terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23922: Notas de leitura (1537): Germano Almeida, prémio Camões (2018), filho de pai português e mãe cabo-verdiana, explica a origem mítica de Cabo Verde: uma criação divina, não por maldição... por distração (Luís Graça)


Cabo Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 11h11 >  Baía do Porto Grande e Monte Cara, ao fundo.

Foto (e legenda): © João Graça (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É publicamente conhecido o apoio político do escritor (e advogado) Germano Almeida ao MpD (Movimento para a Democracia), em 1991. Nas primeiras eleições livres, multipartidárias, foi eleito deputado da Assembleia Nacional. Depois foi nomeado procurador geral da República. Mas, passados vinte e tal anos, aceitaria, em 202o, ser mandatário do atual Presidente de República, José Maria Neves, sob a bandeira do PAICV.

Cabo Verde, um dos mais pequenos países do mundo, mas também o "país da morabeza", tem destas particularidades, e a sua vida político-partidária rege-se por padrões muito próprios, com os dois partidos alternando no poder. Não sabemos que marcas deixaram os 15 anos de regime do PAIGC (depois PAIVC), e nomeadamente nas relações pessoais e sociais.  Eu tinha amigos de um lado e do outro, mas nunca aprofundei o assunto. 

Sabemos isso, sim,  que o PAIGC (depois o PAICV) não teve, originalmente, em Cabo Verde, uma relação fácil com os intelectuais, e em especial os escritores.  Veja-se com como maltratou o Baltazar Lopes (1907-1998), o decano da literatura cabo-verdiano, um dos fundadores da revista "Claridade" (1936) e o o criador do fundacional "Chiquinhos" (1947) , que eu ainda hoje leio e releio.  A desconfiança também era mútua: o escritor e reitor do liceu Gil Eanes não gostava de Amílcar Cabral nem do seu PAIGC.(*)

De qualquer modo, em 1991, o Germano Almeida ainda não era a figura, nacional e consensual, que é hoje.  Nessa altura estava longe de ser um autor consagrado. O Prémio Camões ser-lhe-á tribuído, pelo conjunto da sua obre, em 2018. 

Como é sabido, o Prémio Camões é o maior galardão literário instituído nos países de expressão lusófonaa, criado justamente em 1988 pelos Governos de Portugal e do Brasil com vista a estreitar os laços culturais entre os vários países lusófonos e enriquecer o património literário e cultural da Língua Portuguesa. O valor monetário do prémio é presentemente de  cem mil euros, um dos mais elevados a nível dos prémios literários mundiais.
 
Mas nos anos 90, eu já li, se bem que por alto, as crónicas que o Germano Almeida publicava no jornal "Público". Dessas crónicas ele selecionou uma meia centena, e publicou, em 1998, as"Estórias Contadas", e que o consagraram como um exímio "contador de estórias". Mas é  também um bom "novelista": faremos referência, noutra altura, às "Estórias de Dentro de Casa" (1996), sem esquecer "A Ilha Fantástica" (

2. Fiquei fã do escritor pela maneira, muito pessoal, única, como ele fala de si, da "identidade cabo-verdiana", do quotidianu, e dos outros (incluindo, nós, os portugueses, os "mandrongos"...) . As três primeiras estórias do livro ("Cabo Verde e o centro do mundo", pág. 11; "Uma forma de identidade africana",  pág. 17; e "Uma perspectiva da identidade cabo-verdiana", pág. 25).

Gosto de um escritor que é capaz de saltar uma gargalhada, sem cair na alarvice, e dizer mal de si próprio e da sua gente. Usand0 de preferênica o humor subtil, a ironia fina, o registo pícaro... (Recorde-se que o escritor é filho de pai português e mãe cabo-verdiana

Veja-se, por exemplo, logo nesta primeira estória em que ele regresse às suas memórias de infância na ilha da Boavista e a propósito do epitáfio de uma jovem inglesa, morta aos 20 anos devido à epidemia de febre amarela, em 1845, a reelaboração da versão mítica sobre a origem do arquipélago natal: desabitadas até 1460, data da chegada dos colonizadores lusitanos àquele território, a existência das ilhas de Cabo Verde  só poderia ser atribuída a   uma simples distração do Criador (pp. 13/14):

(...) Conta-se que Deus já tinha acabado de fazer o mundo e distribuído as riquezas que deveriam alimentar os seus filhos que nele ia colocando, negros na África, brancos na Europa, amarelos nas Ásias e Américas, quando reparou nas suas mãos, ainda sujas de restos de barro. Sacudiu-se ao acaso no espaço, mas, pouco depois, viu pequenas ilhas brotando algures perto da África. (....)

Mas faltava gente e riqueza para para que essas fossem algum dia... terra de gente... O que Deus não contava é que os portugueses acabassem um dia por  aportar às ilhas e transformá-las em entreposto de escravos. Mais tarde,  o negócio deixou de ser rendoso, as ilhas foram entregues a donatários, mas já povoadas pelas mais desvairada gentes, de África e de Portugal... A a pequena grande distração divina  (mais do que uma maldição) confirmou-se: Cabo Verde continuou condenada à sua sorte, ao seu isolamemnto, às secas periódicas, à fome...

E aqui o escrit0r é subtilmente irónico, parodiando a teoria do luso-tropicalismo do Gilberto Freyre (1900-1987),  inicialmente rejeitada e só tardiamente adotada  pelo Estado Novo:

(...) Mas também é muito natural que Deus tivesse tido em vista um outro projeto bem mais complexo e de que de imediato não quis revelar aos seus colaboradores: criara um loboratório experimental de miscigenação de raças e culturas e ver o que dessa miscelânea poderia sair. E saiu o homem cabo-verdiano.  (...) (pág. 15).

Um país que conta, na diáspora com mais do dobro da sua população interna, poderia facilmente sofrer "efeitos erosivos catastróficos a nível cultural e de identidade". Mas, não, o cabo-verdiano continua  carregando consigo a sua cultura, vivendo nas setes partidas a cachupa, o grogue,  a morna" (pág,  15), isso explica, só por si, que a ideia (tonta) do projeto político de unidade  Guiné-Bissau / Cabo Verde, propugnada por Amílcar  Cabral, estava desde logo condenada ao fracasso...


3. Germano Almeida nasceu na ilha da Boa Vista em 1945. Fez o serviço militar em Angola, 1965, em Maquela do Zombo, província do Uíge,  foi lá que começou a escrever "A Ilha Fantástica" (1994), com memórias da sua infância. Licenciou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa, graças a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, Vive em São Vicente, no Mindelo, onde, desde 1979, exerce a profissão de advogado.

Publicou as primeiras estórias na revista "Ponto & Vírgula", assinadas com o pseudónimo de Romualdo Cruz. Essas estórias foram publicadas em 1994 com o título "A Ilha Fantástica", que, juntamente com "A Família Trago" (1998) recriam os anos de infância e o ambiente social e familiar na ilha da Boa Vista.

Mas o seu primeiro romance foi "O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo" (1989) que marca a" rutura com os tradicionais temas cabo-verdianos." Segundo Ana Cordeiro, responsável pela nota biográfica que vem na badana dos seus livros, "O Meu Poeta" (1990), Estórias de Dentro de Casa (1996), "A Morte do Meu Poeta" (1998", "As Memórias de Um Espírito" (2001) e "O Mar na Lajinha" (2004) formam o que se pode considerar "o ciclo mindelense da obra do autor".

Tem obras publicadas em mais de uma dúzia de países estrangeiros. O seu editor em Portugal é a editorial Caminho (Grupo Leya). (**)

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22679: Notas de leitura (1391): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (3) (Mário Beja Santos)

(**) Último poste da série > 26 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

Os caboverdeanos antes do 25 de Abril, já eram dos mais alfabetizados de Minho a Timor, a par do ex-Estado da India.

Quando a Guine foi reconhecida na ONU no dia 24 de Setembro de 1973 como país independente, deixando Caboverde para traz, automaticamente estava impossibilitada a tal Unidade preconizada por Amilcar Cabral.

Mas será que Cabral, assassinado em Janeiro, se vivo e presidente do PAIGC, iria proclamar em Setembro/73 a independência da Guiné nas Nações Unidas sem dizer qual o estado em que ficava Caboverde?

Com Amílcar vivo, o PAIGC não devia proceder da mesma maneira.

E talvez Amílcar, com um povo tão politizado como eram e são os caboverdeanos, ia ouvir o povo antes de impôr a independência.

Enfim, os caboverdeanos também são bastante diferentes entre si.

Sem Amílcar, ficou tudo mais fácil, mais à maneira de Cuba e União soviética.



Tabanca Grande Luís Graça disse...

Segundo o Armindo Ferreira, o apresentador da obra (, mesmo que seja da mesma área político-ideológica, e portante os dois marcadamente anti-PAIGC / PAICV), o "Daniel dos Santos confronta ainda, com subtileza, a presença de cabo-verdianos na luta armada, segundo ele, de 30 a 40, com a dos cubanos que chega a atingir os 500 no ano de 1967, bem como os mortos em combate – 2 da parte dos cabo-verdianos e 17 da parte dos cubanos."
... Estes números, que não devem andar fora da realidade (exceto talvez o dos cubanos que me parece exagerados), dão que pensar... O "guineense" Amílcar Cabral, apesar da sua ascendência cabo-verdiana e do seu inegável carisma, não conseguiu convencer durante aqueles anos mais patrícios a morrerem pela pátria...

Gostava que se abrisse aqui no blogue um debate sobre a "independência" de Cabo Verde, segundo uma ideia do escritor Germano Almeida o dossiê podia ser "adjacência 'versus' independência"...

Antº Rosinha disse...

Impossível tal debate aqui sobre Caboverde porque os caboverdeanos não colaboram numa dessas, Luís Graça.

Por vários motivos, mas o principal motivo é que são muitos milhares de caboverdeanos e seus descendentes, netos e bisnetos com a primeira, segunda ou terceira mulher que continuam portugueses, em geral com Bilhete de identidade em Lisboa, na freguesia de São João da Pedreira.

São portugueses, mas como não praticam, abstêm-se. e embora o BI tenha o seu nome, registado na sua freguesia em geral só é conhecido entre a tribo, por um apelido, tipo código, tipo alcunha, só para eles.

Há muitos caboverdeanos espalhados por Lisboa e arredores, mas que fazem tertúlia na Cova da Moura, talvez quem mora ali, seja minoria em relação a quem mora fora dali.

Luis, podem debater entre eles certas coisas deles, mas só entre eles, não com terceiros.

Mas essa da nacionalidade portuguesa, passa-se algo semelhante com as elites angolanas e guineenses.

Os portugueses não somos apenas os 10 milhões.