Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VI)
Contuboel, 27 de Maio de 1965
Demorámos dois dias e duas noites para atravessar o rio Geba com todo o nosso material de campanha. Não tivemos outro remédio senão comer rações de combate e beber água meio choca e bichenta. Dormimos, isto é, atravessámos as duas longas noites com muita mosquitada a atazanar os miolos e a pele. E não houve repelente que a afastasse. Chegámos ao que vai ser a sede da nossa companhia anteontem ao princípio da noite. Estavam aqui apenas nove homens e um furriel miliciano, que comandava a respectiva secção de armas pesadas. Com a guerrilha a apertar cada vez mais, os chefes desta guerra estão a guarnecer melhor certas posições-chaves. Fui cumprimentar as forças vivas da terra: o chefe de posto, um branco, ex-furriel e ex-seminarista, e dois comerciantes − um português, oriundo do concelho de Góis, ainda novo, e respectiva consorte; e um libanês, também casado, cujo estabelecimento fica em frente da messe. Ambos os traficantes não se podem ver um ao outro, como mandam as regras da boa vizinhança. Não lhes dei grandes confianças, sobretudo ao chefe de posto, que, para se mostrar valente diante de mim, esbofeteou um cipaio que se não levantou à minha passagem na varanda do posto. Chamei-lhe a atenção para o facto e ele pareceu-me que não ficou nada satisfeito, pelo menos senti-o pelo olhar, que agarrei pelo cabo e devolvi ao seu dono.
Contuboel, 1 de Junho de 1965
PROMESSA
Trago à cabeça
Um cesto de rimas
Que é uma promessa
De novas vindimas...
Meu Avô era tanoeiro:
Fazia pipas e selhas,
Tonéis, dornas e barris...
Meu Pai é serralheiro:
Forja foices e relhas,
Machados e picaretas...
Somente eu pouco fiz:
- Apenas versos e tretas!
Camamudo, 12 de Junho de 1965
Vim a este destacamento de Bafatá encontrar-me com o meu amigo Viriato Madeira, que está prestes a terminar a sua comissão. Esteve anteriormente, com a sua companhia, na Ilha do Como, durante cerca de um ano, rodeado de arame farpado e sem poder sair do aquartelamento de campanha, implantado no chamado reino do Nino, onde ninguém se atrevia a entrar ou a sair. Vieram de lá todos bem marcados. Foi tal a nossa alegria, que chorámos como duas crianças perdidas que se reencontram e abraçam uma à outra. E, para festejar o nosso encontro, preparou-me uma bebida, que ele chama bomba, espécie de cocktail revolucionário, que me pôs a dormir ou em coma alcoólico quase instantaneamente. Quando despertei, já era tarde para seguir para Contuboel. Mandei um rádio a prevenir que passava a noite em Bafatá, na sede do batalhão.
Contuboel, 22 de Junho de 1965
Acabei de riscar a sexagésima cruzinha no calendário. É uma espécie de desobriga que pratico todos os dias, à noite, antes de me deitar. Ainda faltam tantas centenas, meu Deus! Será que chego ao fim? Comprei doze livros de Aquilino Ribeiro num estabelecimento de Bafatá. Cada um custou-me quarenta e cinco escudos. Tenho muito que ler, se para tal tiver cabeça.
Contuboel, 29 de Junho de 1965
Fui com o meu pelotão reforçar a companhia de Fajonquito numa operação de dois dias ao mato do Caresse. Chegámos ontem. Ao descalçar as botas de lona e tirar as peúgas grossas, encardidas, vieram-me pedaços de pele a elas agarrada. Anteontem, a um domingo logo de manhã, ainda antes da missa na minha freguesia, na Ilha, onde assisti, durante a emboscada, à entrada e à saída para lhe receber o sorriso e ficar comungado para o resto do dia, tive então o meu baptismo de fogo. Foi cerca de uma hora e meia (o tempo da missa arrastada do senhor padre Joaquim) que estive debaixo de metralha constante. Não vi nenhum inimigo, mas senti-lhe a presença. Fumei quase um maço de cigarros Sagres e bebi toda a água do meu cantil e a do meu guarda-costas. Os velhinhos da companhia a que nos juntámos, a quatro meses apenas do fim da comissão, estão tão tarimbados nisto, que nem fizeram grande caso do tiroteio, nem sequer responderam. A dada altura, piraram-se no encalço do capitão, para uma clareira onde já não havia perigo de maior. E fiquei mais o meu pelotão ainda durante algum tempo na mira dos guerrilheiros, mas não houve nem mortos nem feridos.
Contuboel, 25 de Julho de 1965
O TEU ANIVERSÁRIO
Neste dia dos teus vinte e um anos,
Dependurei uma violeta
No meu lembrar-te.
Queria oferecer-te açafates
De ternura
E beijos buliçosos
Como estes pássaros
Nos fios de alta tensão...
Lembrei-te
Como quem se demora
No beber uma memória antiga
Em fotografias desmaiadas...
O meu recordar-te
Foi um cortejo de martírio
Ao longo de canadas íntimas
Do saber-te cada vez mais longe,
Fictícia,
E no entanto perto,
Tão aconchegada ao meu peito,
Que deixaste de ser fora de mim...
Bissau, 23 de Agosto de 1965
Parto amanhã para Lisboa em gozo de férias. Vou dar um passo importante na vida e se calhar não estou para ele preparado nem amadurecido. Que se lixe. Preciso urgentemente de um descendente que me prolongue, no caso de vir a morrer com um tiro na cabeça um dia destes nesta desalmada guerra de nervos e do resto. O livrinho que publiquei não vai dar boa conta de mim. Precipitei-me. Já tinha plantado uma árvore. Tem apanhado bordoada da crítica, que até arrepia. Vide Pinheiro Torres, no Diário de Lisboa, e Jaime Gama, no Açores. Quanto ao assunto que me leva de viagem, devia esperar mais algum tempo para depois ler, com outra reflexão e outro descanso, Um Casamento do Pós-guerra, de Carlo Cassola.
Pico da Pedra, 19 de Setembro de 1965
Domingo de procissão de Nossa Senhora dos Prazeres. Durante o almoço familiar, estalejaram alguns foguetes, anunciando o levantar a Deus da missa da festa. Quando dei por mim, estava deitado no chão, debaixo da mesa. O que são os reflexos condicionados! Na guerra, temos de actuar o mais rápido possível: mal se ouve um tiro ou qualquer detonação, tem uma pessoa de se atirar logo para o chão, caso contrário.
Pico da Pedra, 23 de Setembro de 1965
SONS DE DESPEDIDA
No magoado cantar desta chuva,
Escuto tristes sons de despedida:
- Amargurados prantos de viúva
Suplicando que o amante torne à vida.
Partir só de braços livres, sem destino,
Como esta chuva caindo sem fim:
- Ter um barco e um sonho de menino,
Que o mar já o trago dentro de mim.
Partir é soltar a tranca da porta
Desta alma que vive quase morta
Na jaula duma luta que se não cansa...
Se o mar que me deixaram em herança,
Me desse uma resposta, uma esperança,
Eu fingiria um tiro na lembrança...
Lisboa, 25 de Setembro de 1965
Acabaram-se as tréguas. Vou de novo de regresso a Bissau, sem ânimo de qualidade nenhuma. Quando chegar ao mato, vão decerto alguns estranhar que tenha voltado. O sargento Cabaço dizia, em segredo, antes de eu vir a férias, que o alferes Aguiar nunca mais poria os pés no teatro de guerra, com certeza iria desertar. E teimava que o sabia de fonte limpa e segura.
Contuboel, 29 de Setembro de 1965
EU E A NOITE
Abro as mãos
E a noite poisa,
A noite pesa-me.
Trago a noite
Vestida
Muito justa
No corpo todo.
Se fecho as mãos,
Não esmago
A noite,
Porque a noite
É tudo
E eu sou
A própria noite.
A noite não se anula
No fogo das estrelas...
Nem a guerra se cala
Na boca das armas.
Nas mãos estendidas,
O peso da noite
E um vendaval de tosse
Na casamata do peito...
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Notas de CV:
1. Destaques da responsabilidade de CV
2. Vd. último poste do "Diário de Guerra" de 11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
GOSTEI MUITO DA POESIA DO CRISTOVÃO DE AGUIAR.
MANUEL MAIA
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