sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24881: Notas de leitura (1636): "A Última Lua de Homem Grande", por Mário Lúcio Sousa, romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, Maio de 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de um lançamento recente, recebo das editoras livros solicitados para fazer recensões, que envio para a imprensa escrita. Contudo, tratando-se de matéria que a todos interessa no nosso blogue, atrevo-me a pôr à vossa disposição esta recensão. Romance é romance, Mário Lúcio Sousa é nome conceituado da literatura cabo-verdiana e nosso orgulho na lusofonia, resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios, do último dia de vida de Amílcar Cabral, como num filme rebobinado somos induzidos a percorrer a sua vida, da infância à morte, os seus amores, os seus ideais, as suas desilusões. Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não ha uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense, rendo-me a esta linguagem portentosa, os sabores de África, a mestria de compor, recompor, torcer e distorcer para que as palavras ganhem vibração e luminisciência, recomendo vivamente esta leitura.

Um abraço do
Mário



Um belíssimo romance, a crónica de uma morte anunciada

Mário Beja Santos

Não há escritor que não seja tentado em comprimir num dia do calendário a vida de um homem, casos há em quem se lança em tal empreendimento produz revolução na escrita, foi o que aconteceu com James Joyce e o seu "Ulysses". Mário Lúcio Sousa também não quis fugir a esse desafio da compressão do tempo e forja a vida de Amílcar Cabral no dia em que passou ao limiar da eternidade, 20 de janeiro de 1973, data do seu assassinato, e assim temos "A Última Lua de Homem Grande", romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, maio de 2022.

É um enternecimento imiscuirmo-nos em arquitetura só possível na lusofonia, Mário Lúcio Sousa vem na esteira de outros mestres, como Luandino Vieira, Manuel Rui, Pepetela, Paulina Chiziane ou Mia Couto, que nos ensinaram que a língua portuguesa é desdobrável, pode ser desossada e enxertada de sangue novo, há lavores da sua escrita em todos os continentes, não se pode falar de Amílcar Cabral, um construtor de países, dispensando a matriz cabo-verdiana, nem os referentes daquele território em que se viveu uma tenaz luta armada, tão bem sucedida que ajudou a preparar a libertação de povos, a começar pelo colonizador.

O líder está em Conacri, é visível o seu cansaço extremo, obra do romance antevê ser o seu último dia, cogita diante do espelho: “É hoje que me matam, só me falta saber a hora, o lugar, quem vem, e se me tratarão melhor do que um cão”. Não teme o dia fatídico, por fantasia da escrita, o líder do PAIGC, a quem um coletivo de historiadores de todo o mundo reconhece-o como um dos 20 maiores líderes da História da Humanidade, tem pela frente uma derradeira tarefa, “talvez a mais pessoal, escrever os últimos acontecimentos, na fé de que o universo também conspire e, um dia, lhe traga um imparcial e amoroso cronista, para compendiar todas as alegrias, os sofrimentos, os altos e baixos, as traições e as cumplicidades, as verdades e as desmentiras, para que as gerações vindouras possam conhecer a verdadeira história deste homem e o verdadeiro homem desta história. É tudo quanto almeja”.

Adverte-nos o autor que o romance não é um livro de História, “Verdade é tudo aquilo que o autor consegue provar; no romance, verdade é tudo a que o escritor teve acesso”. E diz estar documentado, mas romance é romance, e neste até se poderão proferir insinuações sem base nenhuma, é ressuscitado o mantra do conluio dos matadores com os portugueses, pôde dar jeito nos tempos subsequentes ao assassinato, hoje, com os arquivos disponíveis, nada consta das propaladas ligações, Spínola não mandou matar, Spínola só dispunha das informações do que se passava em Conacri, a crescente crispação entre guineenses e cabo-verdianos, informações que constam dos arquivos da PIDE/DGS, não há nenhum documento nos arquivos do Ministério da Defesa ou do Ultramar, é rotunda mentira que a Marinha portuguesa aguardava a chegada de um barco com os líderes do PAIGC no limite das águas territoriais da Guiné-Conacri.

E como o próprio romance dá conta que estavam envolvidos, direta ou indiretamente, centenas de guineenses, há quem chegue ao cúmulo do disparate de dizer que Momo Touré era o coordenador do complô, complô esse que o próprio autor diz ser um mistério de quem era o mandante, fizeram-se inquéritos, “testemunharam os embaixadores: uma amnésia corrosiva caiu sobre as Guinés, as páginas da inquirição desapareceram, as gravações foram apagadas, os presos foram a bando dados à guerrilha”. Novo inquérito, coordenado pelo PAIGC, o povo perguntou-se para quê mais um se já se sabia quem morreu, quem matou, quando foi e onde. “Mas, o mesmo povo, revoltado e atento, concluiu que sim, que era mistério saber quem eram os assassinantes de punho e letra, porque os carrascos nominados tinham cérebro para matar, mas ciência para argumentar e esconder uma morte não, nem de uma folha, nem de um bicho, quanto menos de um homem que, vivo, era uma lenda e, morto, estava a galopar sem precedente para o seleto limbo dos espíritos sapientes”.

É a crónica de uma vida, dentro desta simulação de que Amílcar Cabral pressagiava tal morte anunciada, é a sua infância, a adoração pela Mãe Iva, como estudou afincadamente em Cabo Verde e ganhou bolsa para Lisboa, com quem aqui conviveu e os seus dilatados amores por Maria Helena, o seu trabalho na Guiné, e até se inventa que dela foi expulso, elemento útil para martirológio, mas nada comprovado, e depois o sonho de libertar Guiné e Cabo Verde, os desafios postos por Conacri pelos partidos rivais, a fundação da Escola Piloto, a preparação dos guerrilheiros, a chegada do armamento, o líder grato pelo acolhimento de Sékou Touré, de repente aparece-nos o responsável pela segurança, Mamadu Ndjai com a preocupação de avisar o major Silva Pais, pois os insurretos dele receberam algures um plano para fazer desaparecer Cabral sem deixar manchas, outro delírio incomprovado, mas que cabe bem na trama do romance. As horas escoam-se, somos instados a acompanhá-lo na sua vida familiar, com a sua mulher e os seus filhos, nesse entardecer o casal irá a uma receção na Embaixada da Polónia.

Súbito, já estamos 8 meses depois do seu assassinato, lá para as bandas do Boé há a cerimónia da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, uma das etapas do plano elaborado por ele para encostar definitivamente a potência colonial à parede. E nesta sarabanda de datas estamos no fim do ano de 1973, como habitualmente ele discursou e anunciou o futuro, é um livro que se intermeia de profecias, de avisos, de solilóquios, há até uma misteriosa agenda azul digna de uma intriga da literatura de crime e mistério, jamais se saberá o seu conteúdo, mas fica no ar a sugestão de que ela continha, qual profecia, a matéria do complô e o rol dos matadores e quem coordenava a operação, hoje investigação insondável, tudo parece rasurado e muito provavelmente o(s) cabecilha(s) viajam pelas estrelas.

É uma empolgante viagem de vida, já estamos na receção da Embaixada da Polónia, fazem-lhe perguntas atrevidas, em flashback ele rememora o período em que se pedia a gente amiga armamento, a chegada deste vindo de Marrocos a Conacri e o pânico que se instalou em Sékou Touré de que era armamento para o derrubar em golpe de Estado.

E como na tragédia grega somos encaminhados para o palco do seu assassinato, à porta de casa, é uma narrativa de fúria a que se interpola recordação daquele líder que vai morrer e que amava as crianças, lembra os amores que teve na vida, só espera que os matadores não lhe matem o povo que ele quis libertar, sabe que carregou uma cruz, andou a amainar a divisão entre os guineenses e os cabo-verdianos, está varado no chão com o primeiro tiro, despede-se da vida em vertigem, é um filme que por ali passa, e antes do tiro fatal recita em silêncio o poema que dedicou à Mãe Iva, constante do livro de curso de Agronomia, é o momento do desenlace: “O soldado Bacar dá mais um passo seco para trás. Ele, Homem Grande, sustém o fôlego. O soldado ombreia a arma. Ele, Homem Grande, levanta a cabeça, despede-se do seu amor, dos seus amores”.

A um belíssimo romance como este muito se pode perdoar de insinuações e de mantras que só podem ser úteis na ficção. E Amílcar Cabral é merecedor desta joia literária da lusofonia.

Mário Lúcio Sousa
Amílcar Cabral, pintura de Noronha da Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

8 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Como é possível Mário Beja Santos continuar a escrever assim?:

"A um belíssimo romance como este muito se pode perdoar de insinuações e de mantras que só podem ser úteis na ficção. E Amílcar Cabral é merecedor desta joia literária da lusofonia."

Um romance que falsifica a nossa História comum, que acusa os portugueses de serem os responsáveis pela morte de Amílcar Cabral, esse "fazedor de independências" e revoluções que deram os resultados, na nossa querida Guiné-Bissau, que hoje conhecemos. 50 anos depois de se libertarem do colonialismo, a Guiné é tudo ficção ou uma realidade bem diferente destes panegíricos a estas "jóias literárias?"

Abraço,

António Graça de Abreu

Hélder Valério disse...

Às vezes, muitas vezes, ainda consigo ficar abismado com a capacidade que alguns têm para distorcer as coisas só para verterem a "sua verdade".
Do que o Beja Santos hoje aqui colocou, para que quem quiser (e ninguém é obrigado) ler o original do livro em questão, atrevo-me a reproduzir a prosa introdutória, na esperança de que, assim, a possam ler:
"Trata-se de um lançamento recente, recebo das editoras livros solicitados para fazer recensões, que envio para a imprensa escrita. Contudo, tratando-se de matéria que a todos interessa no nosso blogue, atrevo-me a pôr à vossa disposição esta recensão. Romance é romance, Mário Lúcio Sousa é nome conceituado da literatura cabo-verdiana e nosso orgulho na lusofonia, resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios, do último dia de vida de Amílcar Cabral, como num filme rebobinado somos induzidos a percorrer a sua vida, da infância à morte, os seus amores, os seus ideais, as suas desilusões. Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não ha uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense, rendo-me a esta linguagem portentosa, os sabores de África, a mestria de compor, recompor, torcer e distorcer para que as palavras ganhem vibração e luminisciência, recomendo vivamente esta leitura."
Está lá a observação de que o autor do livro "resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios," o que, para mim, serve como alerta de que uma boa parte da prosa será "fictícia", ou seja não é "a verdade".
Depois também diz, o Beja Santos, que é "Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não há uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense", pelo que não me parece que o BS esteja a fazer a apologia da tese, antes pelo contrário, como explicitamente refere.

Não vejo razão para a habitual "porrada" para tudo o que o BS aqui nos apresenta.

Hélder Sousa

antonio graça de abreu disse...

Oh, Hélder, que é que disse que estamos na presença de "um belíssimo romance" de "uma jóia literária da lusofonia?" De que Amílcar Cabral é mais do que "merecedor"?
Um Bom Natal, meu caro Hélder, com a mente mais aberta para o mundo.

Abraço,

António Graça de Abreu

Valdemar Silva disse...

E temos de ser tendenciosos alinhando pelo o que nos apresenta Beja Santos, que nem sequer é novidade, a LeYa* também alinhou.

"Finalista do Prémio LeYa em 2021, A Última Lua de Homem Grande é um romance notável com impacto mundial, que envolve a um tempo líderes de mais de vinte países - do Papa às grandes figuras do século XX - e homens e mulheres comuns, quantas vezes anónimos, de todo o mundo."

*A LeYa é um grupo editorial multinacional português, líder na área dos livros de edições gerais e o número dois na área dos livros escolares.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Sobre a nossa (tuga) discórdia quanto à ideia de os dirigentes do PAIGC caboverdeanos e algum povo, pouco, quererem deixar para a história a versão de as autoridades portuguesas (Spínola) serem os mandantes do assassinato de Amilcar Cabral, moralmente, sem dúvida temos que dar-lhes o benifício da dúvida.

Sabemos que os guineenses daqueles tempos silenciosamente discordavam em absoluto dos dirigentes caboverdeanos.

O Spínola com os seus discursos deu facadas mortais , não apenas em Amílcar mas em todos os dirigentes caboverdeanos.

Os discursos de Spínola eram evocados pela boca dos guineenses em Bissau, durante mais de uma semana com o golpe que derrubou o irmão de Amílcar, o Luís Cabral, 14 de Novembro de 1980.

Se a palavra é uma arma, foi essa a arma de Spínola, evocada em 1980 usada pelos guineenses para justificar o golpe de Nino Vieira que fez que de centenas de caboverdeanos desaparecessem de Bissau ficando la apenas Manecas.

Agora há uma guerra que temos que admitir, internacionalmente, mais do que entre os guineenses, a figura simpática era Amílcar, e o mau da fita era Spínola.

Mas jamais, pelo menos em absoluto era Amílcar, para o povo da Guiné, naqueles tempos.

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha
Em tempos, talvez há mais de três anos, o segurança do supermercado, com dois traços, cicatrizes, ao lado dos olhos não me enganava como sendo fula da Guiné, e meti conversa com ele.
Ele, homem com mais de 40 anos tinha vindo para Portugal arranjar trabalho, conseguiu Autorização de Residência e depois emprego numa firma de Segurança.
Falávamos de Amílcar Cabral, Spínola, Nino Vieira, cabo-verdianos, portugueses e tinha opiniões de contra e favor de todos eles.
Mas, uma coisa eu notava quanto à maneira descontraída e enraizada quando se referia a antes da Independência '..... no tempo colonial...'.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

antonio graça de abreu disse...

Pois, pois, pois, "um belíssimo romance", "uma jóia literária da lusofonia?" De que Amílcar Cabral é mais do que "merecedor." Palavras de MBS.
Pois, pois, pois, o engenho de dizer tudo e não dizer nada. Fico-me pelos lambe botas de Amílcar Cabral, um revolucionário africano, crente em utopias, pela sua própria natureza infelizmente irrealizáveis. Não entendem o que eu digo?

Abraço,

António Graça de Abreu

Joaquim Luis Fernandes disse...

Mais do que conhecer a moralidade dos protagonistas da História (cada qual terá a sua opinião, na subjetividade e liberdade de sentir e pensar) para mim, importante é, conhecer a História verdadeira, que não se escreve em crónicas ou relatórios de encomenda tendenciosa, mas pelos fatos ocorridos com os seus autores materiais e morais.

Neste caso em apreço, em relevo neste poste, dos mandantes do assassínio de Amílcar Cabral, teima-se em alimentar a mentira propalada então, ao jeito do que convinha aos intervenientes de cúpula, na responsabilização de Portugal e do Governador e Comandante Militar em Bissau.

E já lá vai meio século e a mentira continua a fazer o seu caminho, agora pela escrita de um romancista, que escreve mais a pensar nos resultados financeiros do seu labor, do que em investigar sobre quem mandou matar Amílcar Cabral e porquê.
Isso seria muito trabalhoso, mesmo havendo muitas pistas que indiciam a trama dos acontecimentos que tiveram por palco Conakri,em 20 de janeiro de 1973, respondendo à pergunta que sempre se deve fazer: a quem interessava (e interessou) a morte de Amílcar Cabral, e porquê.