Saudosa(s) madrinhas(s) de guerra... Este foi o nosso primeiro post, numerado, não avulso, publicado no dia 23 de Abril de... 2004, no meu blogue pessoal, que na altura se chamava muito simplesmente... Blogue-Fora-Nada... (Criado em 8 de Outubro de 2003).
Eu, que não escrevia aerogramas para madrinhas de guerra, estava longe de imaginar as consequências do meu gesto, dando origem depois a um blogue que se pretendia que fosse colectivo... Para a petite histoire, aqui faço a reprodução desse primeiro post que não teve qualquer eco na blogosfera (1)...
Na realidade, foi preciso que começasse a aparecer, um ano depois, em Abril de 2005, a malta do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole: o Sousa de Castro e o David Guimarães, que são historicamente os dois primeiros membros da nossa tertúlia, além de mim próprio...
Foi o Sousa de Castro que me fez chegar, em 4 DVD, a reportagem de vídeo feita pelo Albano Costa e seu filho Hugo Costa, por ocasião da sua viagem à Guiné, em Novembro de 2000... Depois, em Maio de 2005, começaram a aparecer outros camaradas: o Humberto Reis, meu vizinho, amigo e camarada da CCAÇ 12 (6 de Maio), o A. Marques Lopes, de Matosinhos (14 de Maio)... E o nosso primeiro amigo, o José Carlos Mussá Biai (10 de Maio), que vivia no Xime, em criança, no nosso tempo (CCAÇ 12, 1969/71)...
O resto da história sabem-na vocês: criámos a nossa tertúlia e o blogue começou a chamar-se Luís Graça & Camaradas da Guiné... Foi um dique de imagens, textos, lugares, recordações, sentimentos e emoções que se rompeu... e que nos tem ajudado a reconstituir/reconstruir o tal puzzle da memória... Hoje estamos a caminho dos 1700 posts e por aqui já passou mais gente do aquela que era necessária para formar uma companhia... A todos, estou reconhecido e grato. (LG)
23 Abril 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra
Trinta e cinco anos depois.
No 25 de Abril de 2004
presto a minha homenagem às mulheres portuguesas.
Que se vestiam de luto
enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar.
Às que rastejavam no chão de Fátima,
implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos.
Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens
nos campos, nas fábricas e nos escritórios.
Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite.
Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio.
Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra.
Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos
ou sintonizavam altas horas da madrugada
as vozes que vinham de longe
e que falavam de resistência em tempo de solidão.
Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga)
as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos,
no outro lado do mundo,
um pouco do amor de mãe,
das saudades da terra,
dos sabores da comida
e da alegria da festa.
E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras,
que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial,
na qualidade de madrinhas de guerra.
A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.
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Guiné, 24 de Dezembro de 1969
Exma menina e saudosa madrinha:
Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.
Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra. Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).
Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge. Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir.
Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra.
Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.
As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos. Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.
Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida. E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 (6) na outra.
São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.
O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)
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Notas (L.G.):
(1) Aerograma. Também conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal"). Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).
(2) Por mor de = por causa de (expressão usada no norte).
(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.
(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como tugas (diminuitivo de Portugal, português ou portuga).
(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).
(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (Havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1500 a 1800 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.
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Nota de L.G.:
(1) Lista dos dez primeiros posts:
23 Abril 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)
25 Abril 2004 > Guiné 69/71 - II: Excertos do diário de um tuga (1) (Luís Graça)
28 Abril 2004 > Guiné 69/71 - III: Excertos do diário de um tuga (2) (Luís Graça)
7 Dezembro 2004 > Guiné 69/71 - IV: Um Natal Tropical (Luís Graça)
20 Abril 2005 > Guiné 69/71 - V: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca (Luís Graça)
22 Abril 2005 > Guiné 69/71 - VI: Memórias do Xime, do Rio Geba e do Mato Cão (Sousa de Castro)
25 Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)
28 Abril 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1) (Luís Graça)
29 Abril 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1) (Luís Graça)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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