Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VIII)
Contuboel, 12 de Janeiro de 1966
Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, sofreu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem partido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ouviram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos, depois de os guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC. Fiquei encarregado de transportar aquela carne humana para Fajonquito, sede de uma companhia também pertencente ao nosso batalhão.
Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966
Enquanto o capelão procedia às exéquias fúnebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, revoltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E peguei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:
O VISIONÁRIO
Rasguem-se as cortinas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Calvário
Pregado num madeiro, ensanguentado...
Era Sua Palavra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravilhado
Que O elegeu seu revolucionário...
Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...
Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...
Bissau, 17 de Janeiro de 1966
Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da minha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, antes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bissau, que só tem grandeza no nome.
Contuboel, 19 de Janeiro de 1966
Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiano-nos a petromax. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de passos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de entrada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha. Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa madeira africana. Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma cabana.
Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966
A Otília está grávida, pelo menos tem todos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo verdade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgovernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!
Contuboel, 16 de Março de 1966
Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Caçadores. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo. A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.
Contuboel, 7 de Abril de 1966
Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Administrativo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Ormonde lhe receitou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.
Contuboel, 23 de Abril de 1966
Faz hoje um ano que desembarcámos em Bissau. Não me esqueci de descarregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricentésima, sexagésima sexta, se me não engano. Estamos já a dobrar o cabo tormentório. A partir de agora, começa o tempo a descer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembradas.
Sonaco, 30 de Julho de 1966
O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha condução no jipe que pertence ao destacamento.
Sonaco, 9 de Agosto de 1966
A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho melhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta. O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fazem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acordado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e disparei, uma, duas vezes. Matei um gato e os outros desapegaram-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a razão para o fazer. Virou-se para o outro lado e principiou logo a dormir.
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Notas de CV:
Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67
Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (OUT-DEZ 1965)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
CAMARADAS,
O TRABALHO DE QUALIDADE DO ZÉ MARTINS,PERMITE-NOS ACEDER À QUALIDADE DA ESCRITA DO CRISTOVÃO DE AGUIAR,PELO QUE MUITO AGRADEÇO AO PRIMEIRO A POSSIBILIDADE QUE ME DEU DE LER ALGO DO SEGUNDO.
BEM HAJAS.
UM ABRAÇO
MANUEL MAIA
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