Capa do livro de Luís Moita (1894-1967): O Fado, canção de vencidos: oito palestras na Emissora Nacional. Lisboa: [s.n.] [Lisboa, Oficinas Gráficas da Empresa do Annuário Comercial], 1936, 357 páginas. Ilustrações de Bernardo Marques (1898-1962). Foi, na época, o inimigo público nº 1 do fado... "Enquanto cantamos o Fado, de cigarro ao canto da boca, olhos em alvo e paixão a arrebentar o peito, não passamos de um povo inferior, incapaz de compreender a vida moderna das nações civilizadas. Por isso repito aos rapazes [da Mocidade Portuguesa] : ' Não cantem o Fado!' " (pág. 229).
Tanto à esquerda como à direita, em diferentes quadrantes político-ideológicos, o fado nunca foi bem aceite pelas elites portuguesas...a não ser mais recentemente coma sua consagração como "património cultural imaterial da humanidade, pela UNESCO (2011). (Temos mais de 7 dezenas de referèncias com o "tag" ou descritor "Fado-)
1. Mais um excerto do livro de Alberto Pimentel (1848 -1925), "A Triste Canção do Sul: subsídios para a história do fado" (Lisboa, 1904, pp. 93/99). (*)
Mas não se pense que o Bairro Alto eram só faias, fado, tabernas, naifas e... rameiras. Também concentrava muita gente da emergente classe operária (com a crescente industrialização da cidade), a par dos homens dos jornais, artistas, escritores e boémios. Desde meados do séc. XIX que se começaram ali a concentrar as publicações periódicas de Lisboa... Ali e nas zonas adjacentes, como o Chiado (chique e burguês).
Sem dúvida que o Bairro Alto foi, dos bairros populares e ribeirinhos, talvez o mais "afadistado", o que também tem a ver com a sua origem aristocrática: a nova fidalguia da época dos Descobrimentos viveu ali, desde o terramoto de 1513 até ao terramoto de 1755 (este o mais mortífero, quando caiu o Carmo e a Trindade...).
Nos séc. XVI e XVII o Bairro Alto, com as suas ruas ortogonais, são a primeria urbanização moderna da cidade (conhecido como a Vila Nova de Andrade)... O clero e a nobreza, com a degradação física do bairro, começaram a mudar-se para zonas mais seguras e desafogadas da cidade... Na segunda metade do séc. XVIII e princípios do sec. XIX, as classes laboriosas (artesãos, operários, calafates, marinheiros, etc. mas também o lumpen) começaram ocupar aquele espaço urbano. A seguir, e instalando-se em grandes edifícios deixados vagos, vieram os tipógrafos e depois os jornalistas, os artistas, os literatos, etc., uma vez que se circulava facilmente entre o bairro, o Chiado e a Baixa (Rossio, Restauradores e Passeio Público, mais tarde Avenida da Liberdade).
A concentração de tipografias e redações de jornais no Bairro Alto tem uma explicação, mais ou menos óbvia: ficando numa colina, a famosa 7ª Colina de Lisboa, e fazendo-se a distribuição dos jornais através de "ardinas" (hoje uma "profissão extinta"), que iam de porta a porta, loja a loja, rua a rua, praça em praça, com quilos de papel às costas, era mais fácil descer do que subir, neste caso, da 7ª Colina para a Baixa...
Já foram recenseadas algumas centenas de publicações periódicas, de todo o género, com localização nesta zona histórica (Bairro Alto / Chiado), ao longo de mais de um século e meio... Hoje só o jornal desportivo "A Bola" ainda continua no Bairro Alto. Mas continuam a existir a rua do Diário de Notícias (antiga rua dos Calafates), a rua do Século, etc.
Dito isto, desafia-se o leitor a ler e a "descodificar" os vocábulos e as expressões do calão, usados pelo fadista ou faia de antigamente (que, diga-se de pssagem, é também uma figura estereotipada que nos veio dos primórdios do fado, ou seja anos 30/40 do séc. XIX)...
A imposição, pela Ditadura Militar, em 1927 (e mantida depois pelo Estado Novo), do licenciamento dos recintos, da emissão de carteiras profissionais para os fadistas e da censura prévia das letras, vai ter grandes implicações na evolução do fado e dos seus cultores. E este tipo de letras (e outras com conteúdo mais contestário, no plano social e político) irão desaparecer...
Para os nossos leitores, fica aqui a tarefa de descodificar estas letras, o que não é fácil, à falta de um glossário (**). Alguns destes vocábulos e expressões ideomáticas chegaram, todavia, até aos nossos dias (e faziam parte do nosso léxico de caserna)... Prometemos, em próximo poste, publicar um pequeno glossário do calão fadista.
Cap III - Os assumptos do Fado (pp. 93 / 99)
(...) Há, porém, outros Fados compostos em calão. Conhecemos quatro que não devemos deixar de transcrever, tanto mais que elles contêem alguns termos, como por exemplo antrames e gamotes, que não foram incluídos no diccionario do sr. Bessa.(**)
Quem se metter c'um fadista
Arames é o dinheiro;
Ao vinho chamam briol;
Ao apito um rouxinol;
Em calão a atirar
Dê me a naifa, não se ponha
In: Alberto Pimentel - A triste canção do sul: subsídios para a história do fado. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, editot, 1904, pp. 89-93
Último poste da série > 19 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24864: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (21): Os sinais de código da estrada é para... respeitar, e os dos códigos comportamentais ainda mais... (Hélder Sousa, Setúbal)
4 comentários:
Ser fadista, até próximo dos anos 20 do século passado, era ser um tipo rufia desordeiro que vivia de expedientes, e também cantava o fado nas tabernas.
Depois, fadista passou a ser um artista cantador de fados, embora muito criticado conforme a letra de um fado cantado por Fernando Farinha nos anos 60.
O fado perdeu a raça
Aquela graça afadistada
Deixou de ser desordeiro
E companheiro da ramboiada
estes fadistas de agora
Trazem o fado virado
Nos retiros e salões
Cantam canções em vez de fado
É pá não fiques calado
É pá canta lá o fado
O fado era assim meus senhores
Com vinho da pipa a correr
Assim mal criado e avinhado
É que o fado era fado a valer
E também havia o fado finório cantado na maioria por monárquicos com letras sobre 'os tempos de outrora', cavalos e touros.
Aquele do 'cavalo russo foi um touro que o matou num dia de infelicidade', é pra chorar e constatar ter sido, afinal, num dia em que o cavalo vacilou a derribar.
Tudo fazia com graça
Era bom a tourear
A derribar sem vacilar
No campo ou na praça
Atenção que eu gosto de fado e de touradas na praça nem por isso.
Valdemar Queiroz
Vem muito a propósito a referência ao "miúdo da bica" que se tornou fadista, cantor do fado, ao ter ganho um concurso de fado e depois se ter profissionalizado aos 11 anos, para ajudar a família quando perdeu o pai...8
É da geração da rádio, do disco, do teatro de revista, do cinema, das casas de fado, dos concursos... que já nada tem a ver com a origem socioantropológica e histórica do fado a não ser vivido, desde os cinco anos, num bairro popular e ribeirinho de Lisboa... E cresceu no Estado Novo que, não podendo "matar o fado", procurou instrumentaliza-lo...
Valdemar, queria dizer "miúdo da Bica"... Tu que viveste desde os 12 anos em Lisboa deves conhecer muito melhor do que eu os "ambientes" do fado dos anos 60 e 70...
Só há alguns anos atrás passei pela rua onde viveu o Fernando Farinha...
Luís, eu tirei o "Comercial" na E.C. Veiga Beirão no Largo do Carmo, a dois passos do Bairro Alto. Saía às 18 do escritório e entrava às 19 na Escola e já não dava pra ir a casa jantar.
Dos Restauradores ao Largo do Carmo levava 15 minutos, e subindo as Escadinhas do Duque dava tempo pra ir à "casa" da ??, no primeiro andar do prédio nº.1 a esq. do Largo Trindade Coelho, agora todo arranjadinho. No 1º. andar funcionava a "casa das meninas" que tinha uma máquina de discos que tocava com uma moeda de 1$ e as meninas aquela hora estavam sentadas com as meias caidas/enroladas até aos tornozelos. Éramos os clientes das 19 até às 21 e a maioria uns putos mirones, gastávamos obrigatório dinheiro a ouvir os discos que para alguns não dava tempo pra mais nada. Saíamos às 23,50 da Escola e ir pra casa jantar era o que precisávamos.
De resto, como morava distante da Baixa, não me dava para vir ao Bairro Alto, depois com 18 anos veio Janeiro1963 e perdeu-se aquela "disciplina", que fazia parte do Curso da rapaziada da Veiga Beirão.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
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