sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17807: Notas de leitura (999): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Banco Nacional Ultramarino de Bissau

Segunda recensão dos relatórios que o Banco Nacional Ultramarino (BNU), da então Guiné Portuguesa, enviava periodicamente para Lisboa, e que Mário Beja Santos descobriu por acaso nos arquivos da Caixa Geral de Depósitos, onde, além dos relatórios de contas, se fazia menção às ocorrências de ordem social e política naquele território ultramarino.

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1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Embora se lastime não estarem disponíveis quaisquer dados do BNU em Bolama entre 1903 e 1916, a partir dessa data surge documentação estuante, apreciações que raiam o assombroso de um gerente de uma vila guineense para a sede do Banco do Império.
Recorde-se que por essa época, mais propriamente em 14 de Junho de 1917, vai abrir a agência do BNU em Bissau, o BNU já tem um vasto conjunto de agências: Lourenço Marques, Inhambane, Quelimane, Moçambique, Bolama, S. Vicente e S. Tiago, S. Tomé, Luanda, Moçâmedes, Nova Goa e Macau, irá ainda conhecer a expansão. Abre em Bissau com mobiliário emprestado, a abertura da agência foi recebida com o melhor acolhimento e até júbilo pelos comerciantes. Por esta época também, vai começar a renhida competição entre quem é mais importante - Bolama ou Bissau.
Os cronistas do BNU da Guiné não se cansarão de tomar partido, de dizer abertamente o que pensam.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (2)

Beja Santos

Mal começa a leitura da parte anexa ao relatório do ano de 1917 da agência de Bolama (onde cabem referências a 1916), apercebemos-nos rapidamente que aquele funcionário tem plena liberdade para dizer verdades como punhos, tecer opiniões sobre a realidade colonial, seguramente que estava autorizado para usar de tal franqueza, do mesmo modo como fala da competência dos funcionários da agência.

Oiçamo-lo a falar da colónia em plena I Guerra Mundial:
“Nenhuma das nossas colónias está atrasada como a Guiné. Província naturalmente rica, de uma grande fertilidade cortada por rios e canais que bem poderiam ser aproveitados, quando cuidados, facilitando as comunicações e transportes, com uma população numerosa cuja cifra exata ou mesmo aproximada ainda hoje se desconhece, a uma distância curta da metrópole, tão descurada tem sido e continua a ser que penaliza não haver progredir quando o seu progresso seria relativamente fácil de se acentuar se um programa de fomento se pusesse em prática, por singelo que fosse. Na situação em que se encontra e avaliando o seu movimento comercial pelos dados estatísticos, pode dizer-se sem receio de desmentido que este movimento é insignificante comparado com o que poderia ser se as circunstâncias em que a província estará fossem bem aproveitadas”.

Refere a falta de transportes marítimos para a exportação, a melhoria de movimento comercial em 1916, as exportações de coconote e mancarra, a primeira aumentara, a segunda diminuíra. Houvera em arroz, borracha, couros e cera, ligeiros aumentos nas quantidades exportadas. Havia carestia de artigos importados. Entende o gerente que a província está no seu início de vida e que se impõe fazer alguma coisa de útil. Tece o seu diagnóstico:
“A agricultura limita-se às sementeiras de mancarra e arroz feitas pelos indígenas por processos muito rudimentares. Indústrias não há. Vias de comunicação existem, mas como os rios e canais se não limpam nem cuidam de qualquer forma; as comunicações dentro da província são muito demoradas e um telegrama nunca é transmitido sem ser mutilado ou adulterado; estamos à mercê apenas do cabo submarino inglês que de vez em quando se interrompe e assim permanece durante meses, como tem acontecido nos últimos anos. A alfândega tinha os seus serviços mal organizados; veio recentemente para aqui um funcionário das alfândegas de Angola, comissionado para a pôr em ordem, mas até agora apenas tem criado dificuldades e disposto os serviços de forma a cobrar mais emolumentos que anteriormente. O município de Bolama não cura das comodidades dos munícipes. Tudo aqui falta; não há condições higiénicas, tudo está desprezado, tudo é indolência. Bolama tem excelentes condições naturais para ser uma cidade salubre mas não passa de uma aldeia que apresente como principal característica o desleixo e a incúria. Os serviços públicos estão mal feitos; o pessoal é, em regra, péssimo e em grande parte desonesto. A sanidade não preocupa às autoridades médicas. A preocupação principal aqui é a política de raças e a pessoal dos governadores ou outras entidades que formam coteries (associações de interesse comum) por meio de intriga, favores à custa do Estado, etc.
No arquipélago de Bijagós, em algumas ilhas, principalmente em Canhambaque, o indígena está em rebelião armada; parece que há interesse em prolongar este estado de coisas e embora haja constantes perdas de vidas do lado das forças fiéis nada se tem feito de importante para pôr termo a tal rebelião.
Sabemos que o governo não dispõe de munições e os rebeldes também não o ignoram; não será para admirar que a rebelião alastre porque uma grande parte da população gentílica está numa submissão aparente.
As principais funções administrativas, judiciais, militares e técnicas estão na maioria sendo desempenhada por interinos.
A justiça não inspira confiança”.

Esta a linguagem crua do relatório enviado para Lisboa. O gerente não se coíbe de se pronunciar sobre o governador num ofício reservado que envia para a gerência do BNU em Lisboa em 9 de Julho de 1916, onde reza o seguinte:
“Conforme o nosso telegrama de 4 decorrente, o governador (José Andrade Sequeira) pediu a demissão. Embarca neste vapor. Parece que o motivo foi ter dispensado o Capitão Teixeira Pinto de tirocínio para major em recompensa dos serviços prestados à Guiné e elogiado os oficiais que entraram na campanha de Bissau, acrescido de diversas portarias que o governo da metrópole lhe mandava publicar, que embora justas, eram vexatórias para Sua Excelência. Assim que foi conhecido o pedido do governador, lia-se em todos uma satisfação como se fossem libertos de um grande pesadelo.
A maior desgraça da Guiné seria o regresso deste governador que enquanto aqui esteve só fez perseguições, injustiças e protegeu amigos, absolutamente nada tendo feito de útil para a Província. Dormia quando toda a gente estava acordada, levantava-se às 13h para almoçar, deitando-se em seguida novamente para se levantar pelas 6h a fim de jantar e depois jogava ele e a trupe até altas horas (2, 3, 4 e mais da manhã).
Os amigos que lhe são sinceros dizem que não é ele o culpado mas sim os que o rodeavam. Ultimamente parecia que estava doido e com o seu ajudante portou-se como tal”.

O BNU de Bolama reconvertido em Hotel de Turismo

Mas há ainda outros acontecimentos em 1916 que merecem comentários políticos por parte do gerente de Bolama, talvez o pano de fundo que antecede as informações que se reportam atrás. O assunto do ofício é um comício público e refere uma reunião em defesa do governador e de aplauso à sua obra administrativa, a data é de 21 de Fevereiro portanto anterior ao seu pedido de missão, comício promovido por alguns chefes de repartição. Escreve que o comício foi concorrido na sua maioria por gentio e alguns dos oradores falaram em crioulo atacando a guerra de Bissau. E não se coíbe de comentar: “A política aqui com o atual governador está numa crise aguda fervilhando a intriga e a calúnia de tal forma que não é fácil prever onde poderá chegar este estado de coisas”. E faz a previsão do que irá acontecer em 1917, a guerra nos Bijagós, a soberania portuguesa era alvo de desrespeito. Informa igualmente Lisboa que na região de Cacheu o gentio se recusa a pagar o imposto de palhota.

Veremos seguidamente o relato que o gerente faz da guerra nos Bijagós em 1917 e o seu relatório referente a 1917 e 1918, mais uma vez de uma franqueza que não é difícil de classificar como inusitada de gerente de uma pequena colónia para a gerência do Banco do Império.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior da subsérie BNU de 22 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17786: Notas de leitura (997): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17796: Notas de leitura (998): “A França contra África”, por Mongo Beti; Editorial Caminho, 2000 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Interessantíssima esta série de textos.
É a verdade no seu melhor. Não há censura nem o produtor do texto se sente na necessidade de ser "atento venerador e obrigado". Escreve-se o que se passa e é, como sempre foi, lamentável que os decisores e dirigentes não tenham em conta as informações que recebem. Isto não é uma censura, é a constatação de um facto e pouco importa comparar este procedimento com os dos outros países com colónias.
Foi assim e fica incontestavelmente provado que foi.
Ao Beja os meus agradecimentos pela recolha e divulgação de documentos sobre a Guiné, nos seus múltiplos aspectos.

Um Ab.
António J. P. Costa