Mais um episódio de Gavetas da Memória de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.
O cabo maqueiro
Naquele dia a manhã corria monótona e sempre igual às de tantos outros dias. Apenas o cozinheiro e o ajudante andavam de um lado para o outro atarefados com a preparação do almoço. O aquartelamento parecia deserto. As duas viaturas, o jeep e o velho Unimog, jaziam adormecidas arrumadas a um canto do telheiro de chapas de zinco. Reinava um silêncio pesado como a chapa de ouro do sol que tudo cobria.
Ainda era cedo para ir buscar água à bolanha e os soldados escondiam-se por aqui e por ali, onde houvesse uma sombra, a jogar às cartas, a dormitar ou a deambular pela aldeia, entrando nalguma casa comercial onde sempre apareciam novidades ou alguma bajuda jeitosa e sorridente para meter conversa de meia pataca.
O malandro do Furriel Coutinho também já se tinha desenfiado a pretexto de ir verificar a cerca de arame farpado lá para os lados do caminho que ia dar à pista de aviação e ninguém mais soube dele.
Dos outros dois furriéis, um estava de cama com paludismo e o restante fazia-lhe uma carinhosa (?) companhia. (Sempre suspeitámos que aquela amizade era talvez mais do que apenas isso. Pelo menos da fama não se livravam, embora o assunto nem fosse assim muito escandaloso e curiosamente bem tolerado naquele aglomerado de homens isolados do resto do mundo).
De modo que, como acontecia quase sempre, sem ter nada que fazer, nem nada com que me entreter, fui até a enfermaria ver o que é que o cabo maqueiro tinha por lá de novo.
O nosso cabo maqueiro, que aqui fazia as vezes de enfermeiro, era um rapaz muito metódico, alegre e falador. A sua presença era sempre motivo de divertimento para os colegas e de um fascínio estranho para os nativos que a ele recorriam para a possível cura das mais diversas maleitas. A todos atendia prontamente com a mesma coragem e tenacidade, quer se tratasse de curar uma dor de cabeça, como cozer um braço rasgado pela poderosa dentada da mandíbula de um burro enraivecido.
A enfermaria, pomposamente assim designada não passava de uma pequena divisão nas traseiras do refeitório dos soldados, onde mal cabia uma mesa, duas cadeiras e uma cama de ferro a servir de marquesa para os ocasionais pacientes que tanto podiam ser os militares do destacamento como os inúmeros civis que todas as manhãs, mulheres sobretudo, faziam fila com os filhos ao colo ou a reboque pela mão, na esperança de serem curados pelo doutor da tropa.
Lembro-me que uma vez, quando na companhia do Chefe de Posto de Pirada, o senhor Barbosa, um simpático velhote com tantos anos de África que mais parecia africano, fazíamos uma ronda pelas tabancas ao sul de Pirada, surgiram umas mulheres que, a chorar, lhe pediam que fosse acudir a um pobre velho que estava prestes a morrer pois já nem se mexia.
O nosso cabo lá pegou no saco dos medicamentos que trazia sempre consigo e resignado, mas sempre galhofando, dirigiu-se com as mulheres para o meio de uma das palhotas mais afastadas, enquanto eu e o Miguel, o condutor do jeep, ficávamos rodeados pela população que se ia aglomerando diante do nosso grupo composto também pelo imponente régulo da aldeia e pelo chefe de Posto, o velho e pacífico Barbosa.
Entretanto tentávamos perceber e deslindar a teia de peripécias e complicações inevitáveis sempre que o chefe de Posto queria proceder a mais um recenseamento dos jovens nativos desta região, pois como sempre, quase ninguém sabia a verdadeira idade que tinha. Regulam-se pelas fases da Lua, pelas colheitas e outros marcos que balizavam as suas vidas e não pelo nosso calendário, claro está. O velho Barbosa pacientemente, com a cabeça apoiada numa das mãos lá ia paulatinamente preenchendo os extensos mapas que a Administração lhe mandava e, que na verdade, só ele entendia.
Mal tínhamos chegado à tabanca, logo tinham aparecido cadeiras e bancos para todos, bem como uma tosca mesa que serviria de secretária. A miudagem, curiosa e irrequieta, espreitava morrendo de curiosidade por nos tocar, fugindo espavoridos quando esboçávamos a mais pequena intenção de os agarrar.
Os nitidamente mais velhos, adolescentes quase adultos, comprimiam-se receosos, num dos cantos do largo principal da aldeia, pois bem sabiam que a nossa presença só lhes poderia dizer respeito. A Administração todos os anos vinha arrebanhar os jovens que estivessem mais ou menos na idade do serviço militar e isso para eles era uma verdadeira tragédia a que no entanto se submetiam resignadamente. O branco é que mandava e o preto tinha apenas que obedecer.
Mas voltemos ao nosso cabo maqueiro, que por sinal tinha o nome de Abel Preto. O que ocasionava situações caricatas quando chamávamos por ele, usando o último nome e ele se encontrava, como de costume, na sua função, rodeados por nativos que, inocentemente, não se apercebiam que estávamos apenas a gozar com a cara deles.
Eis senão quando, surge o nosso cabo maqueiro rodeado por uma pequena multidão de mulheres velhas e novas que o traziam quase ao colo com demonstrações de grande regozijo e veneração, dançando e cantando, saudando-o efusivamente como a um milagroso homem santo. Mais atrás vinha uma jovem amparando um velhote sorridente que muito desembaraçadamente gesticulava e falava sem cessar.
O que tinha acontecido?
Muito simplesmente isto: perante um suposto enigma médico, para ele e para os seus escassíssimos conhecimentos de medicina, o nosso cabo maqueiro, optou por usar todos os medicamentos que tinha que nem eram assim tantos, resumiam-se a umas aspirinas e pomadas para alguma dor ou entorse. Podiam não ser totalmente eficazes mas mal também não fariam. Depois de despir o velhote aplicou-lhe uma valente esfrega de pomada analgésica pelas costas de cima a baixo, deixando o doente mais bem barrado que um frango pronto a entrar no forno. A seguir aplicou-lhe duas aspirinas pela goela abaixo com uma pouca de água. E, ou porque o remédio era mesmo bom, ou por que o paciente nunca tinha tido contacto com as medicinas dos brancos e estava portanto cem por cento receptivo a essas panaceias, o que de facto sucedeu é que ao fim de poucos minutos começava a dar sinais de já se poder mexer e em pouco menos de meia hora levantou-se são como um pêro, beijando as mãos do seu benfeitor, para grande espanto dele e, também de todos os assistentes, que logo ali o consideraram um verdadeiro homem santo.
A notícia espalhou-se num abrir e fechar de olhos e de todos os lados acorria gente para testemunhar a maravilha e querer também beneficiar dos milagrosos dons curativos daquele doutor que tinha vindo com a tropa. E todos traziam algo para lhe oferecer, ovos, laranjas, mandioca, nozes de cola e até galinhas vivas, pois tamanha benesse teria de ser recompensada.
Naquele fim de tarde o bom do nosso maqueiro quase que viu esgotar-se o stock de medicamentos que tinha improvisado quando lhe disse para vir comigo naquele passeio de acção psicológica para cairmos no agrado das populações.
Nos restantes dias viu-se aflito para poder contentar toda a clientela que não o largava em qualquer tabanca onde aparecêssemos.
Ganhou uma reputação tal que, creio ter posto em perigo a continuidade dos curandeiros de aldeia que, não acharam graça nenhuma a tais acontecimentos.
E nós, os que assistíamos a mais uma das prodigiosas façanhas do nosso bom cabo maqueiro apenas tivemos que paulatinamente ir dando vazão aquelas provisões que surgiam de todos os lados e que já não cabiam no jeep da Administração.
Durante vários dias os nossos pequenos-almoços foram ovos cozidos e laranjas! E para o almoço ou jantar, frango de churrasco!
Planta de Pirada
Pirada > Primeira cozinha
O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil
Recenseamento civil no regulado de Propana. O Régulo Serifo Embaló, o Chefe de Posto de Pirada, senhor Barbosa e eu, Alferes Geraldes, como convidado
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4843: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (3): Os Cipaios
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Amigo Carlos Geraldes
No Exército Português nunca houve Cabos Maqueiros a não ser que por serviços valorosos o Comandante o tivesse proposto para Cabo.
No Exército era assim:
Enfermeiro - Sargento e Furriel
Auxiliar de Enfermeiro - 1º Cabo
No Serviço de Saúde todos os praças que faziam o Curso de Enfermagem
tinham que atingir uma certa pontuação para promoção a Cabo. Caso não atingida essa pontuação
ficavam no SS como maqueiros (soldado maqueiro )Não quer isto dizer que esse maqueiro não soubesse o que estava a fazer, mas que devido a factores vários chumbou no exame não atingindo a pontuação requerida.
Portanto leva-me a pensar que o visado era como eu 1º Cabo Auxiliar Enfermeiro e não Maqueiro
Armandino Alves
Caro Carlos Geraldes
Aqui está uma narrativa simples que bem descreve algumas das acções rotineiras que foram desempenhadas, com mais ou menos capacidade e eficiência, durante a nossa permanência naquelas terras.
A vivência nem sempre foi assim, como se apresenta, calma, sem sobressaltos, mas esses trabalhos, essas tarefas, esses êxitos, no contacto com as populações e na resolução (aparente ou não) de alguns dos seus problemas, foram de facto um pouco recorrentes.
Um abraço
Hélder S.
Independentemente de ser ou não ser cabo maqueiro, é uma belíssima estória. Henrique Matos
Simples e muito bonita.
Gostei muito.
Parabéns.
Filomena
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