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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22884: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIV: Dazhai, província de Shanxi, China, 1977





Dahzai... China profunda, China toda


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. C
ontinuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 23 de dezembro último.


Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais;  autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já 300 referências no blogue.
 




Dazhai, província de Shanxi, China, 1977


Recordo 大寨 Dazhai, pequena aldeia entre montanhas escalavradas, na província de Shanxi, durante anos bandeira vermelha da agricultura na China porque, em 1964 Mao Zedong lançou o slogan 农业学大寨 Nongye xue Dazhai, ou seja, “na agricultura aprender com Dazhai”.

Com Deng Xiaoping, foi o fim dos desvairos maoístas, das denominadas comunas populares, cresceu a responsabilidade no campo e a criação de riqueza. Dazhai foi silenciosamente lançada para o caixote do lixo do comunismo, tendo-se transformado num estranho pólo turístico, “vermelho” para os velhos nostálgicos do comunismo duro e puro.

Cheguei a Dazhai em Setembro de 1977, com 30 anos de idade, ainda meio maoísta e com um caixote cheio de ingenuidade sínica. No meu diário  – um achado de que muito me orgulho, no meu inédito Diário de Pequim 1977-1983, a publicar um dia –, anotei o que mais me impressionou em Dazhai.

Venho em viagem paga pelas Edições de Pequim a meia dúzia de estrangeiros que lá trabalham. Tenho direito a ruanwoche 軟臥車, ou seja “carruagem cama fofa”. Aprendi que, além desta, existem mais três tipos de carruagens, a yingwoche 硬臥車, ou seja, “carruagem cama dura” com sessenta beliches separados por tabiques, mais o “banco fofo”, almofadado e o “banco duro”, de pau, onde viaja a maioria dos chineses.

Por companheiro – somos apenas dois nas couchettes –, tenho um sudanês enorme, perto de dois metros de altura, de nome Ahmed Kehir, com feições de quase branco e pele negra. Pertence ao Partido Comunista do Sudão, vive exilado na China há doze anos, disseram-me ser poeta, trabalha na revista semanal Pequim Informação, edição em árabe e deve o bom tratamento que lhe é concedido ao facto de, há não sei quantos anos atrás, ter aparecido numa fotografia divulgada por toda a China ao lado de Mao Zedong, em amena cavaqueira com o grande timoneiro.

Comigo, a conversa, em mau inglês. A situação política em Portugal, em África. Pois.

Acordo com a claridade a romper pela janela da carruagem. Lá fora, no lusco-fusco do novo dia, montanhas esventradas, o comboio a avançar, lento e comprido. Túneis, incontáveis curvas e o trem de ferro serpenteando, atravessando pontes, ladeando aldeias penduradas na rocha. A paisagem é bonita, mas bruta. Há desfiladeiros, ravinas, tudo em grande. Isto é a China amarela, China e mais China.

Depois, um autocarro velho e gasto avança para os sessenta quilómetros de estrada até Dazhai. Caminhos estreitos, cheios de camionetas, carroças, carretas com os homens substituindo os animais de tiro. Camiões carregados de carvão, uma das maiores riquezas de Shanxi, motocultivadores barulhentos e fumegantes com um atrelado pequeno transformado em viatura de transporte. Sempre demasiada gente, na berma da estrada mal alcatroada ou a trabalhar nos campos.

Estamos em Dazhai. O chinês da província Shanxi, nestas terras ásperas e ingratas, amalgamou tudo, o suor, o sofrimento, o céu azul, o vento, as tempestades, a alegria, a vida e a morte. Aqui em Dazhai entendo melhor. Os camponeses, na labuta do dia a dia, mergulham na terra, fazem-na sua, são parte deste pó de loess que, depois de tanta luta e suor, lhes dá o pão, o trigo, o milho, o milhete, o sorgo, o algodão, e um dia acolherá os seus corpos.

Dazhai fica a 1.050 metros de altitude, sujeita à permanente erosão das águas e do vento. A pouca terra existente é, ano após ano, arrastada pelas chuvas e pelas enxurradas. As encostas ficam secas, delapidadas e pedregosas, lugares estéreis onde nada cresce. É preciso ir buscar a terra do loess ao fundo dos vales, subi-la, fixá-la nos socalcos também abertos pelas mãos dos homens, construir muros, abrir canais de irrigação. Onde existiam colinas carcomidas pela erosão do tempo vejo agora largas plataformas com 200 ou 300 metros onde amadurece o sorgo, o milho, onde cresce o pão deste povo.

Fico a saber que Jiang Qing, quarta esposa oficial e viúva de Mao Zedong, uma criatura bem pouco amada pelo povo chinês, membro proeminente do chamado “bando dos quatro”, visitou Dazhai em 1975, há apenas dois anos atrás, tendo trazido desde Pequim, no comboio, em carruagem especial, dois cavalos para se passear montando as elegantes cavalgaduras pelos caminhos da aldeia. As crianças da terra diziam que tinha chegado o circo. Os camponeses consideraram isso um insulto e não perdoaram a Jiang Qing. A toda poderosa senhora mandou-o cavar profundos abrigos subterrâneos, prevendo a eventualidade de Dazhai sofrer um bombardeamento atómico. No local que Jiang Qing lhes indicou para os abrigos, as gentes da terra acabaram por construir uma série de pocilgas para a criação de porcos.

À noite, solitário, na cama confortável do quartinho camponês meio suspenso sobre os telhados da aldeia, impressionado com esta terra, escrevo um poema:


Enrijece o milho,
amadurece o sorgo,
florescem laranjeiras.
Os camponeses de Dazhai
transmutam colinas em planícies,
encostas pedregosas em socalcos férteis,
vales inóspitos em searas de trigo.
As raízes vão buscar vida ao loess
adubado com estrume e com sangue,
o suor de cada um é o sémen
circulando no ventre da terra.
Os corações pulsam
ao ritmo da paisagem fecundada,
os meninos, brincam estudam, cantam,
a China cresce.
Mais fácil olhar a montanha que subi-la,
quanto mais elevada mais vasto o horizonte.
Mas haverá sempre outra montanha, mais alta,esperando os homens.

António Graça de Abreu

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Nota do editor: