Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Guiné 63/74 - P4932: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (XI): Final (MAI68-JAN70)
Final do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (XI)
Coimbra, 18 de Maio de 1968
Não merecia tanto. Há mais de um ano que regressei da guerra e não há maneira de me sentir inteiro. Ando por aí, caindo aos bocados, vomitando pelas ruas, agarrado às grades de ferro de certos muros, cheio de pânico no futuro, que o presente, estou-o desperdiçando, por isso me agarro doentiamente ao passado, que bem sei que nunca foi um paraíso e a prova visível sou eu próprio. As dores de cabeça são por vezes terríveis e prolongam-se por mais de um dia. Dizem-me os médicos que tenho de ajudar-me, caso contrário a vida deixa de me ter sentido. Já deixou. Pelo menos em certas ocasiões, que se estão multiplicando e tornando cada vez mais frequentes. Tenho feito exames e passado com classificações muito razoáveis, até fiz mais do que eu próprio esperava, talvez por pressentir que ninguém acreditava nas minhas possibilidades. Faltam-me apenas quatro cadeiras, três das quais de envergadura, para concluir o plano de estudos do meu curso. Por este andar ainda me formo em menos de um ano. Bem entendido que pago alto preço por cada disciplina que arrecado. Sempre que faço um exame, fico uns dias acrescentados de cama, desfalecido, pele e osso, o cérebro vazio, tentando reconstruir-me para enfrentar outro [...].
Tomar, 17 de Dezembro de 1968
Vim esperar meu irmão Artur. Chegou hoje de Moçambique. Quando me abraçou, disse-me à queima-roupa que eu parecia um esqueleto ambulante. Respondi-lhe que era do estudo intenso a que me tinha submetido, já que me estava preparando para concluir o curso dentro de pouco tempo. Menti-lhe. Nunca o meu estudo teve uma intensidade por aí além. E nunca a teve, não porque não desejasse, mas porque nunca tive tempo. O que me sobra, depois das preocupações que tenho comigo, pouco ou nada representa. De oficial de dia ao Regimento de Infantaria 15 estava o capitão da minha Companhia da Guiné, o que não veio connosco por ainda lhe faltar algum tempo para terminar a comissão de serviço. Enquanto meu irmão foi tratar da sua desmobilização, fui para o gabinete do oficial de dia, onde também eu já estivera algumas vezes de serviço, conversar um pouco com o velho capitão. Parecia que estávamos os dois na tropa. Quando o cabo de transmissões lhe veio trazer uma mensagem confidencial vinda do QG, leu e depois passou-ma, para que a lesse também. Tal qual como na Guiné. Valeu meu irmão, já desmobilizado, ter vindo buscar-me, caso contrário ainda me metia de novo na pele de alferes. Magreza quase igual à que trazia quando desembarquei, tenho-a também agora. De forma que só me faltava a farda. Meu irmão vem tão ansioso por embarcar para a América que me disse que vai já começar quanto antes a tratar dos papéis.
Gerês, 21 de Julho de 1969
Vim para as termas em cata de alívio. Perguntei ao Louzã Henriques se fazia bem em vir. Disse-me que sim, que mal não me faria. Vai sempre ao meu jeito e não sei se isso me faz bem. Estou aqui há mais de uma semana. Saiu o Doutor Quintela e vim eu para o seu lugar. Ficou combinado em Coimbra. Ele costuma dizer que vem limpar a isca. Não me queixo do fígado, mas a função que exerce está alterada. Deve ser dos nervos. Estou todo alterado. Enquanto aqui esteve o Doutor Paulo Quintela, enviei-lhe todos os comunicados da crise académica produzidos durante a sua ausência. Sem remetente, que nunca se sabe. Rebentou em 17 de Abril, dia em que se inaugurou o edifício das Matemáticas. Houve greve geral aos exames, que foi um êxito, o que abalou o regime primaveril de Marcelo. Cumpro à risca a dieta prescrita. Bebo as águas com fé, como a comida sem sal, tomo banho de agulheta. Ao princípio tomava apenas um. Dois dias mais tarde, queixei-me ao médico de que não dormia. Receitou-me mais um banho de agulheta, à tarde. Um de manhã e outro ao fim da tarde. De tal maneira me desceu a tensão arterial, que ando aos tombos e nem sequer consigo ler. O resto do tempo, que é quase todo, ouço as asneiras dos africanistas em férias. Vieram tratar da figadeira e encontram-se aqui na Pensão da Ponte. E entro em ebulição, porque não posso ficar calado. Suspiram por Salazar e ainda têm esperança num milagre que o reponha no poder. Quem há meses lhe sucedeu na Presidência do Conselho é ainda demasiado liberal para tal gente habituada a lidar com pretos, como se fossem animais de estimação. Bem lhes conheço a crónica. Mas hoje houve tréguas. O homem poisou na Lua. Vi tudo pela televisão com o coração nas mãos. E à noite fui passear para a ver com outros olhos boiando no mar do céu .
Leiria, 27 de Janeiro de 1970
Fui hoje a mais um consultório médico. Já tenho percorrido vários. O costume. Sou um doente crónico. Tenho bem a quem sair, isto é, a mim mesmo ou ao outro que coabita em mim. Mas, hoje, sentia-me terrivelmente angustiado. Tinha comprado ontem um livro intitulado Viva sem Medo. Li-o de uma assentada, mas fiquei na mesma ou com mais medo ainda. E há pouco resolvi ir a um médico para ver como se comportava comigo. Escolhi-o pela tabuleta. E gostei. Fez-me perguntas e mais perguntas sobre o meu passado. Até que eu próprio cheguei à raiz e à razão da minha redobrada angústia neste dia sentida ¾ faz hoje exactamente três anos que cheguei da guerra e o relógio psíquico interior acusou a efeméride e quis condignamente celebrá-la.
Cristóvão de Aguiar, em 27 de Novembro de 2008, na Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella, na apresentação da nova edição do seu livro Braço Tatuado.
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Notas de CV:
Vd. postes da série:
31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3823: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (I): Mafra, Janeiro de 1964
3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (II): Mafra, Fevereiro/Março de 1964
5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3843: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (III): Mafra, Maio/Junho de 1964
26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3944: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IV): Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)
11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)
19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27MAI65 a 29SET65)
25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (OUT-DEZ 1965)
28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)
3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4893: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IX): Nascimento do primeiro filho (SET - DEZ 1966)
7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4917: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (X): O difícil regresso à vida civil (JAN - JUN 1967)
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