domingo, 6 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4910: Os Nossos Médicos (3): Os especialistas eram poucos, e não gostavam de ir para... o mato (Armandino Alves, CCAÇ 1589, 1966/68)

Capa de uma brochura sobre higiene sexual, sem data, publicada pela Direcção do Serviço de Saúde Militar, e com destino às tropas mobilizadas para a guerra colonial... Reproduzida, com a devida vénia, da página da CCAÇ 3387, Escorpiões (Angola, 1971/73), bem como o excerto sobre os "ligeiros conselhos de higiene sexual" (Os nossos especiais agradecimentos ao Mário Ferreira da Silva, de Cacia, que criou e alimenta esta página, e a quem damos os nossos parabéns).


Ligeiros Conselhos de Higiene Sexual
Numa época em que um homem ainda podia ter relações sexuais sem o risco de apanhar doenças incuráveis, para as quais ainda não há qualquer hipótese de tratamento à vista, o exército português, na segunda metade do século XIX, tinha não apenas o cuidado de efectuar acções de sensibilização para os problemas das doenças venéreas, como também distribuía frequentemente documentação escrita, em forma de pequenas publicações num formato A5, na esperança de que os militares a lessem.

Volvidos mais de 30 anos após o término de um período em que os nossos homens eram obrigados a férias forçadas por terras distantes, vão-nos chegando verdadeiras relíquias documentais, que aqui arquivamos e damos a conhecer, após a devida conversão para um formato electrónico.

O presente documento, é uma publicação da Direcção do Serviço de Saúde Militar, rigorosamente transcrito e do qual reproduzimos apenas a capa da publicação, num formato A5, tal como anteriormente dissemos.

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DIRECÇÃO DO SERVIÇO DE SAÚDE MILITAR > LIGEIROS CONSELHOS DE HIGIENE SEXUAL

LEMBRA-TE:

– Que depois de teres contacto sexual com mulher é obrigatório procurares o posto antivenéreo [ P. A. V.] da tua unidade; e deves procurá-lo dentro de 3 horas, o máximo, depois desse contacto, para tirares resultado;

– Que tens no P. A. V. a garantia da tua saúde; e sabes que a tua saúde é o melhor capital de que dispões;

– E que, não procurando o P. A. V., não te desinfectando, arruínas a tua saúde para sempre, contraindo doença venérea; e depois levas para casa mal ruim que pegarás à tua mulher e que transmites a teus filhos.

FICA SABENDO:

– Que essas doenças venéreas são a blenorragia (corrimento de pus pela uretra) e que aparece alguns dias depois do contacto sexual;

– As feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus (cavalos duros) podem aparecer só passadas algumas semanas, e que muitas vezes se não dá pelo aparecimento, porque podem não doer; e há outras fendas no pénis (cavalos moles) que dão muitas vezes inchaços nas virilhas (as mulas).

TOMA CUIDADO:

– Com as mulheres que se dizem muito sérias e saudáveis e em geral são mais perigosas do que as outras. E procura não ter relações sexuais com mulher que tenha feridas, caroços nas virilhas ou no pescoço, rouquidão, aftas, purgação ou qualquer corrimento, que tenha as roupas manchadas, ainda que para isso te dê qualquer desculpa e que diga não ter isso importância alguma.

PROCURA:

– Fazer uma completa e boa desinfecção e para isso segue as regras que estão afixadas no P. A. V., e assim:

– Urina com força (pois que, urinando, fazes uma boa lavagem da uretra) e baixando as roupas convenientemente utiliza o mictório cavalgando com a face voltada para a parede e ensaboa, com o sabão desinfectante, durante um minuto, tudo o que esteve em contacto com as partes genitais da mulher, lava bem tudo com bastante água e, a seguir, repete a lavagem com mais sabão e durante 2 a 3 minutos.

ATENÇÃO:

– Nunca te fies na experiência apregoada das praças velhas e procura sempre o P. A. V., nunca te esquecendo que o tens de fazer dentro de 3 horas, o máximo, pois que, mais tarde, a desinfecção já não tem efeito; e mais, sempre que tenhas qualquer suspeita de doença venérea, consulta sempre o médico da tua unidade.

Post Scriptum - Segundo pesquisa que fiz posteriormente no catálogo da Biblioteca Nacional, esta brochura, de 12 pp., teria sido publicada muito anos antes do início da guerra colonial, em 1936, sendo o seu autor José Nevil de Ascenção Pinto da Cunha Saavedra (1895-?). Há indicação que teria sido uma separata da Revista Militar. De qualquer modo é de registar que p exército (ou o seu serviço de saúde militar) era muito mais pragamático e muito menos hipócrita, em matéria de prevenção das doenças do foro sexual, do que a generalidade das outras instituições da sociedade portuguesa da época... LG.


1. Texto, sof a forma de 3 mensagens e comentários recentes, do Armandino Alves, ex-1º 1º Cabo Enf da CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68), sobre a questão dos nossos médicos e demais pessoal do Serviço de Saúde Militar (*), no tempo da guerra colonial, tema de que temos falado muito pouco no nosso blogue (**), incluindo a sua história:

(i) 2 de Setembro de 2009:

Caro Luís Graça

Como está explícito no que escreveste [, Poste P4891] (**), os oficiais Médicos estavam sediados nos Comandos de Batalhão e faziam serviço nas Companhias Operacionais por escala Quinzenal ou Mensal e que raramente era cumprida. Muitas vezes nem cumprida era por motivos metereológicos. Por exemplo na altura das chuvas não havia médico pois as avionetas não podiam aterrar.

Quanto a nomes, pouca gente deve saber o nome, a não ser aqueles que pertenciam à CCS ou os Furriéis Enfermeiros que eram quem os assessoravam nas consultas. Eu, por falta de Furriel na minha Companhia, assessorei uma vez em Fá Mandinga e outra vez em Béli. Mas as consultas eram tão rápidas que nem tempo tínhaos para lhe perguntar o nome.

Por exemplo: Um dia estava com a minha esposa e um filho num consultório médico na Rua de Aviz, no Porto, para uma consulta de Pediatria. Esse consultório era partilhado por vários médicos de várias especialidades. Entretanto entra um senhor bem posto que olha para a sala de espera e de repente dirige-se a mim e pergunta-me:
- Você esteve na Guiné, não esteve ?! - Eu respondi-lhe que sim.
- E não me conhece ? - Eu olhei para ele e disse-lhe:
- Sinceramente, não!
Então ele disse-me:
- Eu fui o Médico que o safou de ir fazer Operações para o mato quando estava em Fá Mandinga.

Cumprimentámo-nos e eu nem lhe perguntei o nome. Não sei se ainda é vivo, se continua a exercer medicina e se continua com o consultório na Rua de Aviz.

Quanto aos Hospitais na Guiné, além do HM 241, havia o Hospital Central de Bissau, que mais parecia um matadouro e que se destinava à população civil.

Quanto à Metrópole, além do Hospital Militar da Estrela e Anexo, havia o Hospital Militar Regional nº 1 no Porto, o Hospital Militar Regional nº 2 em Coimbra e o Hospital Militar Regional nº 3, salvo erro em Évora.

Atualmente o Hospital Militar no Porto é 5 estrelas, parece um Hotel comparado ao tempo em que lá estive a tirar a especialidade.

O Hospital Militar da Estrela ficou mais conhecido porque as evacuações eram todas feitas para lá porque tinha lá perto o Aeroporto Militar de Figo Maduro e não convinha dar muito aparato a essas operações,q ue normalmente eram noturnas.

Armandino Alves

(ii) 2 de Setembro de 2009:

Caro Luís Graça

Sinceramente não sei a Constituição do Serviço de Saúde Militar (SSAM). Quando terminei a recruta em Leiria, fizemos a Formatura e um Oficial ia lendo os nomes e indicava onde nos devíamos apresentar. A mim calhou-me o Regimento do Serviço de Saúde em Coimbra. Entretanto soube que tinha existido na Rua da Sofia o Batalhão
do Serviço de Saúde que tinha sido extinto .Portanto íamos cumprir 4 meses de instrução teórica e depois mais 2 de prática num dos Hospitais Militares.

A mim e por sorte calhou-me o HMR 1 no Porto, pois fiquei em casa. Chegado ao Hospital fui colocado no Serviço de Infecto-Contagiosas onde o que aprendi foi a dar injecções de Penicilina e Estreptomicina. Foi aqui que vi morrer o primeiro recruta proveniente de Vila Real com a febre dos Fenos e que tinha sido obrigado a fazer um crosse àchuva com 40º de febre. Esteve ligado a uma máquina aspiradora que lhe aspirou tudo. Morreu num sofrimento atroz. Quando cheguei ao Hospital, cerca da meia noite, pois ia entrar de enfermeiro de dia, fui informado pelo meu colega que tinha que levantar a farda e vestir o morto, pois de manhã chegava a Família com o armador. A casa mortuária era nas traseiras do Hospital. Lá fui com a farda de gala e quando cheguei deparei-me com o morto completamente nu em cima de uma mesa de pedra mármore, sem sequer ter um lençol a tapá-lo.

Puz-me a pensar como é que me ia desenrascar sozinho e lembrei-me que a minha avó dizia que se devia falar com os mortos como se estivessem vivos. E não é que é verdade?

Chamei-o pelo nome e pedi-lhe para ele dobrar o braço para lhe vestir a camisa e ele deixou dobrar o braço. Ele já estava em rigor mortens. Só não consegui que os pés se mexessem e assim os calcanhares iam nos plainitos.

Terminada a especialidade, voltei a Coimbra e logo fui despachado para a Academia Militar em Dona Estefânia onde estive de 24 de Junho 66 até á minha mobilização. Aí sim era um serviço de saúde 5 estrelas, pois era para Oficiais de Carreira, de General para baixo. Era nessa altura responsável por esse serviço o Dr.
Pancada da Fonseca, salvo erro Capitão nessa altura. Tínha-mos um 1º Sargento Enfermeiro que tinha estado em Macau e vários 1ºs Cabos Enfermeiros.

Nessa altura eu ainda era Sodado Enfermeiro pois, apesar de ter sido promovido a Cabo em Fevereiro, só me foram entregues as divisas à entrada do barco.

Os Furriéis já eram enfermeiros na vida civil ou tinham terminado o Curso de Enfermagem. Não sei se faziam a recruta normal e no fim eram colocados nos HM ou iam directamente para os Hospitais.

Quanto aos Médicos idem aspas. Os Especialistas deviam ser recrutados nos Hospitais Militares pois lá existiam médicos de carreira militar com altos postos.

Isto é o que eu posso dizer sobre o serviço de saúde.
Armandino Alves


(iii) 4 de Setembro de 2009:

Assunto – Serviço de Saúde Militar (SSM)

Caro Luís Graça

Ainda sobre hospitais na Guiné.

Todos sabemos que tirando o HM 241 não havia nada em condições em qualquer cidade guineense. Mas podia haver, se os Comandos de Batalhão quisessem e Médicos Especializados quisessem.

Mas ninguém queria ir para o mato. Como deve ser do teu conhecimento, havia vários aquartelamentos que possuíam um veículo que era atrelado a uma viatura e se chamava Atrelado Sanitário. Fazia parte desse atrelado uma tenda enorme que, depois de armada, era um hospital de campanha. Nos seus vários cacifos tinha todo o material para intervenções cirúrgicas, medicamentos, incluindo morfina em grande quantidade, além de tudo o necessário para pelo menos se tentar salvar uma vida. Mas faltava o melhor : Quem trabalhar com esse material.

Como sabes os médicos recrutados para Batalhões ou Companhias eram de Clínica Geral e acabadinhos de se formarem. De bisturis, pinças e quejandos só o que viram no Hospital. Se formos pelos Furriéis enfermeiros, o panorama era o mesmo, pois também eram pessoal que tinha acabado o curso e se calhar nem o nome de algumas peças conheciam. E isso eu posso atestar, pois em Fá Mandinga tínhamos um atrelado desses e, quando o recebemos da Companhia que fomos substituir, tinha lá uma relação em A4 com o o nome das peças e a quantidade. O Furriel Enfermeiro abatia as peças e o Cabo subrepticiamente mudava-as para outro cacifo e aí já tinham nome pois entretanto tinham sido roubadas.

Quanto a nós, Cabos Enfermeiros, só servíanos para dar chatices pois era necessário de mês a mês limpar o pó ou a humidade para não ganharem ferrugem.

Ora o que eu queria dizer era que, se nas sedes de Batalhão em vez de um Médico de Clínica Geral, houvesse um Médico Cirurgião podiam-se salvar muitas vidas ou pelo menos estabilizar a vítima até chegar ao Hospital. Pelo menos aliviava-se o Hospital Central para os feridos graves… Mas lá, como cá, quem é o especialista que quer ir para Trás os Montes, Beira Alta ou Alentejo ? Se for Lisboa Porto ou Coimbra tudo bem.

Também aqui estava em causa a remuneração. Um médico especialista nunca tinha patente abaixo de Capitão e um Cirurgião talvez Major ou Tenente Coronel.

Quando eu fui para a tropa, se em vez de recrutado fosse cooptado para o SSM, ia com o posto e Cabo e com o vencimento dos CTT pois já era funcionário dos quadros e descontava para a CGA.

Os meus cordiais cumprimentos.
Armandino Alves

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Notas de L.G.:

(*) Vd. programa científico do recente XIV Encontro de Saúde Militar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Lisboa, Instituto de Estudos Superiores Militares, 6-8 de Abril de 2009


(**) Vd. os poestes anteriores da série Os Nossos Médicos:

15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)

2 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)

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