quarta-feira, 28 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22412: Historiografia da presença portuguesa em África (273): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (10) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Sala Algarve


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
É bem curioso este período das últimas atas das sessões da Sociedade de Geografia. Por um lado prossegue a exaltação ao culto dos heróis, os do passado e os do presente, há sessões para Vasco da Gama, a Pedro Álvares Cabral, para Capelo e Ivens, para Mouzinho de Albuquerque e Paiva Couceiro; afloram os interesses económicos e financeiros das duas colónias mais prósperas, os temas de Portugal continental vão-se diluindo. Até ao momento ainda não encontrei nenhum dado que explique o fim destas atas, é incontestável que o seu motor assentava na pessoa de Luciano Cordeiro (1844-1900), é bem provável que ninguém se abalançou, depois da sua morte no final de 1900, ao trabalho desta escrita. Vale a pena ver agora a bibliografia que permite outros olhares sobre o pensamento destes homens ao longo do quarto de século em que se afirmou o III Império Português, que tanto ficou a dever ao entusiasmo que reinava na vida da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (10)

Mário Beja Santos

A sessão solene de 5 de maio de 1900, comemorativa do Centenário do Brasil, na presença do monarca, vai revelar-nos autores empolgados, rendidos ao romantismo e ao naturalismo, veja-se o tom declamatório do Visconde de Almeida d’Eça:
“Portugal, terra de pequeno âmbito mas de natureza variadíssima nos aspetos, desde os píncaros alcantilados do marão e da estrela até às planícies de leves ondulações do Alentejo, desde a selvática torrente do precipite Douro até à mansidão do Lima, à poesia do Mondego, e à importância do Tejo majestoso, desde as costas de penedia negra da Roca e de Sagres, até aos brancos areais do Cabo de Santa Maria; terra de risonha vegetação, onde a giesta e a esteva vicejam nas alturas, o tomilho e a manjerona florescem nas encostas, rosas e madressilvas se enredouçam nos balseiros, papoilas e lírios atapetam os vales; onde nas asas da brisa primaveril das montanhas vai ao mar se arrastam eflúvios acres de pinheiros, aroma penetrante da flor dos carvalhos, perfume delicado das amendoeiras; onde ao murmúrio cristalino das fontes e ribeiros se misturam, suave harmonia, em manhãs de maio trilos namorados de toutinegras, em noites de luar de agosto endeixas magoadas de rouxinóis; terra cujos filhos são os sóbrios minhotos e transmontanos, tão industriosos e ativos, ou destemidos beirões que resistiram a Roma e expulsaram as águias de Napoleão, os afanosos alentejanos que da Lezíria e da Charneca tiram produtiva messe, os aventureiros estremenhos e algarvios que foram a Ceuta e foram a Malaca, terra que produziu Luís de Camões, o Épico, e Nuno Álvares Pereira, o guerreiro santo; terra que gerou o Infante Navegador, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque; terra que deu o ser a Pedro Álvares Cabral; bendita sejas tu, minha santa Pátria, bendita sejas tu, terra de Portugal”.
E, mais adiante, sem nenhuma perda de tirada apoteótica, aristocrata fala-nos do Brasil e tece considerações sobre colonização, convém ouvi-lo:
“Colonizar não é invadir regiões já habitadas e civilizadas para lhes tomar conta das fontes de receita, para lhes aurir o produto dos esforços do trabalho já orientado; não é entrar à viva força num país, exterminar-lhe os habitantes e substituir-se por completo ao primitivo dono; não é junto dos governantes assentar conselheiros astutos que fazem derivar em prol de quem lá os manda todo o caudal da riqueza indígena. Isso é conquistar, isso é administrar, isso pode ser glorioso, isso tem a sua explicação natural nas leis da História; mas isso não é colonizar.

Colonizar é receber das mãos do criador uma região nova, onde a natureza é tudo e a civilização nada, onde as florestas são virgens de machado, e as campinas nunca sentiram a charrua, onde as feras dominam triunfantes e os animais domésticos nem se conhecem, onde os habitantes são singelos, mas são ignorantes e são cruéis; e depois, com o esforço próprio, com a tenacidade no trabalho, com muita fazenda gasta de princípio, e com muita vida perdida na luta, desbravar a floresta, cultivar a campina, guiar as águas da torrente, exterminar as feras, fundas povoados, amansar o indígena bravio, ligar-se com ele, dar origem a novas raças que das raças cruzadas conservem qualidades, fazer uma nação nova onde a antiga se continue.

Foi assim que Portugal colonizou o Brasil, e fê-lo, não o esqueçamos, dispondo de tão poucos homens e tendo, durante mais de um século, de sustentar lutas sangrentas para expulsar estranhos cobiçosos. Pois bem, com tais contratempos e em período que para a grandeza da obra se pode dizer pequeno, em menos de 250 anos, Portugal tinha feito do Brasil e com o Brasil uma colónia modelo, tão rica, tão fluorescente e tão cheia de vida própria, que ao cabo daquele tempo, quando a Corte e o Governo se transladaram de Lisboa ao Rio de Janeiro, o fruto estava sazonado e a independência de facto começou então".


Como caminhamos para o termo destas reflexões, naturalmente inconclusivas, há um aspeto que importa esclarecer. Se ao princípio tudo parecia correr na maior das harmonias, era pequeno e relativamente coeso o grupo fundador, o crescimento de sócios e a expansão de interesses trouxe desavenças e questiúnculas, e a partir de certa altura elas são mesmo referidas nestas atas de sessões. A título de exemplo, veja-se que em 7 de fevereiro de 1898 regista-se qualquer coisa como um conflito paroquial, atenda-se ao registado na ata:
“O Sr. Palermo de Faria expõe que o discurso do Sr. Moreira de Almeida só lhe dera a impressão de que sua excelência o que quer é que outros trabalhem para ele ter o gosto de criticar sem trabalhar. Que estava já, e a Sociedade, muito edificado e de há muito acerca deste cómodo papel representado pelo Sr. Moreira de Almeida e pelos seus amigos, que sempre estão prontos realmente mas é para criticar e contrariar as direções e os que têm levantado a Sociedade à altura em que ela se acha. Agora não quer também sua excelência que os sócios tenham os passatempos que lhes proporciona a maior largueza da casa e por isso o aluguer do primeiro pavimento, que foi uma das mais difíceis conquistas da Comissão do Centenário para a conveniente instalação da Sociedade e do Museu”.

A expansão e consolidação da presença portuguesa em África faz crescer o interesse pelos negócios, e por isso se discutem as indústrias coloniais, se deviam ser protegidas, qual a liberdade dos industriais para construir grandes empresas de caráter monopolista, quais os benefícios pautais na importação dos géneros coloniais. Alfredo da Silva, já um conceituado industrial, intervém nestas sessões. Os debates são calorosos, até porque há uma corrente que se reconhece dentro da Sociedade para que ela atue como entidade científica, não deve entrar em discussões como qualquer associação de classe. Já tinha aparecido e fora aprovada uma moção em que se pede à Direção que se mantenha absolutamente estranha a qualquer resposta que ultrapasse a sua missão. Já vimos antes que um outro grupo pretendia discutir os assuntos económicos. Enquanto isto se passa, e com a maior das naturalidades, um sócio bastante ativo, figura intelectual proeminente, Zófimo Consiglieri Pedroso, muda a agulha da discussão e fala numa capela colateral da parte da Igreja do Convento da Graça, em Santarém, é ali que se acha sepultado em campa rasa, e como ele diz ao desamparo os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, ele põe na mesa a seguinte proposta:
“Proponho que a Sociedade de Geografia de Lisboa envide todos os seus esforços junto dos poderes constituídos para que os restos mortais de Pedro Álvares Cabral sejam transladados da capela de S. João Baptista da Igreja do Convento da Graça de Santarém, para a Basílica de Santa Maria de Belém, onde jazem já os do descobridor do caminho marítimo para a Índia e do inimitável cantor das suas glórias”.

Registe-se ainda que há um extremo cuidado em todas as sessões em referir passamentos, alguém se encarrega de um elogio, quase sempre muito tocante, ou então há votos de pesar, registo aqui em dezembro de 1899 aquele que se refere ao falecimento de Câmara Pestana.

A ocupação de Angola e Moçambique leva à nova existência para tomadas de posição sobre companhias majestáticas, benefícios na implantação de novos empreendimentos, vimos como Luciano Cordeiro era porta-voz da contestação das empresas majestáticas. Mas no virar do século a economia e as finanças voltam a ocupar o centro da atenção dos debates e a produção de documentos. Anoto uma comunicação em que o seu autor diz:
“Entende esta sociedade que não deve haver regime proibitivo para as indústrias no Ultramar, mas sim de proteção para agricultura colonial, para as indústrias extrativas e para aquelas que, sendo de natureza privativa das colónias, não sejam similares das existentes na metrópole (…) Na tributação a decretar para as indústrias que pretendam estabelecer-se com perigo para as indústrias similares no continente está o natural regulador que deve adotar-se, pois nem se ataca na sua base o princípio de liberdade de indústria, nem se deixam a descoberto as indústrias da metrópole”. E discreteia sobre a proteção a dispensar às indústrias, o diferencial pautal, misturando sugestões sobre as missões religiosas que devem constituir elementos de estações civilizadoras, e propondo ainda reformas no sistema da administração colonial.

Chegámos ao termo das atas, a última data de 14 de maio de 1900, já se fala na realização do Congresso Colonial e o padre Inverno, missionário na província de Angola profere uma comunicação intitulada “Missão no Sul de Angola”. Continua-se a insistir que é necessário formar os quadros administrativos, recorde-se que já em 1878 a Sociedade de Geografia pedira a criação da Escola Colonial, virá a ser criada em 1906, funcionará nas instalações da Sociedade de Geografia, será mais tarde transformada na Escola Superior Colonial, designação que conhecerá mudanças, Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, mais tarde Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e depois do 25 de Abril, com âmbito muito diferente, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

Iremos concluir com alguns comentários à bibliografia que permita aos interessados dar um outro desenvolvimento ao estudo deste período e ao pensamento imperial que na Sociedade de Geografia deu engrenagem, em múltiplos domínios, ao III Império Português.

(continua)

Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil, quadro de Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22392: Historiografia da presença portuguesa em África (272): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (9) (Mário Beja Santos)

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