quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite




Guiné > Zona Leste > Bafatá > CCAÇ 557 (1963/65) > Resultado de um aula de fula, dada por um prisioneiro do PAIGC durante a noite em que o Sold Trms José Colaço, por ordem do comandante, teve de fazer o papel de carcereiro, fazendo horas para o entregar à PIDE...

Fotos: © José Colaço (2008). Direitos reservados.

1. Texto enviado pelo do José Colaço (*), com data de 3 de Dezembro:

A minha relação com um prisioneiro de guerra durante uma noite em Bafatá (**)

por José Colaço


Uma pequena estória com E mas que também podia ser integrada dentro das histórias com H.

Numa das saídas das explorações que nos eram confiadas, foi apanhado um guerrilheiro e feito prisioneiro.

Quando o pessoal chegou, já era noite. Não eram horas de entregar o prisioneiro à PIDE. Então o capitão lembra-se da brilhante ideia, como o Colaço está de serviço permanente ao posto rádio, fica a guardar o prisioneiro. Ordens são ordens e não há que contestar.

A única alteração foi alterar o local da pistola Walther, pois esta estava sempre pendurada num cabide na parede do posto rádio. Nessa noite andou no coldre mas na cintura do militar.

Era um homem mais ou menos dos seus cinquenta e picos anos. Eram cerca das 3 horas e 30 minutos, depois de termos tido uma conversa, posso dizer de amigos. Olhei para ele, de olhos nos olhos, e notei o seu estado de fraqueza. Fiz-lhe a seguinte pergunta:
- Não tens fome? - Ao que ele respondeu com um sim tímido. Então disse-lhe:
- Fica aí sossegado, está bem ?!, que eu vou arranjar comida.

Na cozinha havia uma celha com bacalhau de molho, a padaria ficava na rua quase em frente ao quartel, fui lá trouxe pão quente, bacalhau que gamei - o que vi que chegava - , no posto rádio havia sempre azeite, vinagre, alho e cebola porque era normal durante a noite o pessoal de serviço fazer aquele petisco - desculpem o nome mas aquilo que se faz à mão (punheta)... Vinho também não faltou.

A seguir, depois da refeição servida no posto rádio, voltou o diálogo e uma lição, uma tradução de fula para português. O prisioneiro ensinou-me como se conta em fula, algumas palavras que na altura me lembrou de perguntar, e que ainda guardo o original, uma folha de bloco em papel fino a que se chamava carta de avião.

Envio também em anexo o original da capa do bloco. De certeza que o camarada Mário Dias vai ver que tem manga de erros ortográficos mas foi o que consegui perceber.
Um alfa bravo.

Colaço

Nota: se os camaradas acharem que merece honras de blogue, publiquem.

_________

Notas de L.G.:

(*) José Colaço, ex-Sold de Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65:

Vd. postes de:

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

(...) José Botelho Colaço, morador em São João da Talha, foi Soldado de Transmissões na CAÇ 557 (1963/65). Embarcou para a Guiné em 27 de Novembro de 1963, chegou a Bissau a 3 de Dezembro e, em 15 de Janeiro de 1964, seguiu de batelão patra Catió. No dia 23 de Janeiro desembarcou numa LDM , com quase toda a Companhia, na mata do Cachil, Ilha do Como, no âmbito da Operação Tridente (Janeiro-Março de 1964), a maior operação realizada no TO da Guiné.

Saiu do Cachil no dia 27 de Novembro de 1964, rumo a Bissau onde a CCAÇ 557 permaneceu cerca de 3 meses. O resto da comissão foi passado em Bafatá de onde saíram em 27 de Outubro de 1965, no final da comissão. De regresso a casa, desembarcou em Lisboa a 3 de Novembro. Foi Técnico Metalúrgico de profissão. Está actualmente reformado. (...)

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)

29 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3099: Os Nossos Regressos (13): Fundeámos ao largo, com as luzes de Cascais...(José Colaço, Cachil, Bissau, Bafatá, 1963/65))

9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)

19 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3334 O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)

(**) Vd. postes anteriores desta série:

6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato

30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

3 comentários:

Luís Graça disse...

José:

Introduzes - tal como outros camaradas anteriormente (cito de cor o Mário Dias, o Santos Oliveira, o Jorge Félix, o Mário Fitas, o José Casimior Carvalho, o José Manuel Lopes e tantos outros)- uma nota de humanidade nesta estranha guerra. E ao mesmo tempo de hilariedade. Comoves-me e fazes-me rir ao mesmo: estás em Bafatá, já na fase do repouso do guerreiro, depois de passares pela duríssima experiência da Ilha do Como, estás de serviço ao posto de rádio, és um homem de transmissões, tens cara de puto imberbe, não és sequer um fero guerreiro, tens uma pistola Walther com a qual se calhar nunca deste um tiro, põem-te a guardar um 'temível' turra para o entregar, na manhã seguinte, à 'temível' PIDE,
ainda por cima o gajo é fula, pertence à etnia que está do lado dos tugas, fazes a tua boa acção de escuteiro, vais à cozinha e preparas-lhe um petisco para lhe matar o rato que ele sente no estômado (chamemos-lhe as coisas pelo seu nome: fazes-lhe uma punheta de bacalhau, com cebola, alho, azeite e viangre!), passas a noite no blá-blá com ele como se fossem dois velhos amigos e conhecidos e, no final, qual é a paga ? O gajo tenta fugir, desarmar-te, dar-teum tiro ? Nada disso... Porta-se com a dignidade de um homem grande, fula, e ensina-te pacientemente durante as longas horas da madrugada como é que se conta... até mil, EM FULA, enquanto tu, mais pacientemente ainda, alinhavas os vocábulos fulas com a respectiva tradução na tua língua...

É um espanto! É uma história com H grande! Deliciosa ! Comovente !

Eu que convivi 21 meses com os fulas nunca soube sequer contar... até 10!

Parabéns, José! Ninguém te acreditaria, se tentasses contar isto numa roda de amigos. Então o RDM ? E a disciplina militar ? E a segurança ? UM TURRA É UM TURRA, terás ouvido muitas vezes dizer em 1963, em 1964, em 1965... no Como, no Cachil, em Bissau, em Bafatá... Estávamos no princípio da guerra, ou a guerra já estava ao rubro... Não estávamos em Abril, Maio ou Junho de 1974...

São histórias como a tua, a do Santos Oliveira ou a do Mário Dias que dão sentido ou vêm
reforçar o sentido deste blogue... que é de facto de todos nós. Luís

Unknown disse...

Que comentário se há-de fazer a esta crónica ? Talvez que o humanismo não se ensina e estará acima de tudo. O JBC deu um bom exemplo. Provàvelmente fez mais com esse gesto do que muitas acções da psico. E o "turra", se a Pide o deixou vivo, talvez ele recorde para toda a vida essa madrugada e o Zé.

Anónimo disse...

Bem nem sei como agradecer tão elogiosos louvores do Luís Graça e do Jorge, um grande abraço amigo para ambos.
Como diz o Santos Oliveira a mais alta medalha, ou o mais sublime colar. (Que guardo.)
Quanto ao guerrilheiro sabes como era o comportamento da PIDE mesmo em relação aos militares.
Eu sei porque porque havia na companhia um ex-dirigente associativo das lutas estudantis anos 60 expulso da universidade de Coimbra (o ex alferes Rocha.)
No dia seguinte ainda rondei por duas vezes as instalações da PIDE a ver se via alguem dos meus conhecimentos para perguntar qual era a situação do prisioneiro em questão,cujo o nome não escrevi e não me recordo, mas possivelmente devia ser algum Mamadu Baldé .
Mas como a pesquisa saíu gorada não tive coragem de interrogar quem quer que fosse com receio que eu passasse a ser mais um elemento subversivo a figurar nos ficheiros da respectiva instituição.
Um alfa bravo.
Colaço