Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VII)
Contuboel, 12 de Outubro de 1965
O meu Grupo de Combate vai dentro em breve para o destacamento de Dunane, quartel de campanha rodeado de arame farpado, sem qualquer tabanca (a que aí existia foi incendiada pelas nossas tropas, e a população que não morreu, fugiu para outros chãos) - fica então Dunane entre Piche e Canquelifá, onde existem duas companhias, uma em cada uma dessas localidades, que por aquelas bandas a guerra é mesmo a doer. Vamos então render um outro Grupo de Combate, o do João Cortesão Casimiro, da nossa companhia, que, por estes dias mais próximos, conclui um mês de estada naquele que é considerado um dos piores destacamentos daquela zona, sem as mínimas condições para se viver como gente: água bichenta, instalações em abrigos feitos de bidões de gasolina cheios de pedregulhos, o tecto coberto de troncos e por um oleado, e tudo isto rodeado de mata e de silêncio e guerrilheiros. Esta zona militar abrange, além das unidades já mencionadas, Nova Lamego, Bruntuma e Madina do Boé, onde, aí, nem se atrevem as nossas tropas a meter o nariz fora dos abrigos de cimento armado, recebendo os víveres e o correio através de helicóptero, que lança os sacos das alturas e desapega-se logo para lugar mais seguro... Em Dunane não há população, só meia dúzia de milícias indígenas. Com cerca de trinta homens, ao fim de pouco tempo não há solidão que resista. Só é preciso é que não falte vinho nem correio, porque assim o soldado acomoda-se com mais facilidade...
Contuboel, 15 de Outubro de 1965
Recebi um rádio do comandante do batalhão acantonado em Bafatá, ao qual pertencemos, anunciando a rendição do pelotão de Dunane para o dia 18. Temos de sair às primeiras horas da manhã. E vinham tambémvárias instruções sobre o material a levar, não esquecendo os sacos de areia nas cabinas dos Unimogs por causa de surpresas desagradáveis, que vamos atravessar zonas perigosas e algumas quase terra-de-ninguém, além das rações de combate para a viagem, que deve demorar as suas quatro horas, com paragem em Nova Lamego e Piche... Reuni os homens do meu pelotão e transmiti-lhes todas as ordens que achei convenientes quando à nossa futura partida (só não lhes revelei nem o dia nem a hora), ordens que são para se cumprir à risca, sem a mínima discussão. E avisei-os que comecem, desde já, a preparar os seus sacos de campanha, porque nunca se sabia quando largávamos para Dunane, a fim de render os nossos camaradas.
Dunane, 19 de Outubro de 1965
Após uma viagem atribulada e cansativa, chegámos por fim ao nosso destino. E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...
Dunane, 21 de Outubro de 1965
CRISTAIS DE DOR
Cristais de dor na noite tenebrosa,
Ferindo o silêncio duro e magnético;
Nenhum gesto de luz, leve, carinhosa,
Calando na noite o grito profético.
Em bandos descem pássaros estranhos,
Trazem recados no bico agoirento;
Muito ao longe nos currais os rebanhos
Tremem e choram lágrimas de vento.
Nas palhotas sem luz sonhos vencidos,
Crianças sem estrelas nos olhos caídos,
E pão de tristeza em bocas de fome.
Silêncio, dor, tristeza, solidão,
Tudo o que tem quem vive nesta prisão,
E um número no lugar do próprio nome.
Dunane, 3 de Novembro de 1965
MORTOS-VIVOS
Somos os mortos-vivos duma geração
Trancada nos aposentos do medo.
Se ousamos outra voz no coro duma canção,
Dão-nos nova alma e este degredo.
Se puderes olha em frente de olhos repousados,
Arreda o medo da mente ferida.
E teus dias serão plenos, serenados
E a vida será um salmo de vida...
Dunane, 6 de Novembro de 1965
ANSIEDADE
Conto os dias pelos dedos
Um a um sem falhar.
Triste de quem tem segredos
E não tem a quem contar...
Parti triste e triste estou
Longe de ti nesta terra,
Onde o Sol se apagou
Sob negras nuvens de guerra.
Se a dor que no peito sinto
Tivesse boca e contasse
Tudo o que peno (não minto)
Talvez ninguém acreditasse...
Dunane, 10 de Novembro de 1965
PRIMEIRA CANÇÃO DO MAR
A minha voz vem do mar,
Meus cabelos de espuma são,
É no cais que vou cantar
As penas do coração.
As coitas do coração
Ai, coimas de amargura.
Diz-me lá tu, ó canção,
Que é da velha ternura
Do mar da minha infância
E porquê vida tão dura,
Este viver sempre em ânsia?
Tatuaram-me no braço
Uma âncora de esperança...
Ai, e no peito um cansaço
Já do tempo de criança...
O mar embalou meu berço
- Velha canção de embalar
E assim rimei meu verso
Com a triste voz do mar.
O mar indicou-me o mundo
Nas rotas das caravelas...
Foram-se os sonhos ao fundo,
Rotas ficaram as velas.
Dunane, 15 de Novembro de 1965
SEGUNDA CANÇÃO DO MAR
Nas ondas do mar salgado
Escrevi o meu destino
Assim tracei o meu fado
Desde o tempo de menino.
Fez-se o mar meu amigo
Desde os tempos de outra idade:
- Quando não está comigo,
Chora triste de saudade...
Tantas vezes boiei morto
Na crista das ondas bravas,
Mesmo à vista dum porto
Onde, amor, me esperavas...
Dunane, 18 de Novembro de 1965
UM BARCO NA NOITE
Na noite subversiva havia um barco
Ancorado no cais.
O céu era o reflexo de um charco
E de outras sombras mais
Súbito acordou uma luz
Nos olhos adormecidos...
Uma candeia que conduz
A vitória aos vencidos.
Todo o Universo se encheu de asas
E de itinerários...
Trancámos as portas de nossas casas
Nós, os revolucionários...
Tudo por fim rolou na lembrança
Na noite subversiva
O barco ancorado partia para França
E nós ali à deriva...
Só nos ficou o sonho e a esperança,
E o barco ancorado partiu para França...
Dunane, 23 de Novembro de 1965
- Estou com o meu pelotão há mais de um mês neste destacamento de Piche. Antiga tabanca balanta, destruída pelas nossas tropas há já algum tempo, é agora um aquartelamento destinado a um pelotão das nossas tropas e a uma secção de milícias indígenas. Estamos em solidão absoluta e com falta de víveres. À noite, entretém-se o pessoal com o espectáculo deslumbrante dos incêndios das tabancas atacadas pelos guerrilheiros e cujas chamas se vêem ao longe lambendo o horizonte circular que deste cabeço onde se situa o aquartelamento se abarca. Nem dentro do perímetro do arame farpado se pode andar à vontade.
Contuboel, 1 de Dezembro de 1965
- Chegou o novo capitão para comandar a companhia. O primeiro, o que foi ferido na tal operação simulada, com o intuito de treinar os homens para a dureza da guerra, nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. Informou-me há dias o nosso primeiro Mota que ele tinha sido transferido para uma repartição do Quartel General, em Bissau, após ter estado em prolongada convalescença na metrópole. O guarda-costas, esse, foi para a Alemanha para lhe porem uma prótese nos cotos das pernas. Nesta vida da tropa são tão efémeros os sentimentos.
Contuboel, 25 de Dezembro de 1965
OUTRO TEMPO
Tempo loiro, maduro,
Nas mãos o Universo.
Sentia-me seguro
Como a rima num verso...
Depois veio o frio
Das noites de Inverno.
E pensava (agora sorrio)
Nas penas do inferno.
- Já rezaste, rica cara?
Perguntava uma velha tia.
Dizia que já terminara
E tinha a alma em dia...
__________
Notas de CV:
Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67
Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27MAI65 a 29SET65)
Contuboel, 12 de Outubro de 1965
O meu Grupo de Combate vai dentro em breve para o destacamento de Dunane, quartel de campanha rodeado de arame farpado, sem qualquer tabanca (a que aí existia foi incendiada pelas nossas tropas, e a população que não morreu, fugiu para outros chãos) - fica então Dunane entre Piche e Canquelifá, onde existem duas companhias, uma em cada uma dessas localidades, que por aquelas bandas a guerra é mesmo a doer. Vamos então render um outro Grupo de Combate, o do João Cortesão Casimiro, da nossa companhia, que, por estes dias mais próximos, conclui um mês de estada naquele que é considerado um dos piores destacamentos daquela zona, sem as mínimas condições para se viver como gente: água bichenta, instalações em abrigos feitos de bidões de gasolina cheios de pedregulhos, o tecto coberto de troncos e por um oleado, e tudo isto rodeado de mata e de silêncio e guerrilheiros. Esta zona militar abrange, além das unidades já mencionadas, Nova Lamego, Bruntuma e Madina do Boé, onde, aí, nem se atrevem as nossas tropas a meter o nariz fora dos abrigos de cimento armado, recebendo os víveres e o correio através de helicóptero, que lança os sacos das alturas e desapega-se logo para lugar mais seguro... Em Dunane não há população, só meia dúzia de milícias indígenas. Com cerca de trinta homens, ao fim de pouco tempo não há solidão que resista. Só é preciso é que não falte vinho nem correio, porque assim o soldado acomoda-se com mais facilidade...
Contuboel, 15 de Outubro de 1965
Recebi um rádio do comandante do batalhão acantonado em Bafatá, ao qual pertencemos, anunciando a rendição do pelotão de Dunane para o dia 18. Temos de sair às primeiras horas da manhã. E vinham tambémvárias instruções sobre o material a levar, não esquecendo os sacos de areia nas cabinas dos Unimogs por causa de surpresas desagradáveis, que vamos atravessar zonas perigosas e algumas quase terra-de-ninguém, além das rações de combate para a viagem, que deve demorar as suas quatro horas, com paragem em Nova Lamego e Piche... Reuni os homens do meu pelotão e transmiti-lhes todas as ordens que achei convenientes quando à nossa futura partida (só não lhes revelei nem o dia nem a hora), ordens que são para se cumprir à risca, sem a mínima discussão. E avisei-os que comecem, desde já, a preparar os seus sacos de campanha, porque nunca se sabia quando largávamos para Dunane, a fim de render os nossos camaradas.
Dunane, 19 de Outubro de 1965
Após uma viagem atribulada e cansativa, chegámos por fim ao nosso destino. E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...
Dunane, 21 de Outubro de 1965
CRISTAIS DE DOR
Cristais de dor na noite tenebrosa,
Ferindo o silêncio duro e magnético;
Nenhum gesto de luz, leve, carinhosa,
Calando na noite o grito profético.
Em bandos descem pássaros estranhos,
Trazem recados no bico agoirento;
Muito ao longe nos currais os rebanhos
Tremem e choram lágrimas de vento.
Nas palhotas sem luz sonhos vencidos,
Crianças sem estrelas nos olhos caídos,
E pão de tristeza em bocas de fome.
Silêncio, dor, tristeza, solidão,
Tudo o que tem quem vive nesta prisão,
E um número no lugar do próprio nome.
Dunane, 3 de Novembro de 1965
MORTOS-VIVOS
Somos os mortos-vivos duma geração
Trancada nos aposentos do medo.
Se ousamos outra voz no coro duma canção,
Dão-nos nova alma e este degredo.
Se puderes olha em frente de olhos repousados,
Arreda o medo da mente ferida.
E teus dias serão plenos, serenados
E a vida será um salmo de vida...
Dunane, 6 de Novembro de 1965
ANSIEDADE
Conto os dias pelos dedos
Um a um sem falhar.
Triste de quem tem segredos
E não tem a quem contar...
Parti triste e triste estou
Longe de ti nesta terra,
Onde o Sol se apagou
Sob negras nuvens de guerra.
Se a dor que no peito sinto
Tivesse boca e contasse
Tudo o que peno (não minto)
Talvez ninguém acreditasse...
Dunane, 10 de Novembro de 1965
PRIMEIRA CANÇÃO DO MAR
A minha voz vem do mar,
Meus cabelos de espuma são,
É no cais que vou cantar
As penas do coração.
As coitas do coração
Ai, coimas de amargura.
Diz-me lá tu, ó canção,
Que é da velha ternura
Do mar da minha infância
E porquê vida tão dura,
Este viver sempre em ânsia?
Tatuaram-me no braço
Uma âncora de esperança...
Ai, e no peito um cansaço
Já do tempo de criança...
O mar embalou meu berço
- Velha canção de embalar
E assim rimei meu verso
Com a triste voz do mar.
O mar indicou-me o mundo
Nas rotas das caravelas...
Foram-se os sonhos ao fundo,
Rotas ficaram as velas.
Dunane, 15 de Novembro de 1965
SEGUNDA CANÇÃO DO MAR
Nas ondas do mar salgado
Escrevi o meu destino
Assim tracei o meu fado
Desde o tempo de menino.
Fez-se o mar meu amigo
Desde os tempos de outra idade:
- Quando não está comigo,
Chora triste de saudade...
Tantas vezes boiei morto
Na crista das ondas bravas,
Mesmo à vista dum porto
Onde, amor, me esperavas...
Dunane, 18 de Novembro de 1965
UM BARCO NA NOITE
Na noite subversiva havia um barco
Ancorado no cais.
O céu era o reflexo de um charco
E de outras sombras mais
Súbito acordou uma luz
Nos olhos adormecidos...
Uma candeia que conduz
A vitória aos vencidos.
Todo o Universo se encheu de asas
E de itinerários...
Trancámos as portas de nossas casas
Nós, os revolucionários...
Tudo por fim rolou na lembrança
Na noite subversiva
O barco ancorado partia para França
E nós ali à deriva...
Só nos ficou o sonho e a esperança,
E o barco ancorado partiu para França...
Dunane, 23 de Novembro de 1965
- Estou com o meu pelotão há mais de um mês neste destacamento de Piche. Antiga tabanca balanta, destruída pelas nossas tropas há já algum tempo, é agora um aquartelamento destinado a um pelotão das nossas tropas e a uma secção de milícias indígenas. Estamos em solidão absoluta e com falta de víveres. À noite, entretém-se o pessoal com o espectáculo deslumbrante dos incêndios das tabancas atacadas pelos guerrilheiros e cujas chamas se vêem ao longe lambendo o horizonte circular que deste cabeço onde se situa o aquartelamento se abarca. Nem dentro do perímetro do arame farpado se pode andar à vontade.
Contuboel, 1 de Dezembro de 1965
- Chegou o novo capitão para comandar a companhia. O primeiro, o que foi ferido na tal operação simulada, com o intuito de treinar os homens para a dureza da guerra, nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. Informou-me há dias o nosso primeiro Mota que ele tinha sido transferido para uma repartição do Quartel General, em Bissau, após ter estado em prolongada convalescença na metrópole. O guarda-costas, esse, foi para a Alemanha para lhe porem uma prótese nos cotos das pernas. Nesta vida da tropa são tão efémeros os sentimentos.
Contuboel, 25 de Dezembro de 1965
OUTRO TEMPO
Tempo loiro, maduro,
Nas mãos o Universo.
Sentia-me seguro
Como a rima num verso...
Depois veio o frio
Das noites de Inverno.
E pensava (agora sorrio)
Nas penas do inferno.
- Já rezaste, rica cara?
Perguntava uma velha tia.
Dizia que já terminara
E tinha a alma em dia...
__________
Notas de CV:
Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67
Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27MAI65 a 29SET65)
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