quarta-feira, 15 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21171: Historiografia da presença portuguesa em África (220): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Os Boletins da Sociedade de Geografia, neste período áureo de ocupação do território, encerram tesouros estranhamente explorados pela historiografia. Admito a pura ignorância, mas nunca li trechos desta viagem do Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira que em 1889 foi receber a região de Cacine como território português e entregou às autoridades francesas o nosso património na bacia do Casamansa.
O que descreve é do melhor que há de literatura de viagens, é tudo escrito com uma sinceridade de quem pela primeira vez percorre aqueles pântanos e aquelas matas e rapidamente se apercebe que a nossa presença, até então, era uma pura ficção, não é por acaso que ele descreverá detalhadamente a região mais próxima, onde de facto tínhamos uma presença multisecular, o rio Grande de Buba e Bolola, que naquele período vivia numa completa tragédia nas guerras entre Fulas, Fulas-Forros e Fulas-Pretos, a que se adicionou a cobiça cruel dos Beafadas, guerras que culminaram na ruína económica da região. É um puro deleite esta viagem cheia de riscos, de alguém que comove as autoridades francesas ao caminhar desfraldando a bandeira da Monarquia Portuguesa.

Um abraço do
Mário


Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (2)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia, 8.ª Série, N.º 11 e 12, 1888-1889, traz um importantíssimo trabalho do Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira, sócio da Sociedade de Geografia e que fora o comissário português encarregado de estudar a demarcação das fronteiras à luz da Convenção Luso-Francesa. É um documento precioso, na minha modesta opinião, um dos mais valiosos sobre a época em referência. Como se poderá ver neste e textos subsequentes. Costa Oliveira fora nomeado para dar execução ao tratado assinado por Portugal e a França, parte com o adjunto, um antigo secretário-geral da Guiné, o Sr. Augusto César de Moura Cabral. Já saiu de Bolama e embrenhou-se no mato, trata-se da segunda parte deste preciosíssimo documento, a incursão das comissões portuguesa e francesa têm o ponto de encontro em território francês, Kandiafara, pelo caminho ocorrerão episódios que o capitão-de-fragata regista com um fulgor raramente visto em viajantes:
“Às seis horas da manhã, depois de termos tomado o nosso café e alguns decigramas de sulfato de quinino, abalámos, indo o guia na frente, eu no centro da linha de carregadores e Bacelar na retaguarda para vigiar e instigar a marchar aqueles que, menos habituados a longas caminhadas, ficassem atrás para descansar, sem ser ocasião própria.
Em marcha era costume nosso, de duas em duas horas, fazer um auto junto de algum curso de água, não só para nos dessedentarmos mas também para descansar, e às dez horas tencionávamos acampar para almoçarmos; porém, o homem põe e Deus dispõe. Às nove horas entrávamos em uma tão densa floresta que a claridade do dia dificilmente ali penetrava, em virtude da espessa folhagem das árvores colossais que a constituíam. As trepadeiras enroscando-se nos grossos troncos e passando de uns para outros, formando uma espécie de rede de malhas largas e guarnecidas de acerados espinhos, muito dificultavam a marcha dos carregadores, sendo preciso até irem dois homens na frente, de machado e faca em punho, abrindo o caminho. Ainda assim, as cargas colocadas sobre a cabeça batiam amiudadas vezes de encontro aos ramos e caíam pesadamente no chão, arrastando na sua queda o carregador que se esforçasse em as segurar.

Quando saímos da floresta, deparou-se-nos o espectáculo mais grandioso que observámos durante a nossa viagem. Uma vasta planície, um oceano de verdura, povoado por centenares de antílopes, que se estendia na nossa frente até aonde a vista podia alcançar!
Água havia, mas negra, fétida, pestilencial. O terreno lodoso e mole era cortado por inúmeros regatos e alagado em muitos quilómetros de extensão. E sobre tudo isto um sol abrasador, ainda próximo do zénite!
Por duas vezes deixámos os burros atolados nos lameiros e de ambas os indígenas de Kabu, que nos acompanhavam, pegando-lhes em peso, os salvaram do abandono a que estavam condenados. Tal foi o meu debute como viageiro!
Derribar árvores, cortar arbustos, capinar a palha e plantas espinhosas, foi o trabalho de toda a gente durante uma hora, mas finda ela tínhamos espaço suficiente para estabelecer o acampamento. Acenderam-se fogueiras, cordas fabricadas com a casca de uma espécie de vime, cobriram-se imediatamente de casacos, camisas, panos, botas, tudo em uma promiscuidade e confusão pitorescas! A água chiava nas caldeiras e cafeteiras, o que nos enchia de prazer, pois ninguém comia havia mais de treze horas, e os pretos não são sóbrios.

Ao alvorecer do dia seguinte abalámos. O terreno modificara-se completamente e a viagem fez-se bem até Biquese, aonde chegámos às duas da tarde. Na Guiné, como todos sabem, a nenhum estranho é permitida a entrada nas tabancas ou praças, sem prévia autorização dos chefes; por isso, quando Sayon soube da nossa chegada aos seus domínios, enviou imediatamente uma numerosa embaixada para nos cumprimentar e introduzir na povoação, aonde nos esperava com a sua corte. Quando avistámos a embaixada fomos agradavelmente surpreendidos com o aspecto ao mesmo tempo imponente e alegre da comitiva. Na vanguarda vinham os músicos, tocando uma espécie de marcha guerreira. Seguiam-se-lhes uns oito homens, vestidos com um certo luxo, eram os grandes, e após estes uns cem soldados ou homens de guerra, armados de espingarda e espada mandinga.
a uns cinquenta passos aproximadamente de distância, os soldados de Sayon pararam, e os músicos e os grandes continuaram a marchar gravemente para o local onde estávamos assentados. Fomos cumprimentados em nome de Sayon e convidados a seguir o marabu até à povoação.

Concluídas estas formalidades, que os indígenas nunca dispensam, partimos ordeiramente. À entrada de Biquese, pelo lado do rio Cacine, existem duas renques de formosíssimas árvores que marginam e dão sombra ao caminho da praia. Debaixo destas árvores, e a um lado e outro do caminho, haviam colocado bancos de madeira pintada, e no centro uma cadeira com assento de palhinha, que supunha ser para Sayon. Ao fundo, por de sobre a porta da tabanca e em mastro apropriado, tremulava o pavilhão francês. Sayon e a sua corte aguardava-nos neste delicioso recinto, e logo que nos avistou veio ao nosso encontro saudar-nos e felicitar-nos por haver feito a viagem “sem novidade”, como lhe dissera o guia. Convidou-nos a descansar na cadeira, e os seus músicos, assentados no chão e na minha frente, cantaram, acompanhando-se várias canções indígenas.
Sayon-Salifú, filho de Dinah-Salifú, que esteve em Paris em julho de 1889, é um preto retinto, de estatura regular e distinta. Fala francês com facilidade, escreve o inglês e entende o alemão. Disse-nos ter sido educado na Bélgica, aonde estivera sete anos, porém, mais tarde, soubemos que fora marinheiro em um navio daquela nação. Veste à europeia, com o tradicional bubu, e parece-nos ser muito respeitado pelos Nalus, e afeiçoado aos franceses, que o haviam nomeado chefe do rio Cacine. Sayon convida-nos a tomar posse dos belos alojamentos que havia mandando preparar, e oferece-nos um copo de água. À noite, grande batuque, simulacro de guerra, etc.”

A viagem prosseguirá na lancha Cacine, que o leitor registe o dado histórico fulcral, Portugal através deste homem, o Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira, está a tomar posse de uma nova parcela do Império Português na África Ocidental, a região de Cacine, no termo da sua viagem, como veremos, sem esconder o pesar, entrega o Casamansa às autoridades francesas. Um relato sem rival, uma narrativa de grande sinceridade, não faltam ataques de abelhas e de formigas devoradoras, carregadores medrosos, e o assombro da comitiva portuguesa que descreve o fascínio do interior daquela Guiné, como é o caso das belezas do Cantanhez.

(continua)
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Notas do editor

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1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Colonizamos Cazamance durante 425 anos e Cacine apenas 75 anos.Cazamance pode ter muita razão de queixa, mas Cacine não.