quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4843: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (3): Os Cipaios



1. Terceira história tirada das "Gavetas da Memória" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66





Os cipaios

Daí em diante, sempre que surgiam problemas das mais diferentes espécies, entre os habitantes da tabanca, vinham ter com o alfero esperando por uma solução, qual decisão milagrosa que só ele poderia encontrar.

De uma vez era um jovem soldado da milícia nativa que, aflito com as pretensões do futuro sogro, que exigia um número exagerado de vacas pela mão da filha, vinha pedir socorro ao seu chefe militar, pois em desespero de causa estava até decidido a fugir com a noiva, pondo em perigo o futuro tranquilo que gostaria de vir a ter na companhia do seu amor. Enquanto o alvoroçado sogro apelava para que eu fizesse cumprir a tradição e a lei dos antepassados, o jovem argumentava que os tempos agora eram outros. Que o amor nestes novos tempos era diferente e em tudo mandava, muito acima dos interesses materialistas. Que os casamentos combinados foram sempre um tormento para a verdadeira felicidade dos jovens casais que se queriam casar por amor.

A noiva, muito envergonhada, assistia a tudo de longe, nitidamente com medo que o pai a viesse arrebanhar dos braços do seu amado, revoltada também por se sentir tratada como uma mercadoria.
Eram os sinais da modernidade que também por ali, estavam chegando, em parte devido também ao nosso aparecimento por estas terras, abalando as ancestrais tradições, rasgando horizontes até agora nunca descortinados.

E o nosso alfero, arvorado em Salomão das tabancas, tinha que os aturar com toda a calma, tentando com uma escassa sabedoria não os desapontar, ditando leis que nem ele sabia se teriam qualquer veracidade ou validade. Mas quando notava que a incredulidade e a inquietação lhes assaltavam as feições, duas ou três palavras bem-soantes num tom o mais inapelável possível, punha uma pedra sobre o assunto. O sogro ficava com a promessa mais ou menos certa que o genro lhe pagaria o melhor que pudesse pela princesa que levava para o leito e, o nosso noivo aliviado por o fardo pré-nupcial não lhe vir a ficar muito pesado, sorria mais satisfeito.

Pirada > Binta Sulé > Não será a noiva desta história, mas podia ser

Mas por vezes surgiam também questões mais complicadas, resultantes certamente de um passado vivido na incompreensão e na crueldade colonialista.

No centro da aldeia, junto das casas comerciais, construídas de pedra e cal com telhados de telha importada da metrópole, existiam também as acomodações de um posto de polícia civil, constituída por dois cipaios.
Estes foram sempre a presença odiada da autoridade civil que, agora, com a chegada da tropa originava que a autoridade exercida sobre as populações nativas se fosse esbatendo. Por isso os cipaios, de vez em quando tinham acessos de brutalidade gratuita, só para fazer lembrar que era eles a que deviam obediência.

Numa dessas ocasiões deram-se mal, pois os habitantes da aldeia, sentindo que o alfero não deixaria de lhes dar razão, correram ao aquartelamento a denunciar mais uma brutalidade cometida por eles que, pelos vistos mais de uma vez, e num acto de pura arbitrariedade e estupidez, teriam espancado um jovem.

No meio da noite, já tinha passado a hora do jantar, Iaia o jovem mais culto da aldeia, acompanhado por mais dois velhotes, chegou-se à porta do aquartelamento e pediu à sentinela para falar com o alfero.

Como eram pessoas bem conhecidas, foram logo levados à minha presença.

Com alguma emoção explicaram-me que os cipaios, indivíduos odiados por todos (até porque pertenciam a uma outra etnia, eram balantas), andavam a conspirar na sombra contra mim, tentando tudo por tudo para me desacreditar, falando mal de mim e ameaçando tudo e todos, afirmando que só a eles é que deveriam continuar obedecer como sempre o tinham feito até ali. Como que a fazer prova disso tinham ido à tabanca prender um pobre diabo e levaram-no para o posto onde lhe aplicaram umas palmatoadas valentes, por um motivo fútil qualquer que, eu na ocasião já a ferver na ânsia de fazer justiça, nem ouvi bem qual tinha sido.

Naquela altura, como era já tacitamente aceite que o nosso domínio territorial tanto a nível administrativo como a todos os outros níveis deveria ser incontestável, não seriam uns simples cipaios que o iriam beliscar. Portanto teria mesmo que tomar medidas e ao mesmo tempo aproveitar para fazer justiça pelas minhas próprias mãos, para fortalecer a minha imagem, impor a minha autoridade, dar realidade a um mito de justiça que finalmente estava chegando por aquelas bandas.

Mandei chamar o Antunes, o meu furriel mais enérgico, e com ele e alguns dos seus homens, armados até aos dentes, marchámos para o centro do povoado, rodeados por uma verdadeira multidão de nativos ansiosos por saber qual seria a minha atitude. A notícia de que algo insólito estava para acontecer espalhou-se rapidamente.

Chegados diante da casa dos cipaios, chamei por eles com altos berros bem autoritários. Lentamente os facínoras foram aparecendo um a um diante de toda aquela gente como se os tivesse arrancado da cama, ainda estremunhados.

Rapidamente e com um tom de voz o mais assustador possível, adverti-os que dali em diante não lhes seria reconhecida qualquer autoridade sobre a população civil. Ai deles se me chegasse aos ouvidos qualquer desobediência nesse sentido. Que ficasse bem claro que a partir do dia em que a tropa tinha ali chegado, só ela ditaria as leis sobre toda a aldeia. Eles passaram a não ter qualquer poder ou autoridade sobre a população.

- Agora só tropa é qui na manda! – sentenciei eu bem alto em dialecto crioulo, para que todos me pudessem entender.

No meio de uma algazarra tremenda pouco faltou para que toda aquela gente que os rodeava, não os linchasse logo, fazendo-se vingar por décadas e décadas de humilhação e crueldade gratuita.

De cabeça baixa aqueles dois membros da polícia civil, tão odiada e temida, não eram mais que duas feras acossadas e mortalmente assustadas perante um perigo que nunca suspeitaram poder vir a enfrentar algum dia. Como dois verdadeiros brutamontes nem souberam sequer responder, e mirando-me com uns olhos cheios de ódio, fecharam-se cautelosamente no tugúrio que lhes servia de abrigo.

Soube no dia seguinte que tinham abalado bem cedo. Nunca mais os tornei a ver. Só alguns meses depois é que o Comandante da Companhia me perguntou se alguma vez eu tivera tido problemas com os cipaios, por causa de uma conversa que ouvira em Bafatá.

Parece que os poderes estavam definitivamente a tombar para uma predominância clara e absoluta do poder militar sobre o poder civil, tal o grau de empenhamento a que esta guerra estava a conduzir a força militar presente na região.

Quanto a problemas domésticos do foro administrativo civil nunca me constou que tivessem havido, pelo menos durante o meu reinado. Mas o mais natural é que os nativos os tenham sabido resolver, como sempre o fizeram ao longo de tantas e tantas gerações de gente livre, sem precisarem do homem branco para nada.
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Nota de CV:

Vd. Último poste da série de 16 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4827: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (2): A jibóia

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