sábado, 13 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22715: Os nossos seres, saberes e lazeres (476): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (24): Museu Nacional do Traje: muita indumentária, chapéus e leques, adereços icónicos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Gosto muito de palmilhar toda a estrada que atravessa o Paço do Lumiar, é uma ida e volta agradável, depois é uma questão de apanhar um metro e regressar a penates. O Parque do Monteiro-Mor é também visita frequente, não encontro razão por esta falta de comparência há uns bons anos não entrando neste belo museu, irrepreensivelmente mantido no seu interior e de uma museologia e museografia tão cativantes, imagino que qualquer professor gostará de trazer aqui os seus alunos para abrir horizontes ao estudo das mentalidades do século XVIII para cá. Vim atraído por uma exposição de chapéus e leques, este último adereço há muito que anda comigo e ocupa espaço nas minhas paredes domésticas. Mas aproveitei o ensejo para começar no século XVIII e confirmar que o interior do Palácio Angeja-Palmela continua a merecer desvelo e talento de quem dele se ocupa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (24):
Museu Nacional do Traje: muita indumentária, chapéus e leques, adereços icónicos

Mário Beja Santos

Li a notícia de uma exposição sobre chapéus e leques no Museu Nacional do Traje, onde não entrava há um ror de tempo. Graças a uma tia, cedo despertei para o prazer de ver e de viver acompanhado de leques: japoneses ou chineses, românticos ou novecentistas. Esta minha tia tinha como um dos seus passatempos adquirir leques por vezes muito deteriorados e proceder a restauros, dando-me a satisfação de poder acompanhar o seu trabalho, a substituir tecidos, a reparar varetas, a colar as guardas, a reforçar os reversos, nessas tardes pude pasmar com a delicadeza do trabalho de ver peças deterioradas ganharem vida, ainda que, para gozo da sua contemplação, houvesse necessidade de os emoldurar, um processo de esconder mazelas e outros subtis artifícios do restauro, esta minha tia parecia praticar cirurgia com as varetas, substituindo-as, fossem de madrepérola ou madeira canforada. Enquanto as suas mãos se moviam numa prancheta, por vezes empunhando uma tesoura ou pegando em pinças, esta minha tia falavam-me sobre a história dos leques, muito provavelmente a sua origem oriental, o irrecusável papel que desempenhou nas civilizações, o seu apogeu no mundo ocidental, sobretudo graças aos franceses que usaram madeiras pintadas e lacadas, e fui tomando conta de que no século XIX era uma das grandes exportações chinesas, tivessem ou não varetas em bambu ou madeira lacada, panos pintados, tal como os franceses usavam leques com varetas em marfim, tecidos delicados, panos em papel pintado a guache, pano em cabritilha. Chega de comentários pessoais, embora confesse que gosto muito de falar dos meus leques a quem deles aprecia.

Para se saber um pouco deste Palácio Angeja-Palmela, vale a pena reproduzir um texto elucidativo que se dispõe à entrada:
"O Museu Nacional do Traje encontra-se instalado no Palácio Angeja-Palmela, assim denominado por ter sido propriedade destas duas famílias.
O Palácio foi mandado construir pelo 3.º Marquês de Angeja (século XVIII), após o terramoto de 1755. Tem traça pombalina, caraterizada pelo seu sistema estrutural antissísmico e pelas suas formas austeras, contudo desconhece-se o seu autor.
Adquirido em 1840 pelo 2.º Duque de Palmela, o Palácio continuou a servir como segunda residência e foi objeto de diversas campanhas de requalificação dos seus interiores, como a introdução de pinturas parietais ao gosto da época, as quais se juntaram aos estuques e aos azulejos já existentes.
Em 1975, o Estado Português adquiriu o Palácio, conjuntamente com o Parque Botânico do Monteiro-Mor que lhe está agregado, para instalação do Museu Nacional do Traje, que abriu as suas portas ao público em julho de 1977”.


Qual o seu acervo? Guarda uma coleção de indumentária de traje nacional e estrangeiro, desde o século XVIII à atualidade, a par de um conjunto relevante de acessórios destas diferentes épocas, como vamos ver.

Duas imagens do Palácio Angeja-Palmela, sede do Museu Nacional do Traje

Impressiona o estado de conservação no interior do museu, as melhores práticas de museologia e museografia, o didatismo que a exposição permite, veja-se a beleza dos estuques, a conservação dos lambris de azulejos, o estado da indumentária, estamos em pleno século XVIII, é por aqui que a exposição começa, trajes que ajudam a compreender mentalidades, um sentimento de classe, a atmosfera de uma época, e este espaço interior assenta que nem uma luva, aqui e acolá temos pintura alusiva, ajuda a enfatizar, tal como os adereços, tão sugestivos que põe o visitante a bisbilhotá-los com cuidado… Ou não houvesse para ali leques...
O estilo império faz aqui obrigatoriamente presença, ali perto um quase adolescente comentava à mãe que já tinha visto tal vestuário numa série televisiva, julgava ser pura invenção, a mãe revelou-se esclarecedora, e pus-me de orelha à escuta, olha filho vê a cintura pronunciada, o vestido a cair pregueado, introduziu uma enorme simplicidade no traje feminino, nada de anquinhas ou excessos de saiotes, olha para a fatiota dos homens, irá dar origem àquele tipo de casaca a vestuário que os homens vão usar nas academias ou até na diplomacia, durante muito tempo. E, como verás adiante, devido talvez à industrialização e à prosperidade, irá sofisticar-se, vais ver. Aproveitei para andar ali atrás, a meter o bedelho onde não era chamado.
Leques e outros acessórios distintivos – para quê mais comentários? Aquele do meio, se não fizer falta ao museu, fica em minha casa em regime de comodato…
Do estilo império passou-se para o romantismo, a atração greco-romana diluiu-se, arredondaram-se as saias, se necessário recorria-se a enchumaços, há o tufado das mangas. A mãe do jovem falava nos tempos de Camilo Castelo Branco e lembrou-lhe o filme de Jane Eyre, ele disse prontamente que sim. Apeteceu-me tirar uma imagem para contrastar os dois estilos de moda, é capaz de surtir efeito.
Não me canso de louvar o estado de conservação desta casa, miro as paredes de alto a baixo, contemplo os estuques, não são motivo para ficar embasbacado, mas ao menos fica-se satisfeito de ver tudo bem mantido, os vidros da bandeira por cima desta porta dão sinal de velhice, bons tempos em que se usavam estes espelhados, é melhor deixá-los assim.

Importa não esquecer que este museu já foi palácio, vamos prosseguir a viagem indo até à capela, depois até ao século XX, então sim, saímos até ao pátio para ver uma interessante mostra do uso da cobertura na cabeça consoante o estatuto social e o papel ocupado pelos leques nos últimos séculos. Tudo feito sem alarde, mas com rigor e segurança dos comentários expostos.

Gostei e recomendo.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22694: Os nossos seres, saberes e lazeres (475): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (16) (Mário Beja Santos)

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