Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Fur Mil Op Especiais Carvalho, junto à peça (e não obus) 11.4. O Nuno Rubim já aqui esclareceu esta confusão entre peça 11.4 e obus 14: "De acordo com um relatório oficial português que encontrei no AHM [Arquivo Histórico Militar], no dia 16 de Maio [de 1973], isto é, dois dias antes do ataque, as três peças de 11, 4cm foram substituídas por 2 obuses de 14 cm. Agora se compreende a polémica sobre o assunto. Um deles veio sem aparelho de pontaria e não foi recebida nenhuma tábua de tiro ! Sem comentários ...Esses 2 obuses foram pois abandonados, mas sem possibilidades de entrarem em acção e capturados pelo PAIGC" (1).
Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Fur Mil Op Especiais Carvalho, no abrigo do Morteiro 10.7.
Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.
Montemor-O-Novo > Ameira > Herdade da Ameira > 14 de Outubro de 2006 > 1º encontro da tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > O editor do blogue, Luís Graça, e o Casimiro Carvalho.
Foto: © Manuel Lema Santos (2006). Direitos reservados.
O Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, actualmente residente na Maia, confiou-me, no primeiro encontro da nossa tertúlia - na Ameira, em 14 de Outubro de 2006 - (2), uma pequena colecção de aerogramas e cartas que escreveu à família durante o período em que esteve em Guileje e depois Cacine e Gadamael, coincidindo com o nosso abandono de Guileje (3). A unidade a que ele pertencia - a CCAV 8350, Os Piratas de Guileje - esteve lá entre Dezembro de 1972 e Maio de 1973.
Alguma dessa correspondência vai até ao período do pós-25 de Abril, altura em que ele esteve na zona leste da Guiné, Paúnca, integrado na CCAÇ 11. Ao todo são cerca de meia centena de cartas e aerogramas (neste lote estão incluídos ainda meia dúzia de aerogramas que lhe foram enviados por amigos e camaradas da Guiné, depois de ter saído de Cacine) (4) .
Nesta correspondência pode encontrar-se algum apontamento ou outro de maior interesse documental para o conhecimento do quotidiano das NT no sul da Guiné (incluindo a actividade operacional), nomeadamente no chamado corredor da morte. Neste primeiro artigo publicam-se alguns excertos da correspondência relativa a Fevereiro e Março de 1973.
Em 25 de Março de 1973, num domingo e em pleno dia, o aquartelamento de Guileje é duramente atacado durante cerca de hora e meia. São usados foguetões (presumimos que fossem Katiusha, os famosos órgãos de Estaline). Um caça-bombardeiro Fiat G-91, que vem em socorro, é abatido sob os céus de Guileje... É o primeiro, de que há registo na história da guerra da Guiné... Vinte quatro horas depois, o tenente piloto aviadorMiguel Pessoa (5), é resgatado são e salvo pelo grupo de operações especiais do Marcelino da Mata...
A selecção, a revisão e a fixação do texto são da responsabilidade do editor do blogue. (LG)
Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 91
Guileje, s/d, [Fevereiro de 1973 ?]
(...) Saímos às 6 da manhã e chegámos às 14 da tarde, sem comer e muitos cansados. Estivémos quase na República da Guiné, e até ouvimos um tiro de caçadores turras. Antes de aí chegarmos fomos protegidos com 20 tiros de obus 11,4 cm, cada granada de 25 kg a passar por cima de nós. Depois quando avançámos, vimos árvores cortadas pelas granadas, e quando voltámos, muito cansados, fomos atacados por um enxame de abelhas furiosas... Era ver quem mais fugia. Eu deixei arma e carregadores para trás, para fugir... Quem mas trouxe foi um preto (...).
Guileje, 11/2/73
(...) Hoje estou de Sargento de Dia: tenho que ir provar o vinho e o tacho, para ver condições de se estão em condições de ser distribuídos.
Hoje é domingo, tudo calmo. Estamos à espera da avioneta que nos há-de trazer notícias vossas. Finalmente espero receber correio.
(...) Ontem houve alarme no quartel. Fomos todos para os abrigos, menos eu que fui para um dos morteiros, até termos ordem de retirar (eu também tenho um emissor-receptor, para receber ordens de fogo ou de cessar) (...).
Guileje, 22/2/73
(...) Recebi ontem, dia 21 (dia em que faço 3 meses de Guileje), o seu areo de que gostei imenso. (...) Agora tem havido poucas saídas para a mata; esta noite o sentinela deu uma rajada de alarme, depois de ter ouvido dois rebentamentos a cerca de 300 m do quartel. Fomos todos para as valas e eu para o meu morteiro. Parece que tinham sido duas armadilhas nossas, que rebentaram talvez derivado a algum animal. Ainda não foram ver, mas deve ter sido.
Hoje fui à água, a cerca de 3 ou 4 km do quartel (de camioneta, claro), sem novidade especial (...).
Guileje, 3/3/73
(...) Tenho tido muitas patrulhas, ando estafadíssimo.
Guileje, 21/3/73
(...) Cada vez há menos patrulhas agora, até me admiro... Agora é quase só dormir e fazer serviços dentro do quartel, o que não é nada mau.
Guileje, 21/73/73
(...) O milícia que tinha ficado sem as pernas, morreu no mesmo dia por ter ficado sem muito sangue. Levou pouco soro aqui na mata, e estava a perder imenso sangue.
(...) Hoje pedi uma caçadeira a um preto, emprestada, tinha arranjado uns cartuchos, e fui aos pardais que andam em bandos e matei cinquenta. Portanto, logo à noite há petisquinho (...).
Guileje, 24/3/73
(...) Faço amanhã cinco meses de Guiné, o que já não é nada mau e nos traz bastante felizes. Pois nós quando fazemos anos, há festa; aqui, em vez de fazermos anos, fazemos meses.
Pois estou feito um bebedor de cerveja, que não imagina. Olhe que começo, às vezes, a beber às 9 e tal da manhã, mas não me faz mal e isso é o que interessa. Bem, com a água daqui também não há problemas, pois é boa.
Anteontem, na estrada que se está a abrir, onde morreu o infeliz alferes, foi detectada uma mina dos turras, posta naquela madrugada, talvez. Deslocou-se um grupo do quartel para ir levantá-la e foram detectadas mais cinco. Livra, olhe se lá caíamos. Andamos com sorte (...)
Guileje, 25/3/73
(...) Hoje, domingo, aniversário: 5 meses de Guiné (...). Dia 25, 13 horas: o aquartelamento de Guileje foi flagelado com foguetões e granadas de canhão sem recuo, caindo perto, e a mais próxima a cerca de 15 m do arame farpado. Rápida defesa do mesmo aquartelamento, com fogo de artilharia e de mort 10,7 cm (1). E pedido imediato de caças-bombardeiros Fiat, tendo vindo um, o qual depois de várias voltas seguiu para o objectivo, não voltando nunca mais.
Bissau, Comando-Chefe, estranhando a demora e o mutismo do piloto, manda outro Fiat (milhares de contos cada um)... Faz reconhecimento à zona, avistando o avião caído dentro de mata densa e perto o piloto fazendo sinal de very-light, mas não podendo ser recolhido.
Logo de seguida deslocaram-se de Bissau para Guileje 2 aviões-bombardeiros pesados DC-6. Seguidamente dirigiu-se, também, para cá um helicanhão, aterrando no heliporto para seguir depois para Cufar. O ataque de fogo dos turras aqui durou cerca de 1 hora, intervalando o fogo. Pensa-se que isto é represália pelos feridos e possível morto ou mortos que lhes provocámos por meio de minas, como já contei.
Durante toda a tarde não houve mais nada a assinalar, e o jantar decorreu normalmente (...)
(...) Nunca na história da Guiné (pelo menos) tinha caído um caça a jacto Fiat. Isto é uma alegria para os turras, pois só havia 3 ou 4 Fiats aqui na Guiné.
Junto envio uma foto tirada junto ao morteiro que me está distribuído, em caso de ataque (...).
Guileje, 27/3/73
(...) O resto da história do ataque ao nosso quartel: o piloto do Fiat (5) estava vivo mas perto do carreiro da morte e em mata densa, porque se viu um ou dois very-lights que se deduziu terem sido disparados por ele.
Portanto, no dia 25, como estávamos para sair, mas houve ordem em contrário, deitei-me. Passada meia-hora, veio o nosso alferes e disse para estarmos prontos às 4.30h da manhã, com bornal, ração de combate (a primeira vez que a comi em Guileje) e água.
Saímos e entrámos na mata sempre a andar por caminhos sinuosos, só mata densa com lianas e troncos a fazer-nos tropeçar. Até dizíamos mal da nossa vida... Eu levava uma lata de leite, uma lata de chocolate, uma de fruta, uma de sumol, uma de lanche, uma de sardinhas, marmelada, queijo, pão e cantil de água, um rádio, espingarda, cartucheiras, 100 balas, uma granada de fumo... Isto tudo numa balança era de assustar, e durante 9 horas de mata cerrada... Ainda se fosse por estrada, essas nove horas pareceriam 3 ou 4.
Por cima de nós andavam os caças-bombardeiros Fiats, bombardeiros pesados, (?) helicópteros, avionetas e um avião de reconhecimento. Desceram na mata 2 grupos de paraquedistas, um grupo de operações especiais - Marcelino e o seu grupo - e nós, que já lá estávamos...
Passado pouco tempo os Op Esp encontraram o homem e disseram-lhe (estava sentado à beira de uma árvore):
- Vamos embora. - Ao que ele respondeu (pensando que eles eram turras, pois são todos pretos e com armas turras):
- Não vou nada, ides-vos cozer [foder], matem-me já, que eu não saio daqui. - Então disseram-lhe:
- Sou o Marcelino. -E aí ele parece que ressuscitou. Meteram-no num heli donde seguiu até Bissau.
Os mais sacrifiacdos fomos nós quando regressámos, já sem água, cansados, a cair, por meio da mata. Deus me livre. (...)
________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 18 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1672: Guileje: a artilharia do PAIGC (Nuno Rubim)
Sobre o armamento de Guileje, vd. ainda os posts de:
27 de Março de 2007 > Gúiné 63/74 - P1628: Projecto Guiledje: fotografias de armamento e equipamento, das NT e do PAIGC, precisam-se (Nuno Rubim)
15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1434: Artilharia em Guileje: a peça 11.4 e o obus 14 (Nuno Rubim)
(2) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)
(3) Vd. posts de:
31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1478: Unidades de Guileje: Coutinho e Lima, ligado ao princípio e ao fim (Nuno Rubim)
2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)
(4) Vd. posts de:
30 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1636: Álbum das Glórias (10): Paunca, CCAÇ 11: Com o PAIGC, depois do 25 de Abril de 1974 (J. Casimiro Carvalho)
25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)
(...) "Embarcámos em Outubro de 1972 e já em Bissau seguimos numa LDG para Gadamael e daí para Guileje, em coluna auto, com uma segurança reforçada (na óptica de um maçarico, hé-hé-hé).
"Já em Guileje , em sobreposição com Os Gringos [ CCAÇ 3477, 1971/73], passámos um período de muito trabalho de patrulhas e não só. Passámos uns meses descansados, tirando as patrulhas, dia sim dia não, com que o Comando nos premiava. Andava a caçar pássaros com uma caçadeira que o chefe da tabanca me emprestava (só pagava os cartuchos) e era um ver se te avias, era aos 50 pardais cada tiro, e os jubis [ putos ] lá andavam a apanhá-los e atrás dos que só ficavam feridos. Era cada arrozada!!!
"Um dia, o alferes Lourenço, a manusear uma granada duma armadilha , e rodeado de militares - eu estava emboscado com o meu grupo -, a mesma explodiu-lhe na mão, tendo-o morto instantaneamente. Ficou sem meia cabeça e o abdómen aberto. Eu, já no quartel, ao ajudar a pegar no cadáver, este praticamente partiu-se em dois… Que dor!... Chorei como nunca, e isto foi o prenúncio do que nos esperava".
(..." Um dia – já não posso precisar quando - fomos atacados com canhões sem recuo, e nesse espaço um Fiat G 91 , que devia andar na área, foi contactado pelo comandante, o Cap Abel Quintas, que lhe indicou o rumo das saídas e ele lá seguiu. Mais tarde soube que tinha sido abatido por um míssil Strella…
"Vieram os Páras e o Grupo do Marcelino (Os Vingadores, de Operações Especiais), numa confusão de tropas que eu nunca tinha visto, pudera! Pedi ao Marcelino para me levar na operação de resgate do piloto Ten Pessoa (penso que era esse o nome), tendo ele anuído, mas o meu comandante não foi na conversa, não obstante o Marcelino, ele próprio, ter dito que me trazia de regresso nem que fosse ás costas. Que pena, não tenho essa façanha no meu currículo.
"Entretanto fui nomeado para comandar os reabastecimentos a Guileje, antes do isolamento, entre Cacine e Gadamael, por barco (claro).
"Andava eu nestas andanças a curtir o sol em LDM ou LDP, quando Guileje foi abandonada, por ordem do então Major Coutinho Lima, e começou a matança no verdadeiro Inferno. Desse lapso de tempo a minha cabeça recusa-se a qualificar e quantificar o horror porque passaram todos os intervenientes deste filme de terror. Só tenho pedaços desse filme na minha memória. Recusei-me a falar durante muitos anos sobre este período da minha vida na Guiné" (...).
Vd. ainda os posts:
19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)
15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte).
2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) (Magalhães Ribeiro)
(5) Segundo o António Graça de Abreu (Diário da Guiné, 2007, nota 16, p. 91), tratou-se do tenente piloto aviador Miguel Pessoa: vd. posts:
19 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1675: 28 de Março e 5 de Abril de 1973: cinco aeronaves da FAP abatidas pelos toscos mísseis terra-ar SAM-7 Strella (Victor Barata)
17 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1668: In Memoriam do piloto aviador Baltazar da Silva e de outros portugueses com asas de pássaro (António da Graça Abreu / Luís Graça)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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