domingo, 25 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22403: Blogues da nossa blogosfera (160): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (69): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


MEU AMIGO DOSTOIEVSKY

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ


Meu amigo Dostoievsky
nada temos a ver
aparentemente
um com o outro
a não ser o nosso encontro
pelos meus dezoito anos.
Apetece-me chorar ao recordar as noites
em que à luz de um foco olho de boi
debaixo dos lençóis
- para que minha mãe não visse -
eu invadia os teus livros
numa das maiores
e mais deliciosas aventuras da minha vida.
Ainda hoje me são familiares
o rosto de Sónia e a figura de Raskolnikov
luz mítica e mística dos que têm coisas em comum
orientando-se na direcção do símbolo
e do mundo sem forma.
Da mesma forma que te marcaram Balzac
Schiller
Victor Hugo e Goethe
tu imprimiste em mim a sensação
que te fez desmaiar
perante a beleza de Seniavina
na casa dos Wielgorsky
e eu não sou homossexual
meu caro Dostoievsky.
Perante a beleza
eu não sei ao certo onde pára o sexo
se no esperma de Úrano derramado no mar
se na poesia da Morte em Veneza.
Não é a realidade física que interessa ao simbólico
mas o significado do sexo na imaginação.
A dualidade do ser funde-se
na tensão interna de quem ama
e a união sexual não é mais
do que o apaziguamento da tensão interior.
Nunca te concebi humano
sobretudo depois dessa manhã
de rosto de pedra e gelo
em que viveste o mais trágico minuto da tua vida.
Um vento glacial varreu-me a fronte
ao ouvir o teu nome na chamada para a morte:
-Akcharumov!
-Shaposhnikov!
-Dostoievsky!
Hoje
depois de ter amado tanto
aceito a tua epilepsia
como o estigma mais marcante
da pureza da condição humana
e passei a considerar-te meu irmão
para o resto da vida.
Por isso me senti prisioneiro
quando entrei na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo
por isso chorei na Praça Semenovsky
onde viveste uma vida inteira
em dois minutos de morte.
Era como se fosse eu o condenado!
Também chorei quando reencontraste Suslova
apenas
pelo que sofreste ao ver que o amor não se repete.
A noite e o vazio
estão na origem cosmológica do mundo
e o amor é uma criança que cresce...
e deixa de ser criança.
Amor e morte
quando descobertos
acordam e fogem.
Para escrever bem é preciso sofrer
disseste um dia ao jovem Merejkovsky
quando a vida confundia as chamas do teu inferno
com relâmpagos de visionário.
Sofrer pode ser apenas sorrir...
frente a toda a utopia palpável
não paranóica nem delirante.
Foi a mim que o disseste
meu caro amigo
foi a mim que o disseste
na tarde cinzenta da tua morte
na hora da hemorragia que te vitimou.
Até hoje ainda não te agradeci.
Perdoa não ter acompanhado o teu féretro
mas nessa altura eu não existia...
ou será que te acompanho ainda hoje
neste pesado caminho do fim?

____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22382: Blogues da nossa blogosfera (159): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (68): Palavras e poesia

1 comentário:

José Botelho Colaço disse...

Lindo uma beleza, gostava muito de saber escrever assim. Abraço.