quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3593: História da CCAÇ 2679 (9): Boas recordações da PIDE (José Manuel Dinis)

1. Mensagem com data de 3 de Dezembro de 2008 do nosso camarada José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com mais um episódio para a História da sua Companhia

Boas recordações da PIDE

É verdade. Que me perdoem os mais puristas de esquerda, os que já denotavam ideias anti-situacionistas, a memória do Cardia e o Barreto, que em páginas douradas do jornalismo espingardavam contra os pressentimentos e desempenhos do Estado-Novo, contra a sua máquina repressiva, esses que, mais tarde, viriam a integrar governos com pastas na educação e agricultura, onde representaram hipocritamente, tão pouco tempo volvido. Pois bem, eu, ao contrário, desde logo guardei boas recordações da PIDE.

Em Buruntuma, localidade que acolhia uma Companhia do BArt 2857, sediado em Piche, sector L-4, havia um Agente daquela instituição que desenvolvia a sua actividade de compra e troca de informações, em regime de residência permanente. Todavia, apesar de independente da tropa e de exercer o seu importante mister com toda a autonomia, dependia do BArt para efeito de recebimento salarial. Nessas ocasiões, o individuo, de fraca figura, mas arguto e importante pela benção do regime, apanhava boleia numa das colunas de ligação a Piche, onde tinha o hábito de permanecer uma ou duas noites.

Os dias lúdicos em Piche podiam caracterizar-se por passeios solitários de fim de tarde, à tabanca, onde, por vezes, se verificavam encontros com bajudas, simpáticas e acolhedoras. Não vou descrever o que todos sabem, que as meninas eram normalmente ternas, fisicamente elegantes e bem delineadas, prontas e generosas a aceitar os vigores dos milicianos, que, mais tarde ou mais cedo, acabariam por esportular algum patacão, quando não, géneros. Satisfeito o corpo, havia que dar largueza ao espírito, em conciliábulos com parte da camarilha, os que não tinham actividades noturnas, conversas sempre animadas com estímulos etílicos, e, não raro, acabavam com um jogo de cartas.

Quando o agente da secreta passava a noite em Piche, procurava integrar-se nestas reuniões e o pessoal, apesar da moderação dos assuntos falados, nunca se opôs à sua participação, provavelmente, até antecipávamos a jogatana.

Eu pertencia à tertúlia do pocker, o único jogo de batota onde me sentia à vontade, nunca tendo tido êxito em participações noutras modalidades que não me despertavam qualquer interesse. O pocker era adrenalina, o fetiche do jogo, o controle sobre os adversários, que me permitia ganhar com cartas favoráveis ou com bluff. De entre os parceiros, porque éramos todos habituées, distinguia-se o representante da Santa Madre Igreja, que não nos garantia o mais desejado, mas estimulava na passagem do tempo. Assim, por vezes, à roda da mesa contavam-se dois notáveis, o Capelão e o Pide. Este, reservado, com poucas iniciativas, pouco conversador, pouco perspicaz, pois optava com frequência pela decisão errada da jogada, era, no entanto, um parceiro de boas contas e por isso, honrava o regime.

Aconteceu por duas vezes ter participado em jogatanas com o referido quadro administrativo. Jogava-se com regras, com educação, ninguém achincalhava e ninguém se queixava. Os intervalos eram para molhar o bico. E os gins, como os whiskies, nunca foram rogados, deviam temperar os calores da noite e alguma excitação pelas cartas.

Numa jogada de vulto, o referido funcionário público, quiçá estribado na sorte das cartas, decidiu que aquela seria a sua hora.
Aguentou-se, encavou, pagou para ver, e, azar dos azares, eu tinha melhor jogo. Com dignidade, apresentou o pedido para deixar de participar, pouco depois levantou-se, apresentou despedidas com delicadeza e retirou-se.

Da segunda vez, parecia já conhecer os nossos truques. Se ganhava numa jogada, ganhava confiança. Se perdia, metia-se em brios, para, tão breve quanto possível, recuperar o estrago e consolidar a fé. Parecia cheirar-nos, como o pedrador na savana. Respirava confiança. Andei por ali, passava com frequência, estava em casa, quando numa súbita jogada, o homem abusou. Afastou a caça. Que raio, tão cedo, interrogava-me. Fui a jogo. Subiu a aposta, acompanhei e ultrapassei. Mais um lance e cheirou-me a esturro. Ganhei confiança. E ele encolheu-se, refugiou-se desconfiado. Piquei e ele desistiu.

Alguma luz enganadora lhe perpassou a mente, pois o meu jogo era de fraca compustura. Ambos fazíamos bluff. Ele perdeu, outra vez, com dignidade e educação.

Por duas vezes ganhei-lhe o ordenado, ou uma parte de leão do salário. Daí as boas recordações que tenho.

Nesta fotografia pode apreciar-se uma parte do esquema defensivo de Piche, onde abundavam valas arejadas, a partir das quais, os façanhudos recepcionavam as maluqueiras inimigas, procedendo sem dó nem piedade à limpeza dos mais afoitos que, seguidamente, sugeitavam-se à aprendizagem dos bons ensinamentos do corão. Finalmente, a fraternidade celebrava-se com música.

Foto e legenda: © José Manuel Dinis (2008). Direitos reservados

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3560: História da CCAÇ 2679 (8): Três apontamentos (José Manuel Dinis)

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