segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Ficarei imensamente grato a quem me puder ajudar com informações sobre a CCAÇ 1591 e Mejo. Quando li "Vindimas no Capim", escrito pelo nosso confrade José Brás, encontrei algumas referências a Mejo, mas fiquei-me por aqui. É uma grande surpresas, esta literatura memorial do Coronel Luís Cadete, chegou à Guiné ainda tenente, aqui foi promovida a capitão, vê-se à vista desarmada que aquela terra vermelha se tornou inesquecível, como aliás ele escreve na introdução:
"Mejo foi, no fim de contas, o nosso primeiro amor na Guiné e ainda hoje temos saudades dele, pois puxou por tudo quanto tínhamos de melhor para ultrapassarmos as dificuldades inerentes a uma situação de campanha."
É um livro que não merece ficar confinado a uma pequena edição, não é justo. Há por vezes ressaibos, ajusta contas com a sua própria instituição militar, maldiz a incompetência, mas até apetece recordar a frase icónica de Álvaro Guerra de que aquela terra foi um permanente avolumar de dores e inquietações, mas foi ali que se selou a nossa têmpera pelos anos vindouros.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (1)

Mário Beja Santos

Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Nunca li uma introdução a um ambiente tão poderosa e tão viva como Luís Cadete faz de Mejo, a ninguém pode deixar indiferente prosa tão precisa, uma demonstração de um olhar tão fecundo, lembra um geógrafo, um antropólogo, um etnólogo:
“A tabanca que dava pelo nome de Mejo situava-se, sensivelmente, a 9 quilómetros de Guileje, na estrada para Bedanda, na bifurcação para Salancaur Fula, colina com cerca de 110 metros de altitude com o cume em forma de tampo de mesa ligeiramente inclinado para Nascente, com o ponto mais elevado a Poente.
Esta colina, restos de formação rochosa de maior vulto dissolvida pelas chuvas diluvianas e ácidas do Pluvial, há vários milhões de anos, domina vasta extensão do rio Cumbijã que lhe corre a Norte. Com as encostas cobertas de grandes poilões e mato rasteiro, é um ponto de referência importante num território predominantemente plano. A vastíssima bolanha do Cumbijã dava arroz em quantidade que, antes da guerra, quer a Casa Gouveia, representante da CUF no território, quer a Sociedade Comercial Ultramarina, vinham comprar, na época própria, ao cais existente na margem direita, isto é, fronteiro a Salancaur e do outro lado do rio.”


Manifesta o autor a preocupação de que o leitor se insira naquele espaço e até naquele tempo, é um observador cuidado, quer manifestamente que o leitor ponhas os pés naquela terra de combate e em voo picado estamos em Mejo:
“Do ponto de vista militar, Mejo era um retângulo de 100 por 110 metros de lado que dependia da companhia de Guileje que aqui tinha um pelotão para garantir um mínimo de proteção à população regressada. A CCAÇ 1591 foi a primeira a estanciar por lá por 8 meses e meio. Sem instalações para alojar o efetivo da companhia mais os do pelotão destacado de Guileje, os primeiros meses foram vividos em tendas cónicas carcomidas pelo sol e pelas chuvas da Guiné. Os buracos eram tapados por rolhões de capim enquanto se trabalhava no fabrico artesanal de tijolos para a construção de casernas. Quando a CCAÇ 1591 arribou a Mejo, cuja má fama corria infrene por todos os cantos da Guiné, só se via capim verde e alto como um homem de pé, não só no exterior, mas também no interior da posição. Embora pareça inconcebível, aqui andava-se por trilhos ladeados de capim!”.

Segue-se a descrição da população civil e do armamento rudimentar da unidade dependente do comando de batalhão de Buba, ficamos a saber que a população de Mejo era da subetnia Futa-fula, mas não faltavam Fulas-forros.
Não se compadece, tem comprovadamente a memória bem acerada, com as jigajogas do decisor militar e muito menos com as manhosices burocráticas. Qual a importância de Mejo? Fazia parte de um plano de operações que tinha como objetivo principal a ocupação da colina de Salancaur, plano que se iniciara alguns meses antes da chegada de Schultz, concebido pelo comandante militar, pois a primeira medida de Schultz foi cancelar toda a atividade operacional determinada por este comandante. “A ordem alcançou a tropa quando esta já marchava rumo a Salancaur com o Pelotão de Reconhecimento Fox de Guileje a abrir a progressão, nunca mais se pensando em acabar algo que fora bem pensado.”

Mesmo a descrição da chegada da CCAÇ 1591 tem toques de originalidade, houve para ali umas trocas a baldrocas no quartel-general, estavam à espera de outra unidade, o Tenente Luís Cadete é mal recebido por aquela burocracia que tinha a inteligência de uma porta ondulada, lá vão para Brá, metidos numa caverna devoluta sem camas, andaram a fazer carreira de tiro em Prábis e depois metidos na LDG Montante, rumo a Fulacunda. Vão agora começar histórias galhardas, pícaras, de entremeio com lembranças afetuosas, algumas delas, garanto a pés juntos, merecia ser reproduzidas aqui por inteiro. Convém que o leitor não se esqueça que estamos em 1966, o corredor de Guileje ainda não assumira a dimensão infernal com que hoje é por muitos lembrado.

No pórtico das lembranças temos a paixão de Mariama, a bajuda mais bela da tabanca, Luís Cadete burila a quintessência da beleza:
“O corpo era escultural, de fazer inveja à estatuária da Antiguidade Clássica. Tinha um par de pernas deslumbrante, bem torneadas e esguias e a mama alta, firme, delicadamente cheia, como eu nunca vira nem voltei a ver outra e que, conforme à tradição, trazia em liberdade franca; a pele escura de tom avermelhado era acetinada, quente e glabra sem imperfeições. Quando ela passava no seu passo elástico e elegante a caminho da Fonte das Mocinhas – nome pelo qual era conhecida a nascente permanente situada a Sul da estrada para Buba e à entrada da tabanca –, sorrindo de olhos baixos aos piropos do pessoal, ninguém havia na Companhia que se não virasse para a ver passar.”

Mariama apaixonou-se pelo soldado D, rapaz sossegado, disciplinado e respeitador, nado e criado lá para as bandas da Lousã. E era correspondida. E não falta uma pitada forte de romantismo para adubar o romance:
“A Mariama e o D namoravam ao arame farpado e era um regalo vê-los conversando horas a fio sem que se descortinasse o que tanto tinham para segredar um ao outro. Dos olhos da Mariama, a ternura daqueles momentos via-se escorrer ao acariciar o rosto do D. E eu, romântico contumaz, nunca fui capaz de proibir aquelas manifestações de um amor impossível, dadas as circunstâncias.
E, durante cerca de quatro meses, aquele amor entre os dois encheu de ternura quantos viam o D e a Mariama no seu enlevo casto e puro ao arame farpado.”

Vieram os comentários libidinosos, nosso capitão não estava ali para os ajustes, lembrou a Mariama aquela evidência de que qualquer dia o D se ia embora sem consequências, era melhor que ela se protegesse para o futuro, e o final deste episódio é mesmo inesquecível:
“Olhou-me com um certo ar de desafio como quem sabe muito bem o que fazer e enquanto uma lágrima teimosa lhe corria pela cara abaixo respondeu-me, fitando-me nos olhos com o seu quê de desafio:
- Hora di D bai, nó na dita i n’bai faziu sabi toc i D cá esquíci Mariama (quando o D se for embora, vamo-nos deitar e fá-lo-emos e o D nunca esquecerá a Mariama).
Foi assim?
Só eles o saberão.”


Prepare-se o leitor para muito mais.

Aquartelamento de Mejo, imagem de Alberto Pires, com a devida vénia
Outra imagem de Mejo, também de Alberto Pires

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Bonito, como eu me reconcilio com alguns textos do Mário Beja Santos! Obrigado Mário.

Abraço,

António Graça de Abreu

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

As localidades de Mejo e Guileje situados na regiao do antigamente chamado Chao Nalu de Cubucaré com antiga e persistente penetraçao de povos Biafares (Biafadas), foram palco de guerras de conquista muito violentas durante a segunda metade do seculo XIX, que opuseram os povos nativos (Nalus) e povos vizinhos e ocupantes (Biafadas) contra os novos conquistadores (Fulas-Forros e Futa-Fulas) vindos das regioes de Gabu, a Nordeste e dos planaltos de Futa-Djalon, atravessando o Boé e o rio Corubal para atacar e ocupar toda a regiao Sudeste da actual Guiné-Bissau e parte Sul da Republica da Guiné-Conacry, no que foi conhecido na historiografia portuguesa como a guerra do Forrea. Em finais do seculo XIX e principios do seculo XX todas as terras de Nalus e Biafadas, exceptuando as ilhas e zonas costeiras, estavam sob dominio do reino teocratico de Futa-Djalon em colaboraçao com os Fula-Forros de Gabu, aliança que, todavia, durara pouco tempo, tendo em conta a chegada de novos invasores, desta vez vindos do continente europeu, novas contradiçoes e contrapoderes interetnicos.

Como acontecia em todos os grandes movimentos de conquistas territoriais na regiao da Africa Ocidental, havia sempre o nucleo duro que dirigia o movimento, constituido por uma identidade central (estado maior) com caracteristicas de uma unidade tribal, no caso Futa-Fula) e os restantes originarios de diferentes camadas tribais formando uma especie de "orda" que assim tentavam a sua sorte numa grande aventura a procura d eum lugar ao sol. Estas ordas viriam mais tarde a assimilar-se, culturalmente, a identidade do nucleo central do movimento para formar o que o Comandante Luis Cadete aqui chamou de "subetnia futa-fula", que na realidade sao "falantes da lingua fula", mas de origens diversas e que aglutinaram-se numa mesma identidade cultural de referencia.

Quanto aos Fula-Forros, como o nome indica, eram os Fulas criadores de gado que viviam entre os mandingas, eram populaçoes aparentement livres, mas sujeitos ao poder mandinga do reino ou imperio de Kaabu/Gabu. Depois de seculos de dominaçao e cansados do arbitrio dos Farins mandingas, no seculo XIX deslocaram-se em massa a procura de regioes onde pudessem habitar e trabalhar em maior liberdade e assim nasceu "Forrea" ou seja terra livre, mas que sera mais uma miragem de que liberdade.

Nos anos 20 e 30 do seculo XX, começam a chegar os Balantas vindos do Norte do pais, acossados pelas guerras chamadas de "pacificaçao" e a procura de liberdade e melhores condiçoes para a pratica agricola e, na qualidade de grandes produtores de arroz da bolanha nas terras alagadas e de mangais, vao ocupar o Cantanhés e toda a regiao de Cubucaré, transformando a regiao no maior celeiro de arroz da Guiné nesse periodo aureo de antes da guerra colonial de que o Luis Cadete, com os olhos de excelente historiador e etnologo, nos fornece em alguns topicos do seu belo texto, ora apresentado falando do corredor de Guileje e da zona dos Salancaur e Bantael Sila, nas margens do rio Cumbija, outrora o rio dos grandes criadores de gado fula e dos produtores de arroz Balanta que tinha tudo para um futuro promissor de paz e prosperidade para os seus habitantes, entrtanto interrompido pela guerra colonial de 1963/74.


Cherno Baldé

(continua)

Cherno Balde disse...

(continuaçao)


Os toponimos Mejo e Guileje, ao que tudo indica e ao contrario do que aconteceu mais ao Norte/Nordeste, sao de origem fula e nao autoctone. Com base numa interpretaçao historico e linguistica e, ainda de acordo com a minha intuiçao pessoal, que pode ser errada naturalmente, Mejo significa "parte" de um conjunto qualquer, "entremeio" ja Guileje deriva da expressao "Guilé" ou seja "Malagueta", "picante" e o sufixo "je" quer dizer "local" ou "campo" onde se cultiva a malagueta (Piripiri). E nao seria de estranhar, pois os Nalus, de entre todos os povos da Guiné, sao os maiores produtores e consumidores de "Malagueta", provavelmente uma herança ou resquicios daquilo que, no periodo mercantilista e/ou esclavagista da historia geral, era conhecido por costa da malagueta, algures entre a costa da Guiné e a Serra-Leoa.

Eu tenho uma ligaçao afectiva com a regiao e com os Nalus, pois a minha esposa é filha de um pai mestiço Pepel/Caboverdiano, antigo combatente do Paigc e de mae Nalu de Quitafine, pelo que tenho visitado a regiao com alguma frequencia e, pela experiencia que tive, informo que o primeiro cuidado a ter quando se visita uma familia de Nalus tem a ver com a escolha da comida e do tempero, pois a pratica cultural sobre alimentaçao pode ter surpresas bem desagradaveis para quem nao esta familiarizado com os usos e costumes locais e o conceito de hospitalidade.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...


PS:

De igual modo, podemos verificar que existe uma forte tendencia de continuidade relativamente aos toponimos nesta regiao de influencia do Forrea, a volta do rio Cumbija, ela mesma antiga provincia do Futa-Djalon, e outros exemplos sao Gadamael (margem de um pequeno rio) que significa outra "margem do rio" ou da bolanha e Bantael Sila "Pequeno poilao situado no caminho" bem como Salancaur que pode ter resultado da expressao fula de "Salancaun" que significa pequeno monte ou colina.

Quanto ao Iémbérem, Jemberem, localidade no Cantanhés, resulta da transposiçao do nome da localidade de Iémbéring no Futa-Djalon na regiao de Mali Iembering, provavelmente povoada por originarios desta localidade da Guiné-Conakry.

Cherno Baldé

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Há alguma possibilidade de conseguir o livro? Estaria interessado num exemplar.
Albertino Ferreira