Mostrar mensagens com a etiqueta 1976. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 1976. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23465: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVIII: Em 1976, uma viagem pela velha Europa para esquecer a guerra e espairecer do PREC


Itália > Veneza > 1976 >  De gôndola, com pose de turista



Países Baixos> Amesterdão > s/d > ... Numa outra viagem


Fotos (e legendas) © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Joaquim Costa, ontem e hoje. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado. Foi também professor do ensino secundário 
(os últimos 20 anos em Gondomar).




Já saiu o seu livro de memórias (parte da história da sua  vida),
de que temos estado a editar largos excertos, por cortesia sua (*): 
“Memórias de Guerra de um Tigre Azul” (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2021, 179 pp)
Tem um pósfácio da autoria do nosso editor Luís Graça (**). 

O livro pode ser pedido diretamente ao autor, através do email jscosta68@gmail.com .
O valor é de 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro. Não esquecer de indicar o endereço postal.

 

Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVIII:  Em 1976,  uma viagem pela velha Europa para esquecer a guerra e espairecer do PREC   



O encontro improvável, em Veneza, de três “Morcões” do Norte 
e  de um "Alfacinha", especialista em Matacanhas

  

Nos primeiro anos depois da Guiné vivi sofregamente os dias, “engasgando-me” aqui e ali na ânsia de agarrar o mundo todo num só dia. Fui à  procura de resgatar os três anos “roubados” da minha juventude, até hoje ainda não devolvidos.

No ano de 1976 , eu e mais dois companheiros, o Gil Marques, jovem empresário da indústria têxtil e o Miguel, professor de economia e contabilidade, decidimos, depois de mais uma noite de copos na tasca do “Pega”, hoje um restaurante com nome no “Evasões” e “Boa Cama Boa Mesa” (à nossa custa), decidimos aproveitar as férias (e espairecer um pouco da loucura do PREC ) numa viagem (de 30 dias) pela Europa, numa das nossas Dianes,

Num dia se decidiu e no outro abalamos (já tinha na minha posse o famoso “Salvo conduto” inexplicavelmente, já sem guerra e em democracia, ainda obrigatória para passar a fronteira) , com partida junto ao nosso café das tertúlias e “jogatanas” de bilhar diárias, o “Pica Pau” com todos os presentes e amigos desejando boa viagem, na Diane do Gil.

Lá consegui meter num pequeno saco umas peças de roupa, um mapa e uma tenda que nunca havia montado. Decidida a primeira paragem em Madrid, como pessoa mais sensata do grupo [???], lá fui pensando em programar minimamente o itinerário de toda a viagem até à capital espanhola.

Já em França, a caminho de Nice, com um amortecedor a queixar-se do peso, surgem na estrada muitos jovens a pedir boleia (muito comum na época em Portugal e em toda a Europa). Eis quando aparece uma jovem no meio do caminho, quase nos obrigando a parar, com o Miguel aos gritos, pára, pára ... mas o Gil não parou. Ficamos furiosos , mas ele, com a sua calma, de quem não foi à guerra e tem ainda toda a sua juventude pela frente (pois muitas mais lhe vão aparecer à frente), chama os dois “velhos” à razão:

−  Não vamos passar o tempo nisto! 

Dois dias já gastos (talvez ganhos ?) com as lindas catalãs (professoras primárias a trabalhar em Barcelona) desrespeitando o programa minuciosamente elaborado pelo Costa (apenas uma tarde em Madrid), e para além do mais o amortecedor não ia aguentar. 

 −  Oh Gil ! Aguenta, aguenta! 

Tanto insistimos que ele que deu a volta, passou novamente pelo local onde ainda se encontrava a miúda e lá paramos para dar boleia à donzela (que confirmava todos os atributos conhecidos do “mito urbano” sobre as Suecas!). Enquanto o Miguel abria gentilmente a porta, surge por detrás de um arbusto (estilo David Attenborough) um rapaz com dois metros de altura, com a miúda sorrindo dizendo: 

  Não se importam de levar também o meu namorado?     empurrando-o para dentro do carro antes que dissessemos que não.

Durante a viagem o Gil, preocupado com o amortecedor, passou o tempo a chamar nomes ao gigante Sueco, utilizando todo o vocabulário vernáculo do norte que tinha mais à mão, enquanto o rapaz olhava para ele, divertido, sempre com um sorriso nos lábios.

Este incidente foi motivo de conversa até Veneza, onde montámos (tentamos montar ), pela primeira vez,  a tenda num parque de campismo (até Veneza sempre dormimos ao relento apenas com o saco cama).

Começámos a montar a tenda mas não atinávamos com a quantidade de ferros. Já desesperados, diz o Gil:

 
  Não és tu engenheiro? Então trata tu disso,  que eu vou tomar banho. 

O Miguel aproveitou a deixa e fez o mesmo.

Ainda não refeitos da boleia dada ao gigante Sueco, durante o banho continuaram os insultos ao rapaz em

voz alta que se se ouviam em todo o parque. Até eu, que também não atinava com a tenda (ou faltava ferros ou faltava pano), estava a ficar incomodado com os palavrões (afinal sou professor,  “carago”...).

Entretanto, sinto uma mão no meu ombro, viro-me, e vejo um homem lourinho, de olhos claros dizendo, em bom português: já uma pessoa não pode estar com a família sossegada no parque de campismo, sem estar sujeita a ouvir este chorrilho de palavrões. 

Este lourinho era o grande amigo Caetano (Furriel enfermeiro da companhia), o mesmo que me tirou uma matacanha do dedo grande do pé (com a sua faca do mato?) no Cumbijã (Guiné) de boas e más memórias.

Queria eu fugir das lembranças da guerra, mas nem aqui, no norte de Itália estava a salvo... nem do PREC pois que na altura o PCI (Partido Comunista Italiano) e a DC (Democracia Cristã) mediam forças taco a taco, com governos que não duravam 1 mês... E sempre carregados com um saco de notas, pois só para pagar uma fatia de melancia era um molhe de notas (vinte e cinco mil liras!)

Foram umas belíssimas férias: baratas, com muita adrenalina, poucos banhos e ... ???

___________

Notas do editor:

(*) 8 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23336: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVII: O "meu" regresso à Guiné (3): Os Bijagós que muitos de nós nunca vimos - II (e última) Parte

(**) Vd. poste de 8 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23245: Agenda cultural (811): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, 11 de junho de 2022, sábado, 11h00: Luís Graça apresenta o livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul"

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23012: O segredo de... (37): Demburri Seidi: demorou mais de dois anos para sair da sua boca o testemunho sobre os trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976, devido em parte ao medo que sentia e a manifesta dificuldade em falar sobre a "justiça revolucionária" praticada pelos vencedores contra os vencidos (Cherno Baldé)



O Comandante das FARP Quemo Mané (Canjabel, região de Quínara, c. 1932 - Moscovo, 1985). Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta 05248.000.024Reproduzido com a devida vénia...

Citação:
(1966-1973), "Quemo Mané", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43764 (2022-2-19)



Título de viagem (servindo de passaporte),  emitido pelo Ministério da Defesa e da Segurança Nacional,  da República da Guiné. Data: Conacri, 17 de junho de 1968. Titular: Quemo Mané, de nacionalidade guineense, nascido por volta de 1932, em Canjabel, caçador de profissão (sic), residente em Conacri,  B, 1º 298. Motivo da viagem: tratamento médico na URSS. Validade: um ano.

Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta   07200.172.017. Reproduzido  com a devida vénia...

Citação:
(1968), "Título de viagem", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41544 (2022-2-19)


1. Em 2013,  quando publicámos o relato de Cherno Baldé sobre os acontecimentos em Cuntima, no norte da Guiné-Bissau (*), estávamos perante  a revelação de um duplo segredo:  (i) o de Demburri Seidi (nome fictício, por razões de segurança) de quem foi obrigado a assistir às execuções públicas, da inteira e única responsabilidade do comandante das FARP Quemo Mané (c.1932-1985); (ii) mas também do Cherno Baldé, que levou o seu tempo (dois anos) a recolher e a traduzir esse depoimento... e mais uns tantos até decidir publicá-lo no nosso blogue...

Daí fazer todo o sentido publicar um comentário do Cherno Baldé ao poste P11762 (*), transformando-o em poste desta série "O segredo de...".  Passados mais de 8 anos não temos conhecimento de mais nenhuma outra versão sobre estes acontecimentos que, de resto, são do domínio público na Guiné-Bissau, mas que o tempo já fez esquecer. Infelizmente Cuntima não foi exceção, nos primeiros anos que se seguiram à independência.

Em 23 de junho de 2013 escrevemos (*):

(...) Estamos então em condições de publicar hoje, num único poste, o notável e inédito documento que ele nos pede para publicar no nosso blogue (que também é dele, e de todos os guineenses, homens e mulheres de boa vontade, que querem construir connosco as pontes do futuro sem destruir os vestígios dos bons e dos maus momentos do nosso passado comum). 

 Embora extenso, é importante que se publique na íntegra, num só poste, para manter a unidade de leitura. Naturalmente, estamos abertos à publicação de outros testemunhos, de outras fontes, que contestem, ou corrijam, ou complementem, ou melhorem esta versão que contem as recordações de Demburri Seidi quando jovem, em Cuntima, novembro de 1976. (...)

Mais recentemente, republicamos em parte este poste (**).  


2. Aqui vai então o comentário do Cherno Baldé (***)

"Pode ser até que se trate de uma etapa obrigatória da evolução de todos os povos... É só analisar a História dos povos velhos do mundo e tirarmos as conclusões objectivas." (A.P. Costa)

"Sejamos pragmáticos com a História, o país Guiné-Bissau nasceu assim. Houve vencedores e vencidos e as represálias dos vencedores sobre os vencidos pressentiam-se na sua 'cartilha' comportamental, no uso, pelo PAIGC, da violência interna para dirimir conflitos». M. Joaquim.

"...Para tudo há explicações, mas para isto não há justificação". (L. Graca).


Caros amigos, ex-combatentes,

Muito obrigado pelo feedback ao pequeno texto que se foi relativamente facil de traduzir e trabalhar, demorou mais de dois anos para sair da boca do Demburri Seidi que testemunhou estes acontecimentos em 1976, em parte pelo medo que ainda o habita e, também, por manifesta dificuldade de falar sobre esta justiça revolucionária praticada contra os "fracos".

Para quem não sabe, eu venho de longe e, como tal, durante muitos anos, acreditava no que o Manuel Joaquim, na esteira do A. P. Costa, chama de "conclusão objectiva" (ver citação acima).

Inclusive acreditava piamente que as vítimas do comunismo da era estalinista se justificavam plenamente em nome da necessidade suprema do progresso dos povos. Hoje sei, felizmente, que estava redondamente enganado.

Eu, pessoalmente, estou tanto revoltado contra a prática criminosa do PAIGC como a prática, não menos criminosa e insensata, das chefias do MFA que, aparentemente, não só não tinham o controlo da situação, mas também não quiseram ter em conta a posicão da JSN - Junta de Salvação Nacional, no processo da descolonização. 

Se calhar já era tarde demais, não sei, mas se a solução era política e não militar, como se dizia, não se compreende que sejam os militares a ditar as linhas basilares da orientação estratégica a seguir num momento e sobre assuntos cruciais da história de Portugal e das suas extensões territoriais em África.

De qualquer modo e para não me alongar muito, vou ao encontro do Luís Graça para dizer que, de facto, para tudo pode haver explicacões... mas não há justificação para o que aconteceu na Guiné no pós-independência.

Não consigo esquecer uma frase que o Marcelino da Mata proferiu numa das suas raras interevenções públicas, mais ou menos nestes termos: "Nós éramos muitos, provavelmente muito mais numerosos que as FARP, e, se nos permitissem, podíamos impor uma solução negociada que conduzisse a um referendum nacional sobre o território"-

Se havia o perigo do deflagrar de uma nova guerra, de qualquer modo, no fim haveria, presumo, maior respeito e contenção entre os adversários e não a humilhação que foi a sina de todos quantos estavam do lado Português. Revejam as palavras de Abbaro Candé que preferia a morte à humilhação a que estavam sujeitos, todos os dias.

Espero não ter posto mais lenha no fogo. Mantenhas.

Um abraço amigo a todos,
Cherno Balde
26 de junho de 2013 às 11:46 


3. Informação de hoje, em que o Cherno Baldé dá mais detalhes sobre o testemunho de Demburri Seidi:


O Demburri Seidi (nome fictício) é Oinca (da região do Oio, sector de Cuntima) que viveu alguns anos refugiado no Senegal (Casamansa) durante a guerra colonial. 

Fula de origem, mas mandinga de educação e cultura, um pouco como todos os fulas do Norte, pela longa convivência num meio de maioria mandinga, nesta região em concreto. Ele domina ambas as línguas desses grupos. 

A tradução foi de fula para o portugués, mas o mais difícil, primeiro, foi convencé-lo a depor e depois, foi preciso esperar que ele pudesse se recompor e ultrapassar a evidente dificuldade de falar sobre um acontecimento que o tinha profundamente traumatizado, pelo que, algumas vezes, tivemos que interromper por vários dias/semanas/meses, porque de cada vez que revia aquelas cenas macabras consumia-se num choro convulsivo e não conseguia continuar a narrativa porque ainda se ressentia do efeito, passados que eram mais de 35 anos sobre os acontecimentos. 

Foi preciso muita paciência e alguma insistência da minha parte, pois como dizem na Guiné "Quem teve a amarga experiência com um Cankuran, tem medo do Baga-Baga", porque ambos sao da mesma cor de terra vermelha.

A localidade de Candjabel ou Gan-Djabelia (em Biafada) que consta no documento sobre Quemo Mané, está situada no troço que liga Fulacunda a Nova Sintra, onde foi sepultudo, mesmo à beira da estrada do lado direito, no sentido Fulacunda/Nova Sintra.

Abraços,

Cherno Baldé

21 de fevereiro de 2022 às 14:39



Guiné > Região de Quínara > Carta de São João (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Canjabel, a nordeste de Nova Sintra.

Imfografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

(**) 18 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23006: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte: Cuntima, 16 e 17 de novembro de 1976: terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias, "cães dos colonialistas", por ordem do famigerado comandante das FARP Quemo Mané

(***) Último poste da série > 11 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22988: O segredo de... (36): Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74): louvado pelo comando do BART 3873, por, no decorrer da Acção Guarida 18, em 3/2/1973, em Ponta Varela, "ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro"

terça-feira, 25 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

1. Excerto de mensagem de Cherno Baldé, com data de 16 do corrente:

(...) Juntamente envio dois textos e algumas imagens de Bissau, para publicação no blogue da TG, se assim o entenderem. 

O primeiro texto, sobre os acontecimentos de Cuntima, em Novembro de 1976, é uma promessa antiga mas que só agora foi possível concretizar, o segundo é um 'fait divers' popularizado na época colonial e o resto são imagens sobre a actualidade da cidade de Bissau. (...)

Entretanto, a 21, o Cherno envia-nos outra mensagem, nestes termos:

Junto envio a versão final do texto sobre os acontecimentos de Cuntima, Nov 1976. A última que enviei não contem as alterações do texto que de resto não são significativas.

Um abraço amigo e aceitem os meus agradecimentos pela publicação do meu aniversário [, em 20 de junho,]  que, no fundo, mesmo se não é exacto, sempre nos comove a simpatia vinda de terceiros.


Li o texto sobre os acontecimentos de Cuntima (referentes a novembro de 1976), e fiquei sem fôlego. É mais um caso da violência de Estado, praticada por homens do PAIGC, e mais concretamente por um dos heróis do PAIGC, Quemo Mané, comandante das FARP, dois anos depois da "transferência" de soberania das mãos da antiga potência colonizadora para os novos senhores de Bissau.

No Arquivo Amílcar Cabral, no sítio Casa Comum, projeto desenvolvido pela Fundação Mário Soares,  há uma foto de Quemo Mané, disponível aqui, para além de outros documentos com referência a ele  É uma foto expressiva (e só não a  reproduzo diretamente, porque  tenho de pedir autorização para o fazer). Quemo Mané  tinha fama se ser um homem temperamental e violento. É um histórico da guerrilha: ele e Arafan Mané, são considerados os que "dispararam os primeiros tiros contra um quartel do exército colonial", em 1963, na região de Quínara.

O texto de denúncia,  escrito e enviado pelo Cherno Baldé (e há  muito prometido!), preocupou-me: por um lado, é inegável o seu interesse para o nosso blogue, e para a nossa memória comum, dos portugueses e dos guineenses que fizeram a guerra colonial; por outro, o Cherno Baldé vive em Bissau, tem mulher e quatro filhos e eu não tenho a certeza de que ele fica seguro, dando a cara... Foram estas minhas apreensões que  lhe transmiti, logo no dia 19:

(...)  É impressionante o teu relato dos trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976. Diz-me se o comandante do PAIGC ainda está vivo, bem como outros intervenientes que identificas E se podemos publicar o poste, em teu nome, na tua série, com toda a segurança... Presumo que tenhas as várias versões dos acontecimentos, de um lado e do outro... Onde estavas nessa época ? Em Bafatá ?...

Ainda há tempo alguém de Contuboel, que fez tropa no nosso lado,  me contou coisas (horríveis) do tempo, pós independência, em Bambadinca: ele assistiu, por exemplo, ao julgamento popular e à execução de um cipaio do meu tempo... Falou-me também da morte horrorosa e indigna de um régulo da região (...) . É importante falar deste período negro da história da Guiné-Bissau, com depoimento sérios, autênticos, honestos como o teu... Vejo que os fulas estão a perder o medo de falar. Ainda é preciso muita coragem.... Tenho grande admiração por ti e por todas vítimas do terror e da violência de Estado (...)


Ao que ele me respondeu, da seguinte maneira, corajosa e desassombrada:

(...) O Quemo Mané já não se encontra entre os vivos, pois de outro modo teríamos ouvido falar dele no decurso dos acontecimentos que sacudiram a Guine ultimamente. Comparados com o Quemo Mané, o terror da guerrilha, todas as figuras que protagonizaram acontecimentos militares na Guiné, depois de Nino Vieira -  os Ansumanes, os Tagmes, os Verissimos, os Zamoras e Antónios - são figuras de segundo ou terceiro plano, no contexto da guerra de libertação.

Mas é claro que sempre haverá riscos porque o partido existe sempre, os amigos e companheiros, a família, etc.,  o que não deve constituir motivo suficiente para impedir a publicação de acontecimentos que foram públicos e do conhecimento geral da população. Exceptuando o Quemo, no texto não aparecem nomes reais, e no texto que te envio agora, acrescentei um parágrafo nas notas finais, onde aparecem os nomes dos protagonistas. Procedam conforme acharem melhor, por mim tanto faz, eu já vivi o suficiente para não continuar fechado no medo de possíveis represálias. As versões podem variar mas o acontecimento é factual e como tal é relevante.

Acontece que o trabalho de escrever e publicar está sempre acompanhado de riscos de erros e de interpretação. Depois da publicação do poste sobre o Capitão Carvalho,  recebi uma mensagem no facebook de uma ex-esposa que, ao mesmo tempo, queria encorajar-me e refutar factos que eu vi com os meus olhos, mesmo se era criança. Afinal o homem ainda está bem vivo e em Portugal.


Um abraço amigo, 
Cherno Baldé. (...)

A minha resposta só poderia ser esta:

Grande Cherno, mereces todo o nosso apoio, apreço e solidariedade. O nosso blogue é muito conhecido e considerado. 
Um abração, amigo e irmão. 
Luís.

Estamos então em condições de publicar hoje, num único poste, o notável e inédito documento que ele nos pede para publicar no nosso blogue (que também é dele, e de todos os guineenses, homens e mulheres de boa vontade, que querem construir connosco as pontes do futuro sem destruir os vestígios dos bons e dos maus momentos do nosso passado comum).  Embora extenso, é importante que se publique na íntegra, num só poste, para manter a unidade de leitura. Naturalmente, estamos abertos à publicação de outros testemunhos, de outras fontes, que contestem, ou corrijam, ou complementem, ou melhorem esta versão que contem as recordações de Demburri Seidi quando jovem, em Cuntima, novembro de 1976.



Guiné > Colina do Norte >  Mapa 1/50 mil (1956) > Posição relativa de Cuntima, junto à fronteira com o Senegal.

Info: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


2. Cuntima, Novembro de 1976 > A revolta das milícias

Texto © Cherno Baldé (2013)

Introdução

A tradição africana diz que um lobo sem dentes, na floresta, é um lobo morto. Tudo o que acontece na vida tem as suas causas e consequências porque a ponta inicial de um fio leva, necessariamente, à sua ponta final. Se o caminho recto leva o viajante esclarecido ao objetivo almejado, os erros e a perfídia de uns podem conduzir a perdição inglória d’outros.

No prefácio do seu livro sobre Gêngis Khan e a invasão Mongol do séc. XIII, o romancista soviético V. G. Yan diz que “a obrigação moral de um cidadão que testemunhou acontecimentos extraordinários é de os transmitir e revelar aos demais cidadãos de forma escrita ou então se não está instruído na arte de registar palavras épicas num papel com a ponta deslizante de uma pena, então que transmita as suas recordações a quem o possa fazer, para que sejam impressas em superfícies consistentes à intenção das gerações vindouras. E quem não procede assim é semelhante ao homem avarento que colocou toda a sua riqueza num alforge e a enterrou num lugar desértico, quando as mãos frias da morte já estavam a acariciar-lhe a face”.

Ultrapassado o período de medo, de dúvidas e de incerteza quanto a pertinência de o fazer, é este o sentimento que nos anima ao tentarmos transmitir os acontecimentos de Cuntima, na certeza de que os caros leitores compreenderão as nossas limitações pessoais e humanas para revelar em toda a sua dimensão esta tragédia humana, mesmo se, no contexto global, não representa um caso de excepcional grandeza.


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Cuntima > Aspeto geral da povoação ao tempo da CART 3331 (1970/72). Na sua maioria a população era de etnia Fula, de religião muçulmana; havia uma pequena minoria Mandinga. Foto do álbum do ex-1º cabo Vitor Silva.

Foto: © Vitor Silva (2008). Todos os direitos reservados.


Contextualização

Em finais de 1976, a Guiné-Bissau, por um lado, ainda está a saborear os festejos do 2º aniversário da sua independência, conquistada a ferro e fogo pelo PAIGC, na sequência de uma guerra sangrenta que parecia não ter fim (1), com graves consequências humanas e sócio-económicas dos dois lados da barricada. 

Mas, por outro lado, ainda não se recompôs do choque psicológico causado pela mudança abrupta da situação que conduziu o país de uma guerra brutal e sem quartel, para uma paz podre e sem garantias de protecção das partes saídas de um confronto fatricída, pese embora a existência de um acordo de paz fictício que, se serviu para salvar a face, a honra e a dignidade de Portugal, como país colonizador, trará tudo menos a desejada paz entre os Guineenses.

No nordeste, em chão fula, ainda o espírito das populações procurava compreender e medir a dimensão real do drama ligado aos últimos acontecimentos e da reviravolta da situação onde, de repente, os antigos turras assumiam, para certas pessoas, a insuportável figura de heróis nacionais, de grandes patriotas e de combatentes de liberdade da pátria, reclamando para si o mais que discutível estatuto de melhores filhos da nação e, por essa via, privar aos outros os mais elementares direitos de liberdade, de justiça e de cidadania.

Neste panorama ainda incerto de mudanças e de inversão de valores, os antigos soldados nativos do exército colonial em geral e as ex-milícias em particular faziam figura de infortunados. Desarmados pelos seus antigos patrões, privados dos seus direitos, feridos no seu orgulho de homens e de combatentes e sem os meios de sustento a que estavam habituados, pareciam náufragos espalhados na vastidão do oceano das suas (des)ilusões. Perseguidos e desorientados, uma boa parte tinha sido obrigada a refugiar-se no Senegal, na região fronteiriça do Casamança, de onde muitos seriam presos e recambiados de novo para a Guiné no quadro de um acordo que permitia, ao vizinho do norte, liderado pelo pragmático presidente L. S. Senghor, grande poeta e humanista, participar na disputadíssima predação dos recursos haliêuticos nacionais.

Para o partido vencedor, que tivera o tempo necessário para pensar e delinear a sua linha de acção, o objectivo a atingir estava bem definido: Marcar posição, assentar alicerces, alargar e consolidar as estruturas do novo poder saído da luta. E era importante fazê-lo, sobretudo, nas zonas onde as populações não tinham aderido à luta, através de medidas de choque para marcar os espírítos e, desta forma, evitar o surgimento de contestações organizadas. 

O relato que se segue,  faz parte desta estratégia de terror e de intimidação deliberada a populações indefesas e executada com mestria e sangue frio, bem à maneira da guerrilha que assumiu o poder na Guiné em 1974, com o beneplácito do exército português. Muitos dirão que não, cada um suas razões, cada um seus argumentos.

Em Cuntima, pequeno aglomerado fronteiriço que tinha sobrevivido à guerra de fronteiras de 1973, nada fazia prever que nos dias seguintes seria o palco de acontecimentos que iriam marcar o período pós-colonial e perturbar a pacata vida da aldeia e suas gentes. A região vivia a despedida da época das chuvas e nas áreas alagadas de cultura de arroz, as premissas de uma boa colheita que se avizinhava já se faziam sentir pelo cheiro aromático do arroz novo e pela cor amarelada dos campos a perder de vista nas extensas planícies de terras baixas, rodeadas de verdes cinturas de palmeiras dendém. Com o fim da guerra as aldeias tinham sido repovoadas, todas as bolanhas tinham sido recuperadas e parecia não haver limites para criar a prosperidade tão almejada e recuperar o tempo perdido. Mas, nem todos pensavam assim, helás!

Dia 14 de Novembro - o ataque ao quartel

Ódio, coragem e perfídia

Na noite do dia 14 de Novembro de 1976, um grupo constituido maioritariamente por ex-milicias, cegos de raiva e de ódio, mas muito mal equipados, cujo material bélico se resumia em catanas de uso doméstico, facas de mato e algumas granadas, apostando no efeito surpresa, decide atacar e neutralizar o destacamento militar do PAIGC colocado em Cuntima.

Ao entrarem na aldeia, uma parte dirige-se para a casa de Sissão Seidi, uma decisão que será fatal a este pacífico aldeão que era colega de alguns dos elementos do grupo. Põem-no ao corrente das suas intenções, isto é,  atacar e neutralizar os homens do PAIGC e, de seguida, com as armas que iriam recuperar, liquidar todos os que, na aldeia e seus arredores, colaboravam com o partido.

Quando o grupo deixa a casa para dirigir-se ao seu alvo, o Sissão vai a casa do Comité da tabanca e, em segredo, conta-lhe tudo o que tinha ouvido dos assaltantes. O Comité apercebe-se de toda a gravidade da situação e sabe que não pode perder tempo, rapidamente, decide passar para o outro lado da fronteira, situada mesmo ao lado, levando consigo a sua família, mas antes de partir informa o incrédulo Sissão de que só voltaria em caso de derrota dos assaltantes.

O grupo aproximou-se em silêncio, encoberto pela escuridão da noite, consegue eliminar a sentinela e penetrar no interior do quartel, apanhando de surpresa os seus ocupantes. Os guerrilheiros do PAIGC reagem bem à investida, refeitos da surpresa inicial e melhor armados, obrigam os assaltantes a bater em retirada de uma forma dispersa e desorganizada. De acordo com a testemunha, o ataque teria durado cerca de 3 horas o que, manifestamente, parece exagerado, tendo em conta a disparidade das forças em presença.

O dia começa a amanhecer e os primeiros raios de sol começam a pintar de amarelo o horizonte claro do fim da época chuvosa. E, nas horas que se seguiram à retirada, alguns elementos do grupo assaltante entram, de novo, na morança de um antigo colega, também ex-militar, impelidos talvez pelo desejo de implicar o maior número de pessoas e convencem-no, desavergonhadamente, que já tinham feito o essencial do serviço, mas que, sem munições suficientes, não conseguiram limpar todos, pelo que, se ele tivesse uma catana bem afiada e um pouco de coragem,  podia ir dar o golpe de misericórdia aos feridos que estavam amontoados no quartel. Sem pensar duas vezes e empurrado pelo ódio que nutria pelos novos senhores, o homem não hesitou e com uma catana nas mãos correu para o local indicado, sem saber que se tratava de uma armadilha para o perder.

Quando chega ao quartel, encontra os guerrilheiros a porta da entrada, armados até aos dentes. O que fazer? Recuar? Tarde demais, ele precisa pensar rapidamente numa saida. Com as akas [, Kalashnikov,] apontadas, perguntam-lhe o que procurava ali aquela hora. O homem responde que vinha a procura de ajuda para socorrer um filho que tinha sido mordido por um cão vadio. Parece uma saída razoável, mas não será. Os guerrilheiros estão apressados, pedem a sua identificação e informam-lhe que no momento não tinham tempo para o ajudar, mas que voltasse mais tarde, juntamente com o seu filho.

No rescaldo do ataque das milicias

Medo e horror em Cuntima

Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o por ao corrente do que sucedera durante a madrugada. O enviado encontra a morança vazia de gente. Mas, na tarde do mesmo dia, informado sobre o falhanço do ataque e a debandada das milícias, conforme prometera, o Comité regressa com a sua família a Cuntima. O Comandante do destacamento dá-lhe ordem de prisão imediata, por comportamento suspeito. Inquirido sobre as razões que tinham motivado a sua fuga precipitada na noite anterior, confessa que tinha sido informado pelo seu vizinho, Sissão Seidi, mas que, lamentavelmente, não pudera prevenir as autoridades porque os assaltantes eram numerosos e bem armados. Disse ainda que fora obrigado a fugir devido a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça e que regressara após a confirmação de que o perigo tinha sido afastado. Ordenaram-lhe para os conduzir a casa do tal Sissão Seidi, onde os dois seriam presos e amarrados à moda do PAIGC, isto é,  mãos para trás e o peito bombeado à frente, estilo peito de pomba.

Na manhã do dia 16 de Novembro chegou em Cuntima o responsável militar da zona norte, o famigerado Comandante Quemo Mané, que assume a direcção das operações e manda convocar toda a população de Cuntima e seus arredores. Querem o máximo de gente e para se certificar que todos estavam presentes, guerrilheiros armados passam revista em todas as casas e sitios passíveis de albergar um ser vivo, querem todos, mulheres, velhos e crianças.

Os dois prisioneiros são colocados no meio da assembleia reunida. O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima. 

Que diabo o teria arrastado para as malhas do partido, ele que sempre fora um camponês simples, honesto e trabalhador, distante das lides políticas e das intrigas que esta engendra nos homens mais ambiciosos. Não servira na tropa colonial apesar dos benesses, do ronco e da fama que o estatuto augurava no meio social fula. Toda a sua família estava presente, a mãe, duas esposas, os filhos e o irmão mais velho. Com voz trémula, explicou tintim por tintim como os assaltantes o tinham acordado durante a noite, os seus intentos e as ameaças proferidas. O Comité da aldeia também repetiu a sua versão e as palavras trocadas com Sissão naquela fatídica noite,  bem como os motivos que o impediram de alertar os homens do destacamento.

Não foi preciso ouvir mais e, se calhar nem era preciso, o Comandante levantou-se e, com a frieza de quem estava habituado a tomar decisões graves, disse que,  pelos comprovados actos de rebeldia e traição à Pátria, os dois homens deviam ser fuzilados e imediatamente.

Ao ouvir as palavras “pá mata!” da boca do Chefe militar, a assistência ficou literalmente congelada. A rapidez e a dureza da decisão tinham surpreendido tudo e todos, mas quem conhecia o Comandante Quemo Mané durante a luta, sabia que com ele tudo era simples, rápido e demolidor como o turbilhão de vento em dia de tornado tropical. A semelhança da grande maioria dos Comandantes do PAIGC, apesar de rotundo analfabeto (2), subira na hierarquia militar por mérito próprio, distinguindo-se pela sua coragem, brutalidade e violência extremas, uma inteligência fora do comum e pelos sucessos acumulados nas operações que dirigia.

Deram ordens para que todos fossem presenciar o acto no centro da aldeia, mas antes de os levarem, um grupo de homens do partido dirige-se ao local onde estava o Comandante a fim de interceder a favor do Comité da aldeia, provavelmente, pela lealdade e serviços prestados no passado. Assim, no local da execução da sentença, só compareceu o assustado Sissão, diante de uma dupla de homens armados com metralhadoras de fitas metálicas, contendo perto de uma centena de balas. O caso não era para menos.

Tudo estava a postos, os dois guerrilheiros com as armas apontadas, o Sissão à frente,  com as mãos amarradas e olhos fixos nos seus carrascos, a população em pé, envolta em silêncio e no céu o Deus dos homens a registar mais uma crueldade humana. O Comandante da zona que ficara retido pelos colegas do partido para deliberar sobre a sorte do Comité, ao entrar no recinto, grita para os dois executantes:
- O que estão a espera, acabem com eleǃ

Os tiros sucedem-se ensurdecedores, o corpo de Sissão é projectado para trás com o impacto das balas das metralhadoras que continuaram a cuspir fogo até transformar o corpo num autêntico manto de retalhos. A poeira e o cheiro acre da pólvora invadiram o recinto. De seguida, um dos guerrilheiros pega no corpo inerte do defunto Sissão, tendo-o arrastado até ao pé da família, diz a estes:
- Aqui está o corpo do vosso cão, agora podem levá-lo, se quiserem!

Da multidão, ninguém proferiu uma única palavra, ninguém teve a coragem de sussurar a mais pequena lamentação, os guerrilheiros atentos ao menor gesto de indignação. Perguntaram se havia alguém que estivesse descontente com o que acabara de assistir. Como ninguém respondia, foram autorizados a dispersar-se no preciso momento em que se ouviam os gritos de desespero vindos da concessão de Sissão Seidi, cujos familiares a muito custo tinham conseguido conter a dor pela perda do seu ente querido.

Na tarde do mesmo dia, o Comissário Político da zona convocou todas as mulheres cujos maridos estavam ausentes, refugiados algures no Senegal, e que, eventualmente, podiam ter feito parte do grupo assaltante e intimou-os a deixar Cuntima para se juntarem aos seus maridos, pois que não tolerariam mais a presença de pessoas que viviam na aldeia, mas, ao mesmo tempo, passavam informações para fora. Mais que intimação,  era uma ordem que ninguém podia ignorar. As mulheres partiram levando consigo os filhos para um destino incerto.

Na manhã do dia 17 de Novembro, foram buscar o homem da catana para as averiguações que se impunham. O homem foi amarrado ao estilo peito de pomba e a população foi novamente convocada para mais um julgamento público. Perguntaram-lhe porque não voltara com o filho conforme tinham combinado, o homem confessou que na verdade ele tinha sido enganado pelos assaltantes e que a sua verdadeira intenção era liguidar os homens do PAIGC aos quais ele odiava com todas as suas forças e que,  mesmo depois de morto,  continuaria a odiar. De certa forma, a coragem deste homem desesperado tinha compensado a humilhação pública da população de Cuntima.

Levaram o homem ao mesmo sitio do dia anterior, a cabeça e o rosto encapuchados com um chapéu (sumbia) e para o executar, estavam novamente os homens das metralhadoras. O homem pediu para ver o seu filho mais novo. Retiraram-lhe o chapéu que cobria o seu rosto e,  durante alguns segundos,  olhou para o filho, depois pediu para que o cobrissem de novo e em voz alta, para que todos pudessem ouvir, disse que estava pronto para morrer. 

Acto continuo, o comandante deu ordens de fogo e a cena repetiu-se de novo. Como ninguém reagia e olhando para a multidão silenciosa, o Comandante aproveitou para informar a população aterrorizada de Cuntima que para ele e para o seu glorioso partido não custava nada e não constituía qualquer problema riscar a aldeia e a sua população rebelde do mapa da Guiné-Bissau. Com esta mensagem curta e clara,  tinham dado por encerrado o capitulo da revolta das milícias em Cuntima, mostrando assim a determinação do partido em impor a sua ordem.

A operação de procura dos assaltantes continuou nos dias que se seguiram. Durante as buscas, encontraram um dos assaltantes, gravemente ferido, a quem entregaram aos pais e que viria a sucumbir, poucas horas depois, dos seus ferimentos e, provavelmente, por falta de assistência mêdica. Como dizem os árabes, quem não consegue defender, com as armas, o seu ponto d’água, perdê-lo-á; quem não ataca o inimigo com todas as suas forças, sofrerá a humilhação da derrota com todas as suas amargas consequências.

Actos desesperados e suicídas,  como este, tiveram lugar em outros lugares do território, no período que se seguiu à proclamação da independência, sobretudo junto à linha da fronteira com o Senegal. Actos isolados e mal preparados que estavam condenados ao fracasso e cuja autoria, sistematicamente e sem uma explicação plausível, era atribuída à FLING, fazendo reviver velhos fantasmas do passado, aumentar o grau de crispação das novas autoridades e, em consequência, multiplicar a violência de represálias cegas, perseguições arbitrárias e execuções sumárias que marcaram a vida desta jovem nação que, para muitos, constituía um modelo exemplar de uma luta popular bem sucedida, contra o colonialismo em África e no mundo.

Bissau, 12 de Junho de 2013

Recordações de Demburri Seidi (3), tradução e texto de Cherno Baldé.
______________

Notas de C.B.:

(1) Na minha infância, povoada pelo espectro da guerra e das fugas constantes de um lado para o outro, quantas vezes não perguntara, a mim mesmo, se a minha vida estaria condenada a ser vivida assim no meio de uma guerra sem fim. Pela experiência dos mais velhos, sabiamos que no passado nem sempre tinha sido assim e sofriamos a bem sofrer,  com a guerra que nos minava a vida pelo medo de morrer em cada minuto, vivendo no improviso e na incerteza do momento, em abrigos imundos, quentes e húmdos, onde todos os ruídos eram ampliados ao máximo, rastreados e identificados a tempo, não fossem silvos de uma granada de obus a caminho ou de uma bala perdida na noite escura.

Para afugentar uma aldeia inteira, qual manada de bovinos na planície, bastava ouvir gritar na noite: “Aí estão eles!”. Não era preciso perguntar, toda a gente sabia quem eram “eles”. Uma vez, um dos meus tios ouviu o grito durante a noite e fugiu nu, como tinha nascido, e foi a mulher que lhe cobriu as vergonhas, no caminho, com o seu pano de cima.

(2) A propósito conta-se uma pitoresca estória sobre o Comandante, que aconteceu no período pós-independência. No término de uma aula rotineira, um Professor dá aos seus alunos um TPC (trabalho para casa) em que pede para citar exemplos de alguns animais voadores. Em casa, o filho pediu o apoio do Comandante, seu pai, para a conclusão do mesmo.
─ Isto é muito fácil ─ diz o pai ─ ponha os nomes de peixe e lagarto.

Na escola, durante a correção dos trabalhos o Professor pergunta ao seu aluno:
─ Quem te ajudou a fazer o trabalho?
─ O meu pai ─   responde o aluno, com uma ponta de orgulho.
─ O teu pai é um burro ao quadrado ─ diz o Prof.

A criança não diz nada e em casa conta tudo ao pai. No dia seguinte, o Comandante vai a escola armado com uma pistola e pergunta ao Professor:
─ O peixe voa ou não voa?
─ Voa ─ responde o Professor ─ mas debaixo d’água.

O Comandante pergunta de novo:
─ O lagarto voa ou não voa?
 ─ Voa ─ responde o pobre professor, com a voz a tremer ─ mas debaixo d’água.
─ Afinal quem é o burro ao quadrado? O burro ao quadrado é o professor que não sabe o que diz e a quem o diz ─ responde este.

Devagarinho, o Comandante coloca a pistola na cintura das calças e diz ao professor:
─ Agora continua a dar as tuas aulas e não te metas com antigos combatentes se não queres levar com uma bala na tua cabeça de burro ao quadrado ─  acrescentou antes de sair.

Um provérbio árabe diz: "Não menospreze uma criança frágil, pode ser que seja filho de um leão".

(3) Em 1974, Demburri Seidi (nome fictício) fez parte de um grupo de jovens que fugiu para juntar-se às fileiras do PAIGC, no mato. Após a independência, fez preparação militar em Canchungo, mas rapidamente chega a conclusão que, com o fim da guerra e sem instrução escolar, as suas hipóteses de subir na hierarquia militar eram praticamente nulas.

 Aconselhado por pessoas amigas, decide trocar a farda pelos estudos, colecciona alguns livros e escolhe a localidade de Cuntima, que dista a poucas horas da aldeia dos pais, para a sua formação escolar. E, sem querer, vai testemunhar os trágicos acontecimentos que se seguiram ao ataque de Cuntima (4) que acabamos de descrever e que marcaram a sua vida e sobre os quais, ainda hoje, não consegue falar sem que os seus olhos se encham de lágrimas.

(4) Comandante do destacamento de Cuntima - Capitão Madiu Kim;
Responsável da segurança – Sana Queita;
Comité da tabanca  ─ Samba Seidi;
Fuzilados ─ Soarê Seidi =Sissão Seidi; e Abbaro Candé = Homem da catana.
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11730: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (44): A mulher mandinga e o soldado português