luto de uma relação, através do ódio… Ainda não deixei de o odiar... E não quero encontrá-lo, o que é difícil para quem vive numa cidade como o Porto: evito, por exemplo, ir à Foz, e aos locais que frequentávamos... Felizmente que ele não vai ao Parque da Cidade nem faz parte da nossa tertúlia (**)... Vivi um ano quase enclausurada como uma monja...

− O amor e o ódio são as duas faces da mesma moeda… Mas como é que se risca uma pessoa da nossa vida ?... Foram oito anos de vida juntos… Vocês partilhavam algumas coisas boas da vida: as exposições de arte, as galerias, o teatro, o cinema, a música, a boa comida, as viagens…

− Até o nosso álbum de fotografias destrui, num acesso de raiva, as férias “maravilhosas” que ele me proporcionou na ilha do Príncipe ou na ilha de Orango… Rasguei todas as fotos em que aparecíamos juntos. É assim que faço o luto de uma relação quando as coisas acabam mal por culpa dos gajos…

− Parece-me que o teu ódio também é contra a injustiça da justiça, não ?!


A Nucha fez questão de me acompanhar ao comboio, apanhámos o metro até Campanhã. Pelo caminho foi-me então contando, mais descontraída, o que se passara nessa noite de junho de 2016…

− A brincar, a brincar, já lá vão dois anos…

Vim no comboio, de regresso a Lisboa, a tentar reconstituir, por escrito, o longo monólogo que a Nuncha teve na cama com ele, o Vaz C…, e que terá sido o “móbil do crime”… Ou pelo menos a gota de água que fez transbordar o copo de uma relação já há muito desgastada pela usura do tempo e da ro
tina… 

"Imagina, encontrei o Mastroianni em Lisboa!... Um Mastroianni grego, ateniense. Foi um dos estrangeiros que participou na conferência. Ele era lindo como um deus do Olimpo. Mais novo do que tu, muito mais novo. Um quarentão, charmoso, brilhante, sedutor, como Apolo. De facto, dava alguma parecença com o Mastroianni quando novo, que, como sabes, sempre foi o meu ator italiano preferido... Isto de ser cinéfilo é o que dá: confunde-se às vezes a ficção com a realidade. Gostamos de tirar parecenças dos atores que vemos na tela com as pessoas de carne e osso que vamos conhecendo na vida.

"Em boa verdade, já nos tínhamos encontrado antes, uma vez, em Barcelona, há uns poucos anos atrás, recordava-me do seu nome... Era o último da lista, o Zacarias, mas nem ele reparou em mim nem eu nele. Também era mais novo e desconhecido. Desta vez, em Lisboa,  ele era a estrela da companhia. Intelectualmente brilhante, fisicamente atraente. O encontro foi de dois dias, 5ª e 6ª. No primeiro dia, à noite, houve o tradicional jantar de gala, oferecido pela organização. O sítio não podia ser mais romântico e inspirador, no terraço coberto de um hotel de charme, um antigo palacete do séc XVIII, revestido a fabulosos azulejos da época, e que milagrosamente sobreviveu ao terramoto... Com vista para a Baixa e o estuário do Tejo, estás a ver ?!... A noite estava perfeita, com uma temperatura já de verão, e Lisboa estava em festa com a proximidade dos santos populares.

"Comeu-se bem e bebeu-se melhor, sabes como são os estrangeiros quando vêm cá, a Lisboa ou ao Porto, em negócios ou trabalho, gostam de juntar o útil ao agradável, o dever e o prazer. São muito trabalhólicos mas à noite tiram a gravata e o casaco, o mesmo é dizer, a máscara. O ambiente era descontraído, e desinibido, e havia uma tremenda carga de energia positiva no ar.

"Os trabalhos, no dia seguinte, só recomeçavam às 10h00, por alteração de última hora do programa. Esperava-se a presença do ministro. Ainda fomos ao Bairro Alto, mais para ver o ambiente e andar um pouco a pé. Depois regressámos ao hotel, que não era longe, estávamos alojados no mesmo sítio, e por coincidência no mesmo piso. Como estava sem sono e, em boa verdade, sentia-me 'very, very free, cool, happy', uma sensação que há muito não experimentava. 

"Apesar da nossa diferença de idades, para aí vinte, o Mastroianni quis ser gentil comigo, ficou mais tempo na conversa, bebemos o último copo 'para a sossega' (, fez ele questão de mo oferecer!), acabámos por subir juntos, no elevador, despedimo-nos com um beijo e eu aí..., tive uma sensação estranha, um impulso, agarrei, qual leoa, com as duas mãos, aquela cabeça de Apolo e,zás!, ..."

− Foi nesse preciso momento que o gajo, que estava a um canto da cama, a fingir que me ouvia, saltou como o tigre da Malásia, ferrou-me o pescoço com os dentes, tapou-me a boca com uma mão, puxou-me os cabelos com a outra, e deu um urro que ecoou pela casa toda: "Cala-te, sua...!"... E tentou estrangular-me, quase até à asfixia total. Tive uma fração de segundo de lucidez para perceber o que estava a acontecer e que ele me ia matar... Foi aí que consegui, num derradeiro esforço hercúleo, libertar a minha perna esquerda e dar-lhe uma joelhada fortíssima no baixo ventre. Deu um urro de morte: "Sua....caaaaa... braaaaa!!!!"... E, "in extremis", largou-me, desistiu, bloqueou, caiu exausto na cama, teve um ataque de choro, histérico ... O resto já sabes...

− Sim, conseguiste chamar o 112...

− Saltei da cama, cheia de dores, num estado miserável, desgrenhada, a roupa rasgada, pedi socorro ao 112... Não ofereceu resistência quando chegou a polícia... Só o voltei a ver no tribunal. Há um ano e picos. O processo correu célebre.

− E tu é que foste... a cabra!!!

− O gajo ficou completamente desvairado com a cena que eu estava a contar, em voz alta, mais para mim do que para ele... Na sua imaginação pornográfica viu-me agarrada ao grego, a rebolar na cama!... O gajo tratou-me como uma puta, privativa, a quem pagava, de vez em quando uns jantares em restaurantes de luxo, só para eu ser dele!

− E não aconteceu rigorosamente "mais nada" com o teu grego ?!...

− Não vou dizer que não estava excitada... Se calhar até era capaz de ir para cama com ele, mas fiquei por ali, peguei-lhe na cabeça com as duas mãos, como uma mãe faria a um filho, dei-lhe um longo beijo de boas noites ... e de despedia!... No dia seguinte, trocámos olhares cúmplices, acabou a conferência, ele apanhou o avião para Atenas e eu o comboio para o Porto... Nem sequer sei onde mora!...

De confidência em confidência, a Nucha ainda me disse:

− No fundo, fiquei com uma pena danada de não dormir com ele nessa noite, irrepetível! Ainda hoje não sei porque é que não o fiz... Muito provavelmente porque ele não me deu  "luz verde"... Sou muito intuitiva nestas coisas, dou muito importância ao comportamento não verbal dos meus parceiros... Senti atração por ele, não senti atração dele por mim...


− O teu Apolo não estava nos dias dele... Os deuses são caprichosos... tão ou mais que os humanos...


− Claro que eu fui completamente idiota ao contar esta história ao meu ex... Se calhar até fui cruel, sem intenção de o ser... Ou, se calhar, inconscientemente, quis provocá-lo, testar os seus limites de racionalidade...  Dir-me-ás, também tu, que, antes de seres meu amigo, és macho, que as mulheres não podem brincar com o fogo...

− Foi por isso que os homens, com medo, vo-lo roubaram!... É um dos mitos mais antigos da humanidade!

− Estás a ver ?!...Uma muher não pode ter desejos, não pode ser proativa em matéria de sexo...E muitos menos se tiver cabelos grisalhos... Uma gaja aos 64, era a idade  que eu tinha na altura, em 2016, não pode desejar um homem, vinte anos mais novo... Grego, lindo com o Apolo!... Sabes ?!,  tenho reconhecer que estou velha e acabada!...

− Que disparate!... Ainda estás aí para as curvas, como dizem os machos... Ou, como dizem aqui no Norte, ainda és uma gaja boa como o milho...

Não voltei a ver a minha amiga Nucha desde a nossa última conversa, em Campanhã, há uns meses atrás. Desejo-lhe, ainda a tempo, bons augúrios para 2019. E, nomeadamentem, mais sorte aos amores, já que a não tem tido ao jogo.



Alfragide, 21 de janeiro de 2019

Texto e foto: © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd.postes anteriores da série > 


1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes! (Luís Graça)

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19428: A Galeria dos Meus Heróis (19): A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (Parte II) (Luís Graça)




Luís Graça, CCAÇ 12, Guiné, Contuboel, jumho de 1969


A Galeria dos Meus Heróis > A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento-II Parte

por Luís Graça



(Continuação)(*)



7. (...) E exemplificou,o meu amigo psiquiatra:

− Com mais ou menos dor, os casais separam-se ou divorciam-se... Nalguns casos, mais raros, é o homem que "parte à aventura", mudando de casa ou até de cidade. Mas, para isso, é preciso ter liberdade económica. Neste caso a mulher ainda hoje está mais limitada do que o homem. No futuro, vão-se inverter os papéis...

− Mas não é o caso da minha amiga Nucha que saiu da casa do companheiro e, segundo parece, para não mais voltar.

− O que eu entendo, só se ela fosse masoquista... Mas, como médico e psiquiatra, já vi tudo ou quase tudo na vida... Como sabes, a capacidade de amar, odiar e perdoar é quase infinita, entre os seres humanos. A "fidelidade canina", entre nós, pode ser ainda maior do que nos cães... "O volta, querido, estás perdoado!", não é, infelizmente, uma figura de retórica do passado.

− Eu também não ponho as mãos no fogo por ninguém... Mas, repara, neste caso de que te falei por alto, são pessoas da chamada classe média ou classe média alta... São pessoas ditas cultas, adultas, viajadas, livres, que frequentam a Casa da Música e o Museu de Serralves, no Porto (ou a Fundação Gulbenkian e o CCB, se vivessem em Lisboa)...

− Mas não são muito diferentes dos mesmos, homens e mulheres, que tu vais encontrar, nos cruzeiros de verão, "low cost", quais "lobos e lobas solitários", à procura compulsiva do seu macho, da sua fêmea...

− Felizmente que − acrescentei eu − as pessoas têm hoje mais mobilidade e liberdade, do que no passado... Pelo menos, em teoria... E nem precisam de fazer cruzeiros para se encontrarem e encetarem novas relações... Tens as redes sociais, as festas, a "night"...

− E os idosos ? O banco de jardim, a universidade sénior, os centros de dia...

− Ah!, e a sala de espera dos nossos centros de saúde... Mas esses são os pobres e os remediados...


Continuando o seu raciocínio, disse-me o psiquiatra:

− Repara que, noutros casos, a maior parte dos casais idosos, reformados, da chamada classe média, não chegam a separar-se, ou melhor, cada um dorme na sua cama, em cantos diferentes da casa, um na parte nascente, outro na parte poente, um na cama de casal, outro no quarto que outrora foi dos filhos... Enfim,conforme a disposição e o tamanho das casas...  Ou, então, quando a casa é suficientemente grande, constrói-se um imaginário "muro de Berlim"... Não se falam, evitam cruzar-se, passam mais tempo na cama, pagam as contas a meias, enfim, encontram um "modus vivendi", algo trágico-cómico. Claro que estas situações são transitórias e ilusórias... Correm o risco de acabar, mais tarde ou mais cedo, em depressão, doença, violência,e até suicídio...


Lembrei também, ao meu amigo,  alguns casos, do meu conhecimento, do mundo académico que podem ter alguma relação ou analogia com o caso de que estávamos a falar, e que ilustram a dificuldade que os seres têm em lidar com a idade, o envelhecimento,a reforma, a "morte social"... É o mito do Elixir da Juventude ou da Fénix Renascida...


Ele não deixou de sorrir quando eu lhe falei das chamadas "crises da andropausa dos senhores professores catedráticos"...

− Sabes, tão bem como eu, de casos de professores universitários que perdem a cabeça com alunas, 20 ou 30 anos mais novas, com quem têm "paixões escaldantes", efémeras umas, e outras que até dão em casamento ou uniões de facto... Miúdas novas, da idade dos filhos ou até dos netos... Paixões que os colegas de departamento procuram "abafar" a todo o custo para evitar estardalhaço...

− Quem diz alunas, diz alunos − corrigiu o psiquiatra.


− Ah!, sim, em matéria de homofobia, a Universidade está hoje muito melhor do que no nosso tempo...E há casos de ssédio sexual, como em todo o lado...Mas não generalizes...

− Mas voltando às paixões serôdias, não te esqueças que no passado era de bom tom, sobretudo entre as classes altas, os homens casarem com mulheres mais novas  ou até muito mais novas...


8. Mas já que estamos a falar de sociedades patriarcais e falocráticas (, embora os papéis entre os homens e as mulheres estejam hoje a mudar, a um ritmo talvez mais assustador para os machos...), ocorreu-me a pergunta que já antes havia formulado a mim mesmo:

− Afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha, o "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico da nossa "Poetisa", sempre politicamente incorreta e com gosto (perverso) para as tiradas panfletárias e provocatórias...

Bom, vim a conhecê-lo mais tarde,não no Porto,mas em Lisboa,por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum, fotojornalista, que mo apresentou:

− O eng. Vaz C...

Não vou dizer que ficámos amigos, seria uma fanfarronice da minha parte, afinal não costumo fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição" ,uma quebra de solidariedade para com a minha amiga Nucha que eu conheço há mais de vinte anos, e que é uma boa e leal amiga do Norte.

Mais tivemos depois, mais tarde, uma conversa franca, "de homem para homem" (como gostam de dizer os machos). Ele fez questão de apresentar a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... O tribunal condenara-o a uns tantos meses de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos patrimoniais e morais, à Nucha ( que ele sabia, de resto,  ser minha amiga de longa data.)

Não sei porquê, devo-lhe ter inspirado confiança. Por outro lado, eu tinha a vantagem de não ser do Porto e de não viver no Porto, e muito menos na Foz.


9. O eng Vaz C... (continuo a omitir o apelido por razões óbvias) é um engenheiro químico. Fez toda a vida no Porto mas tem as suas raízes no Alto Minho.

− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho e neto de engenheiros... O meu avô, esse, era engenheiro militar.

Tratavamo-nos por você, como convinha, para manter a "devida distância.... E eu, por minha vez, também evitava interrompê-lo e fazer-lhe perguntas eventualmente embaraçosas...

Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**), nem muito menos aos seus colegas professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia (aliás, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí, de resto, que nos conhecemos.)

Também eram raros os amigos comuns. O Vaz C... não me explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem já chamam,no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...

Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, cada um com a sua casa, como convinha. A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Era um "casal atípico". Viviam juntos há cerca de oito anos, com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que ela nunca quis conhecer.

"Viver juntos" não era, para ambos, uma expressão totalmente correta. A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por comodidade, por preguiça, por inércia, por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados".

− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-me ela.

Ele, às vezes, apresentava-a como "namorada", nomeadamente aos vizinhos e conhecidos. Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pelo condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Ns despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar. De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogia que ele próprio fez, na conversa que teve comigo. A Nucha confirmou-me que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.

Não era um desses "novos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico", vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. A casa na Foz ("um casarão"...) já vinha de família. O pai fora um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário).

− Investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...


10. Foi ele próprio que me deu alguns detalhes do seu "currículo". Tinha sido, durante mais de três décadas, um "alto quadro" de um conhecido grupo empresarial do Norte,ligado à indústria transformadora. Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)


− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos, se o grupo não se abre, os filhos e os netos estariam hoje na miséria, a empresa familiar que eu conhecia não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... (Hoje a empresa está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional, segundo apurei.)

E prosseguiu o meu interlocutor:

− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um cancro, fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. Com um prognóstico tão reservado, entrámos todos em parafuso. Ele era muito centralizador e gostava sempre de ter a última palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, não tinha funções executivas.

Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão, quando regressou à fábrica, vindo da América ou da Inglaterra, com um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, com toda a naturalidade deste mundo, o lugar que um dia, pela ordem natural das coisas, o pai lhe deveria deixar... Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão...


E confessou-me, o Vaz C...,  o que sentiu com a morte do "Velho":

− No dia seguinte, senti que aquela casa também já não era a minha...

A correlação de forças mudou com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.

O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", com funções consultivas. 

Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine", acusando-o de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nem sempre benéfica) sobre o "Velho".

− Substituiram o timoneiro (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se...

Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...

− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...


O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.

O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele costumava de dizer, para brincar com os colegas), mas era de outra geração... Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar e de resolver problemas".

− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa (e, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se). Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, às nacionalizações, ao PREC, à intervenção do FMI,etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...

Não foram trinta, emendou ele:

− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...

Por outro lado, conhecia o pai e o avô do Vaz C..., também eles engenheiros. Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de o contratar para a sua equipa de gestores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, invenção muito mais recente: eram meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa... 

Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e até um confidente do "Velho".

Resumindo:

− Eu era um "colarinho dourado" bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. A única coisa que me aconteceu nestes últimos dez anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabo de a perder, há um ano atrás, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher.

Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso, o meu interlocutor ia sendo traído pela emoção, recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:

− Há coisas que fazemos que não têm volta: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...

Depreendi, ou deduzi eu,  que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...


11. Estava à espera que ele me contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso para mim... Respeitei o seu silêncio, levantei-me, despedi-me e nunca mais o voltei a encontrar.

Só mais tarde é que consegui saber pormenores, através da Nucha,  sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação.

(Continua)
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Notas do editor:

(**) Vd. postes de:

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes! (Luís Graça)