Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 30 de agosto de 2023
Guiné 61/74 - P24601: Historiografia da presença portuguesa em África (383): Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII na "Revista Itinerarium", ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:
Queridos amigos,
O Padre Manuel Pereira Gonçalves bem investigou no Arquivo Histórico Ultramarino e está na posse da mais recente bibliografia sobre a ação missionária no período que canaliza, a segunda metade do século XVII. Era imperioso para a Coroa fazer um esforço de missionação a partir da diocese de Cabo Verde, que tinha uma ampla extensão e pouquíssimos missionários, recorde-se que a terra firma da costa da Guiné ia desde o rio Gâmbia até ao rio de Santo André. O autor jamais ilude como todo aquele trabalho foi precário e sem sequência, diz mesmo que a presença portuguesa na Guiné foi praticamente nula não só naquele século mas como nos seguintes. Dá-nos um bom histórico sobre o chamado período dos Rios da Guiné e da Etiópia Menor, é muito elucidativa a sua exposição sobre este período missionário que abrangeu a Província de Nossa Senhora da Piedade e a Província da Soledade. E também o autor enfrenta uma questão poderosa que era a ligação entre missionários e comércio, procura dar justificações e recorda que ainda há muitos arquivos por consultar.
Um abraço do
Mário
Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII (2)
Mário Beja Santos
Confesso que desconhecia por inteiro os trabalhos que o Padre Manuel Pereira Gonçalves tem dedicado à Guiné e este seu trabalho publicado na Revista Itinerarium (revista semestral de cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal), ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022, como o leitor comprovará, introduz elementos novos face ao que já sabemos, sobretudo depois das incontornáveis investigações do Padre Henrique Pinto Rema.
O seu trabalho intitula-se "A Missionação dos Franciscanos Observantes (1656-1700), na Guiné ou nos Rios da Guiné". Recorda-se o que já se deixou escrito, o nascimento da diocese de Cabo Verde, que se estendia desde o rio Gâmbia até ao rio de Santo André; uma síntese sobre a presença portuguesa nos Rios da Guiné ou Etiópia Menor (1432-1438); os testemunhos dos Jesuítas na Serra Leoa; o trabalho desenvolvido pela Província de Nossa Senhora da Piedade, um apostolado que irradiava de Cacheu para Norte e Sul. E fica bem claro que a Guiné e a missão de Cabo Verde nos finais do século XVII e durante o século XVIII não atraíam vocações.
Temos agora o registo da Província da Soledade. Em 1674, partiram dez religiosos da Província da Soledade e tinham como superior de missão Frei Vicente de Celorico. O problema era melindroso, apareceram religiosos espanhóis que diziam ter sido enviados com o beneplácito papal, de quem dependiam diretamente, obrigaram a uma intervenção diplomática em Roma. Os religiosos franciscanos arvoravam-se como mensageiros do espírito de S. Francisco, pregavam a alegria e a fraternidade. Mas a missionação era precária. Em 1697, o Conselho Ultramarino sugere às autoridades que em Cabo Verde e na povoação de Cacheu haja catequista indígenas que saibam as línguas da terra e sejam eles os encarregados de preparar os escravos para o batismo, antes de seguirem para o seu destino.
Esta ideia de evangelizar através dos catequistas foi um método que os missionários voltaram a utilizar no século XX. E o autor profere a sua própria observação:
“Uma religião dogmática, intelectual, não tem razão de ser na linguagem do africano. A nossa opinião é que ontem como durante muito tempo no século XX, a Igreja procurou sacramentar, marcar os indivíduos antes que os outros fizessem a sua pedagogia. Mas no século XVII este sempre na mira dos navegantes que o importante era impedir que outras religiões chegassem antes de nós.”
E diz-nos, igualmente, que a presença efetivas dos franciscanos era feita através de hospícios, pequenas capelas, catequeses, os franciscanos na costa ocidental da Guiné não se estabeleciam em lugares fixos. Construíam pequenos locais de catequese mais ou menos provisórios por onde o missionário passava de tempos a tempos. E faz as suas críticas:
“É verdade que nem sempre os missionários foram benévolos para como o comportamento do gentio. Partilhamos da opinião de que, na maioria das vezes, os sacerdotes foram cúmplices em muitas cerimónias que tinham muito de paganismo e muito pouco de vestígios religiosos (…) Em alguns aspetos, a presença religiosa foi inovadora. Religiosos houve que procuraram aprender as línguas nativas, utilizaram catequistas africanos no sentido da catequese e condenaram os métodos utilizados pelos compradores de escravos.”
E disseca o trabalho missionário: “Construíram pequenos locais de catequese mais ou menos provisórios, por onde o missionário passava de tempos a tempos. A falta de clero secular fez com que muitos religiosos tivessem substituídos os sacerdotes na missão de paroquiar. Esse trabalho paroquial impediu uma presença mais efetiva e mais franciscana nas comunidades. O primeiro hospício terá sido construído para frades na povoação de Cacheu, por volta de 1660. Em 1677, já estava arruinado. O segundo hospício foi construído para apoio dos religiosos, em Bissau. Foram os Capuchinhos espanhóis que iniciaram as obras.” E diz-nos igualmente que a pregação apostólica dos religiosos da Província da Soledade tinha esta particularidade singular que era a itinerância. O cronista da Soledade informa que do hospício de Bissau se ia todos os anos ao rio Nuno. No século XVIII, as vocações para esta missão eram cada vez em menor número, o apostolado ficou localizado à volta dos dois hospícios existentes, Cacheu e Bissau.
E o autor debruça-se sobre outra questão delicada, os missionários que se dedicavam ao negócio. Em 1753, era o rei a admoestar o Provincial da Soledade por terem os seus religiosos uma casa clandestina de negócios em Farim, na direção da casa estava um irmão leigo. Mas havia outras queixas: casa aberta de comércio em Geba, contratação de escravos em vários portos, muita dedicação aos negócios e pouca ação no campo religioso.
Prestes a terminar o seu artigo, o autor interroga-se do porquê deste engodo do comércio e procura dar explicações:
“A vida dos missionários não era um mar de rosas. O grande benfeitor, quase único benfeitor, era o Governo de Portugal materializado nas côngruas e viáticos, o pagamento andava sempre muito atrasado. Os religiosos não podiam contar com o auxílio da população. Será escandaloso o terem necessidade de se dedicarem a processos de ordem económica para poderem garantir a sua subsistência sem aludir já ao apoio que ele representava para obras materiais e para o seu apostolado, tais como: igrejas, conventos, hospícios e todo o recheio necessário? A comunidade cristã não tinha estruturas económicas para poder ajudar os religiosos missionários. Há casos isolados, que apenas confirmam a regra geral. Nos finais do século XVII, as crianças Felupes ajudavam na construção da igreja local pelo seu próprio trabalho manual; há ainda a informação de que os Bijagós da ilha de Carache se ofereceram para ajudar a presença dos missionários com arroz e com uma vaca para auxiliar no sustento e no trabalho. É esta a situação económica destes religiosos que partem para a missão de espalhar o Evangelho. Nestas circunstâncias, era natural que um ou outro religioso se dedicasse ao negócio para sobreviver. Só assim nos parecesse justificado o trabalho comercial com o qual angariava o necessário para si e para a missão.”
Mas há um outro aspeto crítico que o autor levanta no termo do seu artigo: “Sabemos de religiosos que deixaram de evangelizar para viver, naquelas paragens, a comerciar. Longe do seu pensamento estava a conversão do indígena e o desenvolvimento socioeconómico do africano. Contudo, legitimar estes factos é complicado, pois que a documentação é escassa.” O autor conclui o seu trabalho com o levantamento que pôde fazer de alguns missionários franciscanos na missão da Guiné no século XVII.
Consideramos este texto do maior interesse dado que o Padre Manuel Pereira Gonçalves trabalhou no Arquivo Histórico Ultramarino e está na posse de bibliografia mais recente sobre a missão franciscana da Guiné.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24580: Historiografia da presença portuguesa em África (382): Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII na "Revista Itinerarium", ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022 (1) (Mário Beja Santos)
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